sexta-feira, 30 de julho de 2010

No cemitério de Garanhuns: os Silva, Lula e as eleições

Claudio Leal/Terra Magazine

Luís Barbosa de Lima, coveiro do cemitério de Garanhuns (PE), a terra natal de Lula. Em covas rasas, os Silva do agreste pernambucano, de onde o retirante Lula partiu em 13 de dezembro de 1952
Claudio Leal
De Garanhuns (PE)


O muro caiado do Cemitério São Miguel, em Garanhuns (PE), contorna os seis hectares dos mortos do agreste pernambucano, no alto da Boa Vista. "Sepultar, reformar e construir, antes passe na administração" - o aviso seco, na porta central, remete a uma salinha com a imagem de São José.

Na paisagem, túmulos sem valia, alguns graníticos, outros com reproduções desgastadas do Padre Cícero. "A fundura certa da cova é um metro. Cinco palmos", detalha o coveiro Luis Barbosa de Lima, 48 anos, há 26 no ofício. "Por dia, chegam uns quatro, cinco defuntos. Demora umas meia hora pra cavar".

Na terra natal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a família Barbosa de Lima pastoreia os mortos desde a fundação do cemitério, em 1928. A filha do primeiro coveiro tornou-se zeladora das campas, uma atividade legada aos descendentes. Consiste em pedir às famílias um trocado para limpar as lousas, aparar o mato e regar as flores. De dez zeladoras, cinco da mesma "dinastia" correm o labirinto de cruzes, com vassouras e baldes. A limpeza de uma sepultura pobre custa dez reais por mês; dos remediados, o dobro.

- Quando no verão, a gente agoa as plantas. O coveiro é o delegado do famoso. Ele prende e ninguém solta mais. Não tem advogado do mundo que solte. De verdade, os vivos é que faz medo - arrisca a sorridente Degenalva Barbosa de Lima, 50 anos.

Palavras rareadas, o coveiro Luis rumina as perguntas biográficas. Cinco filhos: três homens, duas mulheres, mas uma incerteza quanto aos nomes, arrancados com esforço das rugas na testa negra. "Fábio Júnior, Diego... O último esqueci. Fabiana... e Neide". Adiante, lembrará de Preto, o mais velho, 22 anos. Conheceu a mulher na rua do cemitério, a Princesa Isabel, e silencia o método de conquista, embora sua memória acuse a ausência de flores e a conversa mínima. Ignora festas, serenatas e forrós.

Os passeios se definem por caminhadas ao comércio da cidade, para pagar as contas. Sempre um itinerário circular. Neto do primeiro coveiro do São Miguel, acorda às 6h e assume o trabalho às 12h, lavrando fendas sem emotividade. Passado o dia, a lembrança da história dos finados é rala. "Tem vez que o cabra grava, tem vez que esquece com dois anos", esclarece, arrastando a sandália na areia.

- É meio ruim a morte. A minha mãe está enterrada aqui.

- Você fez a cova?

- Não. Morreu quando eu era pequeno. Depois fomos morar no Recife.

- O ano?

- Nem me lembro, visse?

- E seu pai?

- Foi enterrado no Recife. Ele teve uma hérnia estourada no presídio.

- Estava preso?

- É.

- Por quê?

- Meu pai matou minha mãe com a espingarda.

As brechas

Em Garanhuns, os Silva jazem em montinhos anônimos de terra, com uma cruz de concreto, na qual vão as datas de nascimento e morte em tinta preta. Quando migrou num pau-de-arara para São Paulo, em 12 de dezembro de 1952, arrimado em Dona Lindu, o futuro presidente da República parece ter se desviado da romaria de cumprir os versos de João Cabral de Mello Neto, no auto de natal "Morte e Vida Severina": "Terás de terra/ completo agora o teu fato:/ e pela primeira vez, sapato".

"Um primo de Lula está enterrado aí dentro", informa o administrador João Batista dos Santos, 69 anos, funcionário cioso das regras de visitação. O coveiro também não sabe onde repousa o parente do líder metalúrgico. Nas franjas das sepulturas de mármore e cimento, florescem as covas rasas dos Silva, umas barrigas fofas ornamentadas por flores do agreste. Helena Barroso da Silva, José Venâncio da Silva, Cosme Alves da Silva... "Pobre é assim: se enterra nessas brechas", aponta Luis.





Os viventes do cemitério desejavam o terceiro mandato de Lula. "Ele é muito bom, ajuda os pobres com a Bolsa Renda, a Bolsa Escola", explica o coveiro. "Minha família estava tirando cem reais, mas pegaram meu contracheque e diminuíram pra vinte". Luís recebe da Prefeitura cerca de R$ 650. Na cidade de 131.313 habitantes, 12.042 famílias são assistidas pelo programa de transferência de renda do governo federal.

"Lula, ave maria!, é um pai. Pena que não pode ser candidato de novo. Eu votava nele, porque deu o Bolsa Família aos que não podiam pagar uma água. Pretendo votar no candidato que ele apoiar", admite a zeladora Degenalva. Depois de ver a candidata Dilma Rousseff na TV, opina um tanto desanimada: "Tô achando devagar demais... Dilma não tem opinião boa que nem Lula. Talvez Lula deixe pra ela um plano, o Bolsa Família. Agora, ela e Serra estão pau a pau. Serra é mais pros ricos, o partido dos tucanos".

