SOS Já transmitimos, em post anterior, algumas conclusões desse cientista. Mas queremos oferecer uma visão mais aprofundada do assunto. Para isso, traduzimos trechos de uma entrevista que ele deu a um periódico espanhol, quando do lançamento do seu livro na Espanha. O artigo original encontra-se no site ReligionenLibertad.com As afirmações chegam a ser bastante fortes. Mas não podemos fugir à realidade dos fatos. Para ele, seguindo a opinião de outro especialista, a geração atual é “a mais estúpida que já houve”. As telas afetam ‘gravemente’ a inteligência da criança Michel Desmurget é um firme opositor ao uso, e sobretudo ao abuso, dos dispositivos digitais por crianças e adolescentes. E faz essa afirmação desde uma posição que lhe permite conhecer gravemente os perigos embutidos nas telas. Ele é doutor em Neurociência e diretor de investigação do Instituto Nacional da Saúde da França. Acaba de apresentar em espanhol seu livro “A fábrica de cretinos digitais”, um título controvertido mas que garante estar totalmente justificado pelos estudos e estatísticas. Em uma entrevista para o diário El Mundo, explica de forma contundente que “as cifras são dramáticas”. Assinala o especialista francês: “Nos países ocidentais, as crianças menores de dois anos passam diariamente quase três horas diante de uma tela, entre os oito e os 12 anos estão quase cinco horas por dia, dos 13 aos 18 seu consumo toca as sete horas diárias… Se somamos todo o tempo que um menino passa entre 2 e 18 anos diante de uma tela, isso equivale a 30 anos escolares, a mais de 15 anos de emprego com jornada laboral completa. E isso apenas se medimos o uso de telas por motivos recreativos e deixamos de fora o tempo que as utilizam no colégio ou para fazer deveres”. A geração mais estúpida? As telas criam cretinos e idiotas, como assegura o título? Na opinião de Desmurget, “é hora de falar claro, porque a gente precisa despertar”. O doutor em neurociência afirma que há quem minimize o efeito das telas, quando na realidade têm um “efeito devastador”. De fato, influi em que “a inteligência se baseia na capacidade de poder memorizar, e tudo isso se vê gravemente afetado pelo uso dos dispositivos digitais”. “As telas afetam tudo aquilo que nos faz humanos: a linguagem, a capacidade de pensar, de raciocinar, de memorizar… Numerosos estudos corroboram essa afirmação”. E não apenas os estudos. “Eu estou em contato – agrega – com muitos professores, fonoaudiólogos e psicólogos infantis que não leem a literatura científica, mas que estão em contato direto com as crianças”. “E o impressionante é que o que eles veem coincide plenamente com o que os estudos dizem”. Ele dá o exemplo de Mark Bauerlein, professor da Universidade Emory de Atlanta (EUA), que defende que esta é a “geração mais estúpida que já houve”. Neste sentido, Desmurget assegura que os cientistas concordam em que a linguagem, a capacidade de atenção e a de memorização reduziram-se nesta geração. Existe hoje a ideia de que não é preciso memorizar nada porque tudo está na internet. E se, para se fazer por exemplo um algoritmo, você pode ir ao Google e pesquisar como se faz, o problema é que em sua cabeça você tem que ter todos os conhecimentos anteriores. Um problema de vício Ademais, o diretor de investigação do Instituto Nacional da Saúde da França sustenta que as telas não apenas estão criando “cretinos”, mas também viciados. “Há vários estudos que sugerem com força que com as telas se pode desencadear o mesmo mecanismo cerebral que com outros vícios. A maioria das investigações nesse sentido assinalam que entre 3% e 5% dos usuários são viciados. Parece uma proporção pequena, porém 1% na França supõe meio milhão de pessoas. Porém, mesmo se não se tratasse de um vício, continuaria sendo um problema”, afirma. Por outro lado, Desmurget aleta sobre os efeitos das telas nos cérebros dos pequenos. “Há quem diga que é preciso viver com os tempos modernos, o problema é que o cérebro das crianças não foi criado para essa imundície”, afirma, ante os que justificam que é preciso aceitar o avanço tecnológico sem reservas. Entretanto, adverte que “um cérebro tem necessidades, precisa de interação humana, precisa dormir, precisa de atividade física (agora sabemos que a atividade física é importante para que um cérebro amadureça), precisa de estímulos e muitas outras coisas. E nada disso as telas proporcionam. É claro que o cérebro pode se adaptar. Porém, que se adapte