Após atraso de um ano e meio por preocupações com segurança, empresa recebe aval do governo para 1º teste
Pacientes com lesões paralisantes na coluna receberão célula-tronco que restaura fiação dos nervos da medula
Mauricio Lima/France Presse
Pesquisador manipula colônias de células-tronco embrionárias humanas em laboratório do Hospital do Coração (SP)
REINALDO JOSÉ LOPES
DE SÃO PAULO
SABINE RIGHETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O potencial terapêutico das células-tronco embrionárias finalmente começará a ser testado em seres humanos. Cientistas americanos vão usá-las para reconstruir a medula espinhal de pessoas paralisadas por lesões recentes na coluna.
Cerca de dez pacientes paraplégicos, que tenham sofrido o acidente causador da paralisia menos de 15 dias antes do teste clínico, vão receber as células. O anúncio foi feito ontem pela empresa americana Geron, que recebeu permissão para o ensaio da FDA, órgão que regula fármacos e alimentos nos EUA.
Thomas Okarma, presidente da Geron, disse que o recrutamento de pacientes deve começar em um mês.
NOVELA
O anúncio parece ter posto fim a uma novela que se arrastava desde agosto de 2009. Isso porque a Geron já havia recebido permissão da FDA para o teste em janeiro do ano passado, mas teve de parar quando a agência questionou a empresa sobre cistos no organismo de camundongos usados nas pesquisas preliminares.
"Eles tinham apresentado os dados deles aqui no Brasil, na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]", conta Antonio Carlos Campos de Carvalho, do Instituto Nacional de Cardiologia (RJ).
Em tese, a chave para refazer a medula recém-lesada é inserir nela oligodendrócitos, células que ajudam a montar a "fiação" dos nervos. É como se esses "fios" estivessem cortados na pessoa que sofreu a lesão.
Os oligodendrócitos seriam capazes de reparar a ligação entre os nervos e fazer com que os sinais nervosos voltassem a passar pela medula, o que levaria a pessoa a recuperar os movimentos.
O truque, portanto, é pegar as células-tronco embrionárias -capazes de se transformar em qualquer tecido do organismo- e transformá-las em oligodendrócitos. Segundo Carvalho, a Geron mostrou ser capaz de selecionar as células transformadas, de forma que mais de 95% das que vão para o paciente são mesmo oligodendrócitos -o tipo certo.
O problema, no entanto, é que entre 3% e 4% das células podiam ficar num estado indefinido, provavelmente o responsável pelos cistos. Agora, a Geron afirma ter melhorado seu procedimento de purificação, de forma que praticamente nenhuma célula "errada" escapasse.
TRIAGEM DIFÍCIL
"Na verdade, é muito difícil de conseguir isso. O fato é que eu não gostaria de ser um dos pacientes que vão testar o procedimento", diz Carvalho, apontando os riscos do experimento.
"Esse primeiro estudo vai servir para avaliar a segurança das células-tronco, ou seja, se as células ficarão no organismo, se não formarão tumores. Se houver melhora ótimo, mas não é essa a expectativa agora", diz Mayana Zatz, especialista em células-tronco da USP.
"Mesmo assim, vai ser possível medir se há alguma volta da sensibilidade dos pacientes, por exemplo", pondera Stevens Rehen, que trabalha com células-tronco embrionárias na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Rehen conta que o diretor da Geron explicou a ele uma precaução extra.
"As células só vão ser injetadas em lesões do tronco para baixo. Assim, é muito baixo o risco de que algumas migrem para o cérebro e causem tumores."
O anúncio fez com que as ações da Geron subissem 17% ontem, depois de uma queda de 35% em um ano.
ANÁLISE
Desafio é refazer elo que permite que ideias virem movimentosSTEVENS KASTRUP REHEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Oligodendrócitos são células que envolvem os neurônios do sistema nervoso central. São eles que permitem que Neymar imagine um drible e que, depois, a informação desça rapidamente aos seus músculos para que o movimento aconteça.
