DOMINIQUE MOÏSI
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Nós, no Ocidente, devemos repensar a maneira como nos relacionamos com os outros povos
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A QUEDA do Lehman Brothers, quase dois anos atrás, e o quase colapso do euro, mais recentemente, marcam um novo capítulo na história, que levará como título "o mundo pós-ocidental".
Para compreender o que significa viver em um mundo como esse, precisamos primeiro contemplar o mundo pré-ocidental, anterior à conquista da Índia pelo Reino Unido e ao início do declínio da China. Foi um período seguido por mais de dois séculos nos quais o Ocidente viveu ao lado de um "outro" que considerava inferior. E isso agora acabou.
Demógrafos preveem que os Estados Unidos e a Europa responderão por apenas 12% da população do planeta em 2050. Para resumir, o "outro" agora é nosso igual. Na verdade, é superior em muitos campos, de seu apetite pelo sucesso à sua confiança determinada no futuro.
Houve, é claro, outros períodos em que civilizações se encontraram em igualdade de condições.
Considere, por exemplo, a república de Veneza em seu relacionamento com os otomanos no século 16. Ou leia as memórias de viagem de Matteo Ricci, um jesuíta que percorreu o império chinês no século 16.
Ou pense sobre os britânicos na Índia, nos anos iniciais da Companhia das Índias Orientais, antes que esta explorasse a fraqueza do império Mughal para estabelecer o seu.
Em cada um desses casos, o respeito mútuo que existia entre as duas potências se baseava em uma mistura de empatia e curiosidade.
Mas foi esse senso de equilíbrio entre civilizações diferentes que desapareceu, primeiro com a ascensão do imperialismo europeu e depois com o início do século de predomínio norte-americano.
Agora, nós, no Ocidente, precisamos voltar a repensar a maneira pela qual nos relacionamos com os outros povos. Não podemos ignorar o fato de que a Ásia e o Ocidente vivem momentos diferentes de desenvolvimento. China e Índia podem estar agora desfrutando do momento de pico em seu crescimento acelerado, antes que problemas estruturais limitem sua ascensão.
A mudança no balanço do poder não deveria ser recebida com negação (ao modo norte-americano) ou com introspecção (ao modo europeu). Pois o momento que vivemos constitui não só um desafio considerável como uma oportunidade única para o mundo ocidental.
Nossas vantagens comparativas nesse novo mundo não são demográficas, militares, financeiras ou econômicas. Encontram-se no reino de ideias e ideais; na democracia, no Estado de Direito e no respeito aos direitos humanos.
Isso é afortunado, porque, pela primeira vez na história recente, uma nova potência mundial, a China, chegou a uma posição de destaque na política do planeta sem uma mensagem universal, e ao mesmo tempo negando claramente as responsabilidades universais que acompanham sua nova situação.
Em contraste, nossa mensagem universal pode servir como vantagem competitiva para o mundo ocidental. Para que isso aconteça, no entanto, nossa variante maculada de capitalismo tem de reconquistar a superioridade moral.
No final do século 18, o início da supremacia ocidental coincidiu com o Iluminismo, movimento baseado na ideia de progresso e emancipação dos seres humanos agrilhoados por preconceito, superstição e assertivas das religiões estabelecidas.
Hoje, esse modelo de excelência está mais visível na Escandinávia, onde o poder é modesto e honesto, as mulheres desempenham papel importante na sociedade, uma variedade humana de capitalismo é praticada e o respeito aos imigrantes é a norma.
Esse claramente não é o modelo seguido pelos Estados Unidos. E tampouco é o modelo de Nicolas Sarkozy ou Silvio Berlusconi.
Chegou o momento de perceber que estamos vivendo além de nossas posses em termos materiais, e muito abaixo de nossa capacidade em termos intelectuais e espirituais.
Por isso, as potências ocidentais precisam se reinventar, mas tendo em mente uma consideração: a de que, apesar de todos os temores surgidos com a ascensão da Ásia, seu futuro depende em última análise daquilo que trazem dentro de si.
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DOMINIQUE MOÏSI é conselheiro do Instituto de Relações Internacionais da França. Este texto foi publicado originalmente no "Financial Times"
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Orientalismo e ocidentalismo
"A mente oriental abomina a precisão, (...) o europeu é um raciocinador conciso (...), ele é um lógico natural mesmo que Não tenha estudado lógica" (Cromer, Modern Egipt; citado por Edward Saïd em Orientalismo)
Alexandre Gomes
Impossível falar no Oriente Médio sem que venha à mente as imagens de terroristas fanáticos, mulheres veladas, religiosidade exacerbada. Estas imagens logo evocam outras mais abstratas, como a do fedain se matando em um ataque suicida na esperança de alcançar o paraíso nos braços das huris em meio a rios de vinho. Assim como é impossível também nào imaginar ditaduras sanguinárias oprimindo o povo com base em um discurso que se utiliza da religião para fins políticos, quando não econômicos.