a uma situação não quer dizer que funcione melhor que em outra. Se você sobe ao pico de uma montanha de 6.000 metros, se adapta. Mas não funcionará tão bem como ao nível do mar. E com o cérebro dá-se o mesmo: não funciona da mesma maneira no ambiente para o que foi construído que outro ambiente”. Bebê Einstein “Você sabe o que é Bebê Einstein?”, pergunta o especialista à entrevistadora. E ele mesmo explica que “são uns vídeos de Disney para bebês propagandeados como educativos. Porém, demonstrou-se que os bebês que os viam tinham problemas de linguagem, que seu vocabulário era muito reduzido”. Um grupo de pais ameaçou entra com ações judiciais, e antes que isso ocorresse a Disney decidiu pagar grossas indenizações e retirar a palavra ‘educativo’ desses produtos. “Estou seguro que as telas vão se tornar o próximo grande problema de saúde pública. Contudo, há muito dinheiro envolvido”. O especialista em Neurociência conclui: “Eu não gostaria que ninguém viessa a minha casa para me dizer como devo criar meus filhos. Mas o que me parece importante é que os pais recebam a informação correta. Um pai, com os dados à mão, duvido muito que deixe que seu filho de 12 anos esteja o dia inteiro com o iPad; se decide que sim, estou disposto a aceitar, é assunto privado dele. O que não suporto é que haja pais que, de boa fé, fazem do iPad a grande ferramenta para a educação de seus filhos, para que aprendam, para sua inteligência… As evidências mostram que a verdade é exatamente o contrário, porém creem nisso porque estão desinformados. E também porque há pretensos especialistas que vão por aí dizendo que os videogames são bons para o rendimento escolar e outras asneiras desse tipo, que só geram confusão”.
Por seu lado,o chamado Grupo das Cinco Grandes (Big Five Group no jargão norte-americano) não esconde o seu objetivo expansionista, alimentado pela corrida frenética por inovações, usando como matéria prima informações e a atenção fornecidas gratuitamente por quase três bilhões de usuários da internet em todo o mundo. As Cinco Grandes da era digital tiveram, conjuntamente, em 2019 uma receita bruta estimada em 899,2 bilhões de dólares, um lucro líquido de US$ 158,8 bilhões e possuem um valor de mercado avaliado em 6,4 trilhões de dólares. Nesta queda de braços entre o lobby do establishment político/financeiro/empresarial e a nova elite tecnológica não há o que os norte-americanos batizaram de Good Guys (Bons Garotos) porque a acusação de práticas monopolistas levantada contra a Google é claramente apoiada por setores econômicos que também já foram acusados de ignorar o princípio da livre concorrência. O que na verdade está em jogo é uma batalha política, jurídica e financeira onde o establishment dos Estados Unidos tenta controlar o enorme crescimento das empresas de tecnologia de ponta que ameaça a supremacia, e em alguns casos, a própria sobrevivência de corporações tradicionais que enfrentam uma traumática adaptação às novas condições impostas pela chegada da era digital. Não dá para apostar num vencedor, pelo menos a curto prazo, porque as empresas de tecnologia têm a seu favor a irreversível digitalização da vida contemporânea, logo têm um faturamento garantido. Mas não têm o controle dos centros políticos, financeiros e empresariais onde são tomadas as grandes decisões nacionais. Já os grupos tradicionais sabem que não podem mais frear o avanço da tecnologia, o que significa perder posições nos negócios e na política, mas ainda têm força institucional suficiente para arrancar concessões dos tecnófilos de Silicon Valley, a meca da nova era digital. Uma luta de gigantes É um confronto de gigantes onde um lado tenta ganhar tempo no esforço para conciliar a herança analógico/mecânica ao novo ambiente cibernético, enquanto o outro aproveita a volúpia por inovações para conquistar posições chaves na economia. A previsão é de que o Big Five Group continue avançando em matéria de poderio financeiro às custas das dificuldades enfrentadas pelos segmentos tradicionais na indústria, comércio e finanças. Mas terá que negociar em questões pontuais como é o caso atual do processo por práticas monopolistas. Trata-se de uma questão juridicamente complexa porque a legislação americana é vaga no que se refere a violações da livre concorrência. A Microsoft já foi punida em 1997 pelo DoJ, porque obrigou outras empresas a usarem o navegador Explorer sob pena de não poderem usar o sistema operacional