O filho ilustre

Na tarde de 23 de julho, o dia da visita do presidente ao Festival de Inverno do município, Degenalva se entusiasma ao relatar os feitos do conterrâneo, a quem define como "coroa enxuto e gatão". "O povo tirou dinheiro na Caixa Econômica para comprar gado e bode. Mudou muita coisa. Hoje minha vizinha deixou as filhas em casa e foi ver Lula em Caetés. Para olhar um homem daquele, eu vou até o fim do mundo. Se eu encontrasse Lula, dava-lhe um cheiro nele", brinca a zeladora.

No agreste, não há quem ignore a explicação-chave do nascimento do garoto Luiz Inácio em 1945, nas serras da Vargem Comprida, em Caetés, então distrito de Garanhuns, emancipado somente em 1963. Num comício de Dilma, no Colégio Monsenhor Ademar da Mota Valença, Lula abrandou a rivalidade dos dois berços:

- Vivo um dilema. Algumas pessoas me pediram: "mude seu registro, que tá dizendo que você nasceu em Garanhuns, para Caetés". Fiquei sensibilizado, mas não posso mudar a história. Quando eu nasci, Caetés era Garanhuns. Não posso cometer falsidade ideológica. Mas o que não muda é que eu sou pernambucano...





Centenas de caeteenses se sentaram nos bancos da avenida Luiz Pereira Júnior, à espera da quarta visita oficial do filho de Lindu. "Já pensei em ser presidente, mas os outros colegas não. Eu daria casa e dinheiro a quem não tem", confessa o estudante Welson David, 13 anos, um dos beneficiados pelo programa "Um computador por aluno". Ao fundo, o carro de som persiste no convite:

- O município de Caetés tem a honra de receber o presidente do Brasil, Lula. Não deixe de prestigiar o filho ilustre de Caetés, Lula. Lula em Caetés é sinônimo de pura emoção...

Pavão

"Não vai ter outro igual. Pra família, ele não pode dar nada, mas é ouro de lei. Bom demais. Eu mesmo não quero nada dele. É proibido ele ajudar a família", conta o republicano primo do presidente, José Cazuza Ferreira de Melo, que esteve nas duas posses em Brasília (DF). Na chegada a Caetés, Lula se reuniu por 30 minutos com cerca de 50 primos, numa escola municipal. E não é lá difícil ver seus parentes nas lidas diárias, no agreste:

- Moura, primo do Lula, carrega areia no carro, sabe? - avisa o comerciário desempregado Ricardo Alexandre de Barros Paes, no ônibus. - Garanhuns é um atraso, não tem nada. Nem um IML. O povo daqui é pavão. Vive de boniteza.

Sem um Instituto Médico Legal na cidade, os corpos ainda são enviados para autópsia em Caruaru. No cemitério de São Miguel, há apenas um morgue para os cadáveres desovados. A "pedra", como é chamada pelos moradores, fica dentro de uma câmara gradeada e pintada de branco.

Vítimas de pistoleiros costumam deitar nessa cama encardida. Há quem se recorde dos tempos de Jacó Pereira, o ex-presidiário "Coquinha", acusado de pistolagem. Em outubro de 2009, ao estacionar seu Fiesta Sedan no posto de gasolina em frente ao cemitério, ele foi cercado por dois motoqueiros. Quinze tiros: dez na cabeça, quatro no tórax e um na mão direita. "Quando ele estava vivo, direto amanhecia o dia com dois corpos na pedra", conta uma mulher. O tráfico de drogas - e nessa esteira, o crack - carcomeu Garanhuns e o interior pernambucano.

Outro a fazer virações no território dos mortos, o ajudante de pedreiro José Anchieta dos Santos, 41 anos, reclama da falta de emprego na região, uma queixa comum aos trabalhadores pobres. "Com o dinheiro do Bolsa Família, eu pago água, luz e ainda faço uma feirinha", lista. Ele recebe R$ 90 por mês do governo. Pouco? "Mais ruim era quando não tinha".

No peito, a ferida

Num raro instante lúdico, o coveiro Luís se dispõe a mostrar o túmulo mais visitado, o do seresteiro alagoano Augusto Calheiros (1891-1956), a "patativa do Norte", que residiu em Garanhuns antes de fazer carreira no Rio de Janeiro.

Uma viola negra encima a moradia do cantor de "Mané Fogueteiro", trazido em cinzas pela Prefeitura, atendendo ao derradeiro sonho do moribundo, como registra uma inscrição na lápide: "Se eu morrer nesta terra/ vejam no peito a ferida,/ queiram levar para o norte/ os restos de minha vida".

Diante da patativa, Luís descreve as carências do Brasil. "Muita coisa. Falta fazer outro cemitério ali pro lado, porque só temos dois, o outro é particular. O pobre, para se enterrar, às vezes não tem nem dinheiro, o prefeito é quem paga".

A metros dele, José Anchieta acredita na possibilidade de Garanhuns gestar um segundo presidente da República: "Se for apoiado por Lula, sim".

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