Pouco importa se as imagens são verdadeiras, o importante é o contraste, não só para justificar a intervenção imperial lá - explicitada sem margem de dúvida por Saïd - mas também para justificar, racionalizar a sociedade daqui - abordagem que parece ser original.
O contraponto do fedain é sempre o jovem promissor e alegre do ocidente, jamais o delinquente juvenil que vive por um fio para obter os produtos da última moda ou o playboy que perde a vida em um "racha", ou os dois quando morrem de overdose.
O contraponto da mulher velada é sempre a mulher independente e bem colocada, jamais aquela mulher obrigada a entrar no mercado de trabalho para que a família não morra de fome, submetida a dupla ou tripla jornada de trabalho, nem a mulher miserável abandonada pelo marido que habita as periferias.
O contraponto da imagem do líder sanguinário e corrupto é a "racionalidade intríseca" das instituições ocidentais, jamais a corrupção política e eleitoral que se vê em toda parte, ou o tecnoburocratismo frio e lento que prefere ver números ao invés de pessoas.
O contraponto do fanatismo é sempre o apego do ocidental à Ciência e à Razão, jamais o gélido individualismo e materialismo que congela a solidariedade e os valores humanitários em prol de um consumismo sem sentido ou ética.
Imaginar que tal situação no "Ocidente" justifica a do "Oriente" seria, é evidente, aceitar o mesmo erro argumentativo do Orientalismo, seria, digamos, contruir um Ocidentalismo, uma visão enviesada com sinal trocado. Igualmente seria construir uma visão "ocidentalista" imaginar que tudo que vem do Ocidente é por natureza pérfido e mau.
É evidente que este "Ocidentalismo" nào tem a força nem a estrtura da máquina orientalista descrita pro Saïd. O primeiro é, de certa forma, um outro subproduto do último, que se demosntra tão eficiente a ponto de pautar o diálogo entre os dois.
Contudo o debate nas "fronteiras ensaguentadas do Islam" - como descreveu um autor - tem sido de lado a lado marcado por Ocidentalismos e Orientalismos. Grande parte da propaganda islâmica dirigida não só ao "ocidente", mas ao próprio "oriente", bate-se na superioridade e sabedoria das intituições "orientais", quando não se limita a apenas responder de forma defensiva às críticas orientalistas, deixando portanto que esta ideologia do ocidente estabeleça a agenda da discussão.
Paradoxalmente, é em um dos países apontados mais frequentemente como símbolo desta mentalidade "oriental", o Irã, que vai se encontrar um debate de tipo novo. Para começar a discussão é importante destacar o caráter inovador da República Islâmica do Irã, tomada como tipo ideal de regime "fundamentalista" na, pasmem, incorporação de instituições ocidentais.
E estas idéias eram mais do que novas. A teoria que permitiu harmonizar a ideologia islâmica com um governo representativo tripartite de tipo ocidental, o Velyet-e Faqih (Domínio do Jurista) foram divulgadas por Khomeini entre 69 e 70 numa série de palestras durante seu exílio no Iraque.
Em um trabalho de natureza teórica ainda muito pouco explorado Khomeini "reconstruiu" as instituições ocidentais sob uma ótica muçulmana e xiíta. Os três poderes de Montesquieu foram submetidos pela teoria de Khomeini à vigilância e orientação de um jurista muçulmano cujas qualidades sejam amplamente aceitas ou, na ausência deste, por uma comissão de juristas. Da mesma forma criou-se um Conselho de Vigilância que controla os poderes , por exemplo, exige certas qualidades morais de quem pretenda disputar um cargo eletivo.
Não se pretende discutir aqui se este sistema é bom ou ruim, é democrático ou não, mas sim frisar a sua importância como elemento de coesão nacional durante o processo revolucionário. Um dos grandes efeitos deste sistema foi o de unir um país partido em duas partes, uns desejando um país com instituições ocidentais e outro desejando um país no qual as tradições religiosas fossem respeitadas.