Windows. Mas o caso da Google é diferente e não tem enquadramento legal claro, porque a empresa paga para o seu sistema de buscas ser usado nos produtos da Apple. A mesma Google responde a três processos por violação da livre concorrência nos países da União Europeia, envolvendo uma multa de oito bilhões de Euros (cerca de 53 bilhões de reais). Esta é uma das muitas questões envolvidas na transição do paradigma analógico nas relações econômicas, políticas, sociais e culturais para um modelo baseado em práticas, normas e valores baseados na realidade digital. Estamos apenas no começo desta transição que implica muitas incertezas e inseguranças dada a natureza exploratória do caminho rumo à digitalização. Sempre que ocorreram mudanças de paradigmas globais, ao longo da história humana, as incertezas geraram conflitos nem sempre pacíficos. A torcida de todos nós é que apareçam “good guys” capazes de conciliar o velho e o novo nesta transição de modelos.
O Departamento de Justiça dosEstados Unidose 11 Estados do país entraram com umaação antitrustecontra oGooglehoje (20), acusando a companhia de usar seu poder de mercado para afastar rivais. O processo marca o maior caso antitruste em uma geração, comparável ao processo contra a Microsoft movido em 1998 e ao processo contra a AT&T, de 1974, que levou à dissolução do Sistema Bell.PUBLICIDADE LEIA MAIS: Comissão do Congresso dos EUA detalha abusos de Facebook, Apple, Amazon e Google O processo alega que o Google agiu ilegalmente para manter sua posição nos mercados de busca e publicidade na internet. Ele afirma que “na ausência de uma ordem judicial, o Google continuará executando sua estratégia anticompetitiva, prejudicando o processo competitivo, reduzindo a escolha do consumidor e sufocando a inovação”. “O Google é agora a porta de entrada incontestável para a internet a bilhões de usuários em todo o mundo…Para o bem dos consumidores, anunciantes e todas as empresas norte-americanas que agora dependem da economia da internet, chegou a hora de parar a conduta anticompetitiva do Google e restaurar a concorrência”, afirma a ação. Quando questionado em uma teleconferência sobre a ação específica a ser tomada, um funcionário do Departamento de Justiça disse: “nada está fora de questão”. Representantes do Google não comentaram o assunto. A companhia teve receita de US$ 162 bilhões em 2019, mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) de países como Hungria, Ucrânia e Marrocos. O senador republicano Josh Hawley, um crítico feroz do Google, acusou a empresa de manter o poder por “meios ilegais” e chamou o processo de “o caso antitruste mais importante em uma geração”. O processo da Microsoft recebeu o crédito por abrir caminho para o crescimento explosivo da internet, uma vez que a ação impediu a empresa de tentar enfraquecer concorrentes. VEJA TAMBÉM: Google vai investir US$ 1 bi em jornalismo nos próximos 3 anos O processo federal de hoje marca um raro momento de acordo entre o governo Trump e os democratas progressistas. A senadora Elizabeth Warren tuitou em 10 de setembro, usando a hashtag #BreakUpBigTech, que ela queria “ação rápida e agressiva”. Ocorrendo poucos dias antes da eleição presidencial dos Estados Unidos, o momento do processo pode ser visto como um gesto político, pois cumpre uma promessa feita pelo presidente Donald Trump a seus apoiadores de responsabilizar empresas por supostamente sufocarem vozes conservadoras. As ações da Alphabet, controladora do Google, subiam quase 1% após a notícia. Há alguma dúvida nos mercados se os parlamentares de Washington podem realmente se unir para tomar uma ação contra a empresa, de acordo com Neil Campling, chefe de pesquisa de mídia de tecnologia e telecomunicações da Mirabaud Securities em Londres. “É como trancar a porteira depois que o cavalo fugiu. O Google já assumiu a posição de monopólio, investiu bilhões em infraestrutura, IA, tecnologias, software, engenharia e talento. Você não pode simplesmente desfazer uma década de progresso significativo.” Os 11 Estados que aderiram à ação têm procuradores-gerais republicanos. E TAMBÉM: Google lança Pixel 5, smartphone de US$ 699 com tecnologia 5G Mais ações judiciais podem estar acontecendo, já que estão em andamento investigações por procuradores-gerais estaduais, bem como uma investigação sobre os negócios mais amplos de publicidade digital da empresa. Um grupo de procuradores-gerais liderados pelo Texas deve abrir