Um paciente paraplégico pensa em mover suas pernas, mas não consegue fazê-lo. A informação empaca no meio do caminho porque os oligodendrócitos que encapavam seus nervos desapareceram. A transmissão do impulso nervoso entre cérebro e músculos através da medula não é mais possível.
A ideia por trás do teste clínico da empresa Geron surgiu das pesquisas de Hans Keirstead, iniciadas há 10 anos na Universidade da Califórnia em Irvine.
Um dos principais desafios para a terapia celular com células-embrionárias é decifrar as pistas que fazem com que elas se transformem naquilo que se deseja.
Criar em laboratório células tão especializadas como os oligodendrócitos é um grande avanço, fruto da chamada pesquisa básica, assim como foi o isolamento das primeiras células-tronco embrionárias humanas realizado há 12 anos.
Keirstead foi bem sucedido ao recuperar o movimento de ratos paraplégicos com o transplante dos oligodendrócitos humanos. Tais resultados, publicados em 2005, impressionaram os cientistas.
O teste da Geron prevê tanto uma avaliação da segurança do procedimento quanto as primeiras avaliações de sua eficácia. Um revés forçará uma reavaliação nas estratégias atualmente utilizadas para a geração de células especializadas a partir das células de embriões. É assim que a ciência avança.
ANÁLISE
Ainda é cedo para se falar em tratamento de lesão de medula
MAYANA ZATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Foi dado o pontapé inicial. A agência reguladora americana FDA liberou os primeiros testes clínicos com células-tronco embrionárias (CTE) em pacientes com lesões de medula, um ano depois do primeiro anúncio. O financiamento será de uma empresa particular, a Geron.
Nessa experiência terapêutica, as células a serem injetadas, GRNOPC1, foram cultivadas com vários fatores de crescimento para que se diferenciem em células precursoras de células nervosas.
De acordo com a Geron, as CTE humanas que serão injetadas em pacientes já foram testadas em camundongos por mais de um ano e não formaram tumores.
As CTE, porém, podem se diferenciar em qualquer tipo de célula. Uma vez injetadas, perdemos o controle sobre elas. Imaginem se, ao invés de neurônios, elas formem outro tipo de tecido, como osso ou cartilagem no local da lesão. Seria um desastre.
Espera-se que as células injetadas tenham a capacidade de restaurar a mielina, a bainha que envolve as células nervosas, e devolvam a capacidade de transmissão de sinais nervosos.
Há esperança que fatores de crescimento produzidos pelas células injetadas possam ajudar na regeneração de células danificadas.
REALISMO
Os pesquisadores envolvidos estão com os pés no chão. Sabem que serão necessários vários anos antes de se falar em tratamento.
Notícias como essas detonam uma avalanche de pedidos de pessoas se oferecendo como voluntários para serem cobaias humanas. É importante deixar claro que, por enquanto, é só uma pesquisa -a chamada fase 1, que avalia a segurança do método.
A experiência vai envolver poucos pacientes, todos com uma lesão recente grave (T3 a T10) da medula espinhal, - no máximo duas semanas depois de sofrido o acidente.
A expectativa é que se obtenham resultados melhores em uma lesão ainda não cicatrizada. A desvantagem em analisar pessoas que acabaram de se acidentar é que sua recuperação poderia ocorrer espontaneamente. Mas nas experiências em humanos não existe situação perfeita.
Injetar pela primeira vez CTE humanas em pacientes é um passo importante. Essa experiência terapêutica que acaba de ser aprovada confirma que valeu a pena batalharmos pela liberação das pesquisas com CTE no Brasil.
Vamos acompanhar de perto os resultados obtidos com esses pacientes para decidir qual será a melhor estratégia a ser adotada. Por enquanto, não perdemos nada em observar e esperar.
domingo, 1 de agosto de 2010
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