um processo separado focado em publicidade digital já em novembro, enquanto um grupo liderado pelo Colorado está contemplando uma investigação mais ampla contra o Google. O processo do Departamento de Justiça ocorre mais de um ano depois que o órgão e a Comissão Federal de Comércio (FTC) começaram investigações antitruste sobre Amazon.com, Apple, Facebook e Google. Sete anos atrás, a FTC fechou acordo com a empresa em uma investigação antitruste que acusava o Google de favorecer seus próprios produtos em resultados de buscas dos usuários. O acordo foi contestado por alguns advogados da equipe da FTC. O Google tem enfrentado desafios legais semelhantes no exterior. A União Europeia (UE) multou a companhia em US$ 1,7 bilhão em 2019 por impedir que sites usassem serviços rivais para encontrarem anunciantes, US$ 2,6 bilhões em 2017 por favorecer seu próprio produto de shopping em resultados de pesquisas e US$ 4,9 bilhões em 2018 por bloquear rivais em seu sistema operacional Android. (Com Reuters)
É justo e legítimo que as grandes plataformas remunerem os meios e os jornalistas por usar o seu trabalho? Por
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É justo e legítimo que as grandes plataformas remunerem os meios e os jornalistas por usar o seu trabalho?da objETHOS Taxar as plataformas para não depender delas por Rogério Christofoletti Não foi uma coincidência o Google anunciar um programa de incentivo ao jornalismo dias antes de entidades de classe defenderem a criação de um fundo público para apoiar a atividade profissional. Os dois movimentos estão conectados e sinalizam que algumas placas tectônicas se movimentaram sob o terreno pretensamente harmônico entre big techs e indústria jornalística. No começo de outubro, Google estimou que despejará 1 bilhão de dólares em três anos, remunerando alguns veículos por suas notícias. Como sempre, o anúncio abusou da retórica da gratificação: o conglomerado de tecnologia escolheu poucos países no mundo para investir, e neles, serão beneficiados raros casos de reconhecida qualidade editorial. Quem for alcançado pelo Google Showcase/Destaques terá um status de escolhido, ungido, quase abençoado… Em tempos de extrema escassez no setor, a ideia parece excelente, mas ela está longe de salvar a indústria de jornalismo, e os critérios de escolha são muito opacos, para dizer o mínimo. Iniciativas do tipo são bem-vindas, mas elas não podem ser tratadas de forma acrítica e francamente adesista. Já argumentei antes que o socorro das big techs ao jornalismo pode ter um preço altíssimo com a perda da independência editorial de meios e jornalistas. Nos planejamentos de conglomerados como Google e Facebook, programas de fortalecimento do jornalismo são ótimos investimentos de relações públicas: cabem nas planilhas de custos, domesticam um setor que pode ser incômodo e projetam uma imagem pública bastante positiva. Afinal, dá a impressão de que as empresas do Vale do Silício se importam com o público, a informação e a democracia. Mas como eu dizia antes, o anúncio bilionário faz parte de um contexto mais amplo: cada vez mais se fala da necessidade de limitar os poderes das big techs; cada vez mais a indústria jornalística se queixa de que não é remunerada pelos seus conteúdos e serviços; cada vez mais essas tensões se tornam visíveis e aparentes para as sociedades. Na mesma semana do anúncio do Google Showcase/Destaques, FIJ e Fenaj lançaram campanha para discutir a criação de um fundo para manter o jornalismo. Para financiar projetos e veículos, as grandes plataformas seriam taxadas, arcando com a conta. O debate ainda é inicial, e uma das possibilidades aventadas é que, no Brasil, seria criado um fundo setorial – como o FUST ou Fundeb -, a ser abastecido constantemente por uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), semelhante a um imposto e com destinação definida. Outras formas de receita poderiam desaguar no fundo, e sua gestão e distribuição de recursos seriam públicos e transparentes. Leia também:A falácia do “jornalismo profissional", por Laurindo Lalo Leal Filho A ideia é arrojada e criativa. Há meses defendo que é preciso taxar as plataformas para subsidiar o jornalismo. Com isso, poderíamos enfrentar dois graves problemas: a crise financeira da indústria jornalística e o poder avassalador das big techs, que projeta perigosa sombra sobre a democracia, os direitos e o capitalismo. Inimigas do jornalismo Nos últimos tempos, Facebook e Google têm se aproximado estrategicamente da indústria jornalística. Destinam recursos para fortalecer o jornalismo local, oferecem treinamento a redações, desenvolvem soluções de gestão, discutem produto e engajamento, apoiam agências de checagem de dados, projetos de certificação e sustentam iniciativas de educação midiática. Ajudam, inclusive, os pequenos meios a prosperar! Diante dessa lista, a primeira impressão é a melhor possível: eles estão ajudando a salvar o jornalismo. Olhando em perspectiva, o cenário é outro. As big techs encarnam ameaças existenciais reais à indústria do jornalismo. Nos últimos anos, Google e Facebook drenaram oceanos de verbas publicitárias que antes irrigavam meios jornalísticos. Juntos, esses gigantes abocanham dois terços de toda a publicidade da internet hoje, e esse apetite parece infinito: eles não só têm as plataformas de exibição de anúncios, como também detêm os mercados e sistemas de anúncios, e controlam os algoritmos de visualização de conteúdos. Essa pecualiaridade dá a Facebook e Google a chance de chantagear seus clientes por mais visibilidade e alcance, arrastando-os para pagar por impulsionamentos ou para ter uma posição mais privilegiada entre os resultados numa busca. Uma segunda razão para acreditar que as big techs não são as melhores amigas do jornalismo: nos últimos anos, as plataformas convenceram o público a naturalizar produtos e serviços gratuitos na internet. Sabemos que não existe nada de graça, e que o modelo de rentabilidade das big techs alia publicidade e exploração de dados pessoais. A disseminação de uma mentalidade de internet free é deletéria ao jornalismo e a muitas outras atividades humanas, que encontram pouca margem para cobrar por seus serviços. Há uma confusão deliberada no termo “free” que pode tanto significar “livre” como “grátis”. Mas as operações humanas têm custos, e o jornalismo não é diferente. Alimentar a ideia de que é possível acessar conteúdos e usufruir de conteúdos sem custos não prejudica a indústria só no presente. Compromete o futuro também porque as novas gerações estão mergulhadas na mentira da gratuidade, e se mostram muito indispostas a “ter que pagar por notícias”. Não bastasse sugar boa parte da publicidade que mantinha a indústria jornalística e desencorajar os consumidores a pagarem por informação, as plataformas vão além: elas utilizam os conteúdos jornalísticos e não remuneram organizações ou seus produtores, os trabalhadores jornalistas. O movimento do Google Showcase/Destaques e acordos pontuais da plataforma com publishers confirmam que a remuneração por uso não é um padrão, mas uma condição isolada. Então, raciocinemos: se alguém tira o que mantinha o seu sustento, convence outras pessoas a não te pagar, e se alguém ainda usa seus produtos ou serviços sem te remunerar, essa pessoa é sua amiga? Claro que não. Se alguém contribuiu em várias frentes para uma crise que hoje asfixia o seu negócio, esse alguém é seu inimigo, e é o que as big techs são para a indústria jornalística. Acenar com soluções aqui e ali não faz delas mais preocupadas com o setor. Imaginar isso é ingenuidade. Leia também:Folha x Boulos: o estômago, o fígado, o cérebro e o novo escândalo da tapioca, por Sylvia Debossan Moretzsohn Até porque os movimentos das plataformas acontecem num momento muito particular. Um volumoso relatório da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos indica que as big techs abusam de seus poderes e que é necessário revisar isso. Na mesma direção, na metade do mês, o Departamento de Estado iniciou um processo antitruste contra Google que não se via há décadas. Parece prosperar uma disposição nos Estados Unidos de intervir e regular, o que não é frequente. Não há bonzinhos nesta história, é verdade, mas essa guerra afeta a todos. Na Europa, parlamentos e tribunais têm alertado de que as práticas anticoncorrenciais e as continuadas invasões de privacidade não são toleráveis. A ideia de que o modelo de negócio dessas big techs e seus comportamentos monopolistas são incompatíveis com a democracia e o panorama econômico global. Taxar é a saída? Na semana passada, um debate pela internet reuniu representantes da Fenaj, ABI, agências de fact-checking, empresas do setor e da Coalizão Direitos na Rede (CDR), que reúne ativistas, movimentos sociais e setores acadêmicos. Com um nome sugestivo – Jornalismo e Plataformas: Quem Paga a Conta? -, a discussão girou em torno de um trecho do projeto de lei 2630, que foi apelidado de PL das Fake News. O setor empresarial quer incluir o tema da remuneração no texto, assunto que Fenaj e CDR reconhecem importância, mas que julgam estar fora de lugar. Há divergências notórias entre as partes, mas elas concordam em um ponto: a conta tem que ficar com as big techs. “Isso era um não-assunto antes. Agora, [fazer com que as plataformas paguem] é uma questão de quando e como”, afirmou o advogado Marcelo Bechara, representante do setor empresarial e publicitário. Leia também:ABI afirma que Brasil enfrenta a "pandemia Jair Bolsonaro" contra a imprensa Obrigar os grandes conglomerados a pagar taxas que venham a subvencionar serviços ou setores não é uma invenção nacional. Na Europa, já não se sussurra isso. Alguns países já gritam pela Taxa Google. Naturalmente, não podemos acreditar que se trate de uma solução milagrosa ou única. A meu ver, é uma questão de justiça econômica, fiscal e social. Se compreendemos que o jornalismo é uma atividade que atende ao bem comum, que tem um caráter social, pois provê a sociedade com produtos e serviços de finalidade pública, nada mais justo que protegê-lo ou fortalecê-lo. Se o jornalismo pode ser um instrumento de distribuição de conhecimento, informação e cultura, se pode atuar para instruir populações, fiscalizar poderes, e promover – mesmo que indiretamente – a emancipação humana, ele precisa se manter sustentável, amplo, universal e perene. Taxar as plataformas é uma maneira de reparar os muitos prejuízos que elas vêm causando à indústria há anos; não restitui todos os danos causados, mas ao menos oferece sobrevida a organizações e trabalhadores do setor. A taxação não impede que Google e Facebook continuem a apoiar o jornalismo com seus programas, mas a taxação amplia os benefícios para todo o ecossistema informativo, e não apenas aos escolhidos pelas plataformas. Um fundo público alcançaria os pequenos meios, os coletivos mais longínquos, projetos jornalísticos com desenhos variados, que são desprezados ou esquecidos pelas plataformas em suas políticas de concessão. Uma saída desse tipo pode efetivamente contribuir para o sistema informativo, sem onerar o Estado ou a sociedade, e dar às plataformas uma oportunidade de se provarem verdadeiramente engajadas na solução dos grandes problemas globais, como o da desinformação. Taxar as grandes plataformas para não depender delas parece paradoxal, mas não é. Cobrar delas uma diminuta parcela de seus ganhos para compor um montante para ser proporcionalmente distribuído é uma forma de não esperar caridade ou boa vontade. Ações pontuais e acordos isolados de Google e Facebook darão lugar a uma política mais ampla e equilibrada de divisão de verbas. Um sistema mais difuso e efetivo num ecossistema tão diversificado. No fundo, é uma questão de justiça. Rogério Christofoletti Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS
Em entrevista à DW, o pesquisador Fabio de Sa e Silva disse que é "difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil" Por
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Foto: DivulgaçãoJornal GGN – “A democracia brasileira se deteriorou consideravelmente, conforme sintetizado pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018. No entanto, desde 2014, o direito e os advogados tornaram-se cada vez mais centrais no campo do poder estatal do Brasil. Conforme a iniciativa anticorrupção Lava Jato ganhava impulso, juízes e promotores brasileiros eram celebrados, local e globalmente, como campeões da transparência, responsabilidade e ‘Estado de Direito’. Após um olhar mais atento sobre a Lava Jato, este artigo questiona essa idealização do direito e dos advogados. (…) Eles produziram uma ‘gramática política’ que está mais próxima do regime iliberal do que muitos poderiam prever.” Essa é a síntese do estudo “Da Lava Jato a Bolsonaro: a virada ilegal do direito no Brasil (2014-2018)“, publicado pelo professor de estudos brasileiros da University of Oklahoma, nos Estados Unidos, Fabio de Sa e Silva, com base em 194 entrevistas de membros da Lava Jato e do ex-juiz Sérgio Moro no período, no Journal of Law and Society.PUBLICIDADEA Deutsche Welle (DW) Brasil entrevistou o pesquisador, que ressaltou essa “gramática política” estruturada da Lava Jato, que incluia ilegalidades e que está “muito mais próximo da ideia de identificação e perseguição do inimigo do que propriamente da contenção de arbitrariedade no exercício do poder” e que é “difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil”. Confira a entrevista abaixo: DW Brasil: Por que o senhor decidiu pesquisar o discurso dos integrantes da Lava Jato? Fabio de Sa e Silva: O objetivo era escapar do debate sobre o caráter partidário da força-tarefa, pois isso imobiliza muito a discussão no Brasil, saber se foi ou não uma operação contra o PT. Busquei compreender os efeitos de longo prazo da Lava Jato, para além da controvérsia política imediata. O repertório cultural que ela trouxe segue produzindo efeitos, é um recurso que as pessoas passaram a usar para interpretar o mundo à sua volta. Além disso, há hoje um debate sobre o declínio da democracia e uma discussão sobre o papel do direito e dos advogados na resistência a giros autocráticos. Uni os dois pontos para indagar se o repertório da Lava Jato tem um conteúdo de defesa do liberalismo político ou não. Muita gente entendia esses promotores e juízes como agentes do liberalismo político, que estavam tornando o Brasil um país com mais accountability e transparência. Mas, na minha pesquisa, noto que eles articulam uma visão sobre a ação anticorrupção e o Estado de direito conflitiva com o liberalismo político. Eles têm uma visão iliberal. Leia também:Doria tem R$ 29 mi bloqueados pela justiça paulista O que significa ser iliberal? É uma categoria que se tornou popular nos últimos tempos para descrever figuras que, uma vez no poder, começam a minar as condições democráticas que permitiram a sua própria eleição. Como o que [Nicolás] Maduro fez na Venezuela, aprovando novas Constituições e trocando a composição da Suprema Corte. Ou, mais recentemente, como [Donald] Trump vem aparelhando o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. É minar as instituições e regras que garantem a limitação do seu poder. Porque a democracia liberal é a combinação entre a possibilidade de elegermos alguém que nos governa, mas também a certeza de que essa pessoa não irá abusar do poder que lhe foi conferido. O senhor aponta uma idealização das carreiras jurídicas e o papel que elas desempenham na defesa da democracia. De onde vem esse fenômeno? Há uma idealização na literatura acadêmica e no debate cotidiano. Existem algumas evidências de que profissionais do direito, como advogados, promotores e juízes, tiveram papel histórico importante na defesa da democracia, sobretudo na Inglaterra e na França no século 19. E há quem queira extrapolar dessas experiências, propondo que esses profissionais sempre terão papel liberalizante nas sociedades. Mas também existe uma literatura que entende que esse papel é circunstancial e contingente a fatores locais, e não algo intrínseco à profissão. Isso pede que a gente investigue as circunstâncias. Minha agenda de pesquisa é entender o que são as profissões jurídicas no Brasil e como elas foram constituídas historicamente e sociologicamente. E, portanto, o que podemos esperar delas, não por idealização nem por extrapolação de outros momentos e outras realidades, mas por evidências. Por exemplo, a imprensa tem destacado muito alguns aspectos das carreiras jurídicas, tais como os supersalários, as desigualdades de gênero e de raça. Será que convém apostar que carreiras com essas características serão promotoras de liberdade e igualdade? Ao analisar as 194 entrevistas, que características identificou no discurso da Lava Jato? Embora no começo da força-tarefa houvesse um argumento de que a Lava Jato foi possibilitada pelo direito, depois o direito passa a ser um obstáculo que precisa ser denunciado. Vem a campanha das “Dez medidas [contra a corrupção]” capitaneada pelo Deltan [Dallagnol] e a defesa de reformas para ampliar o poder dos próprios agentes que conduzem a iniciativa anticorrupção. Quando surge uma resistência de setores da sociedade e do Congresso a essas reformas, há um procedimento de denúncia daqueles que resistem, como sendo inimigos do povo que querem que a corrupção reine. Usando uma linguagem alarmista, eles constroem uma oposição entre o povo e as elites, que desejariam perpetuar uma situação de corrupção endêmica. Leia também:Propina nas nádegas faz parte da guerra híbrida, por Wilson Luiz Müller Por fim, quando o obstáculo do direito se coloca de maneira frontal ao que a Lava Jato está fazendo, não apenas se contorna o direito, como busca-se justificar o contorno como algo necessário para proteger o povo e a sociedade. Isso acontece no episódio da liberação das gravações do Lula pelo Moro e em outros eventos. As pessoas da força-tarefa estavam realmente imbuídas dessa lógica. Não era só uma questão de retórica. Há mensagens reveladas pela Vaza Jato mostrando que eles tinham clareza de que estavam fazendo algo ilegal, mas entendiam que politicamente era o passo a ser dado. [Em um dos diálogos, no qual os procuradores discutem a divulgação de uma conversa telefônica entre os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Deltan escreve a um colega: “No mundo jurídico concordo com vc, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”.] Estimular a oposição entre o povo e a elite é uma das características do populismo. A Lava Jato era populista? No conceito de populismo há essa ideia de uma oposição entre o povo e os “inimigos” do povo, sendo que o líder se coloca como alguém capaz de proteger o povo. Isso sem dúvida está muito presente na Lava Jato, é só olhar a forma como os agentes da força-tarefa eram representados, e o Moro como um super-herói. Não foi só uma cobertura acrítica de parte da mídia que permitiu que eles chegassem lá, eles trabalharam conscientemente para se posicionaram como esses protetores. O estudo também identifica que a Lava Jato se apresentava como defensora da nação contra uma “ameaça existencial”, fazendo uso de metáforas biológicas. Que papel isso representa? Essa parte foi algo que me surpreendeu na análise, é uma linguagem que se repete e se expande. Começa com a ideia do monstro, de que a corrupção é um monstro. Depois, que a corrupção é um câncer. E que o câncer está em metástase. E precisa de um tratamento. E o tratamento são as “Dez medidas”. Uma das maneiras pelas quais o poder do [Vladimir] Putin, uma liderança iliberal, se afirmou foi construindo a necessidade de proteger a Rússia da União Europeia, que seria um inimigo, uma fonte de promiscuidade e práticas culturais contrárias à identidade nacional russa. Tinha a ideia de que a Rússia era um corpo virgem, puro, sendo vilipendiado por uma força externa maligna. É um pouco o tom do argumento da força-tarefa no Brasil. Há relação entre o discurso propagado pela Lava Jato e a posterior eleição de Bolsonaro e a deterioração da democracia no Brasil? Leia também:Trump diz que as mulheres gostam dele porque ele melhorou a pressão da máquina de lavar louça Tomamos como pressuposto que a ação dos integrantes da Lava Jato era voltada à promoção da transparência e da responsabilidade. Mas, se analisarmos o repertório cultural que eles foram construindo, vemos que isso dá margem para outras coisas, que são contrárias aos ideais de transparência e responsabilidade. Estão muito mais próximas da ideia de identificação e perseguição do inimigo do que propriamente da contenção de arbitrariedade no exercício do poder, que é a chave do liberalismo. É uma gramática política que pode ser invertida e mobilizada contra os ideais do liberalismo. Moro foi compor o governo do Jair Bolsonaro e lá encarnou a dimensão da lei e da ordem, e a defesa da possibilidade, se não da necessidade, de violar direitos individuais em nome do bem-estar coletivo. É uma linha de continuidade, representada na figura do Moro e manifestada em alguns dos atos dele como ministro. Como na questão da violência contra presos em presídios federais e ao abrir inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional contra indivíduos que criticaram Bolsonaro. Esse discurso é consistente com a ideia de que existe alguém que será capaz de proteger o país de uma ameaça — no caso do Bolsonaro, a ameaça do crime ou do comunismo. E que se a gente não der a esses agentes as condições necessárias, seja silenciando a oposição ou restringindo direitos individuais, esse mal vai prevalecer. Na sua opinião, os integrantes da Lava Jato tinham essa intenção? Existe esse debate, se a Lava Jato deve ser considerada culpada de tudo o que acontece no Brasil desde 2016 e se a força-tarefa tinha ou não a intenção de fragilizar a democracia no país. Mas, como disse no início, não estou interessado nas intenções, estou mais interessado nos efeitos gerados a partir da interação entre aquilo que eles fizeram com aquilo que outros fizeram, circunscrevendo a análise a esse campo cultural. Nesse sentido, é difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil. Se foi construída como esse fim, ou se foi instrumentalizada, deixo para outros responderem