O sangrento debate em torno deste tema já tinha mais de um século quando a Revolução eclodiu. Khomeini conseguiu a quase unanimidade - da esquerda reformista à direita religiosa - justamente proque conseguia harmonizar projetos diferentes de país em uma propsota cujos valores e princípios eram aceitáveis por quase todas as partes. O impasse entre os diversos grupos políticos, sociais, econômicos e religiosos passava a poder ser resolvido dentro da esfera institucional.
Evidente que este debate institucional não poderia ser desenvolvido nos turbulentos anos pós-revolução, com intensa luta entre tantas facções degenerando, geralmente, em conflitos armados, expurgos, radicalização ideológica. Contudo a instituição sobreviveu a Khomeini, mesmo que a um altíssimo custo em vidas comum a qualquer revolução
I – IDENTIDADE E ALTERIDADE: A TEORIA DO RECONHECIMENTO.
“Porque é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes os outros
nas suas pertenças mais estreitas e é também o nosso olhar
que tem o poder de os libertar.”
Amin Malouf (1998
A Terra já foi o centro do mundo por erro de percepção e de imaturidade científica. Depois o Sol tomou o seu lugar na cosmologia e as instituições humanas esforçaram-se por adoptar uma outra perspectiva. A verdade é que sempre que nos limitamos a aceitar apenas aquilo que nos é dado a conhecer e não permitimos um espaço para dúvidas e diferenças, a nossa natureza empobrece, estagna e, mais perigoso do que isso, estigmatiza e rejeita o que está para além da sua compreensão.
A identidade é uma das grandes questões, não só da Antropologia, uma ciência historicamente recente, mas também das restantes Ciências Sociais como a Filosofia ou a História. Desde o dia em que o indivíduo se auto-conhece como ser comunicante, que povos encontram povos e desse encontro resultam construções e delimitações de poder territorial, político, económico e cultural.
A afirmação desse espaço é feita por oposição ao do Outro e assim começa o relacionamento entre grupos, sejam eles nacionais, regionais, étnicos, culturais, linguísticos ou religiosos. E também começa o aprisionamento do Outro com definições ou atributos. Mas mais do que palavras ou conceitos, talvez o verdadeiro aprisionamento aconteça com o silêncio, ou melhor, com a ausência de reconhecimento.
Falamos da complexa necessidade humana, quer colectiva quer individual, de aceitação como factor de construção de identidade. Charles Taylor (1994), no seu ensaio “A Política de Reconhecimento” defende que a falta ou recusa de reconhecimento e/ou um reconhecimento deformado podem ser considerados formas de opressão e de expressão de desigualdades. Daí a sua defesa do carácter dialógico da entidade em que o que nós somos depende da interacção com os outros. Diz-nos ainda que a identidade é por nós sempre definida “em diálogo sobre e, por vezes, contra, as coisas que os nossos outros-importantes querem ver assumidas em nós” (p. 53).
Essa inevitabilidade da condição humana como dialógica sustenta então a necessidade de uma política de reconhecimento aliada a uma política de diferença. Isto porque, o universalismo do direito à igualdade e à dignidade não deve anular a unicidade, autenticidade e originalidade de cada indivíduo. Para compreender estas duas políticas, o autor explora a história de conceitos como a autenticidade e dignidade, à luz das teorias de Rousseau, Herder ou Stuart Mill.
É nas sociedades pré-democráticas que o conceito dignidade se estabelece como garante do universalismo e igualitarismo. Isto é, a dignidade passa a ser encarada como um valor comum a todos os indivíduos, ao contrário do conceito de honra que anteriormente legitimava todo um sistema de hierarquias sociais, logo desigualdades. Porque o reconhecimento está ligado à identidade, Taylor apresenta-nos a mudança, preconizada por Rousseau e Herder, na conceptualização da construção identitária. A noção de autenticidade engloba, não só o carácter original da identidade de cada um, como também a valorização moral da necessidade de se ser verdadeiro para com a própria identidade. Esta é a novidade de uma atitude introspectiva e interiorizadora de valores e modelos de vida. A autenticidade está dentro de cada um de nós, tal como está no meio de cada cultura. E essa autenticidade, parte integrante da identidade, constrói-se e manifesta-se, inevitavelmente, em diálogo com os outros.
À tese de Charles Taylor sucederam-se outras opiniões que, ora por aproximação ora por oposição, exploram conceitos-chave do texto original. Assim K. Anthony Appiah, em “Identidade, Autenticidade, Sobrevivência, Sociedades Multiculturais e Reprodução Social” (in Charles Taylor, 1994), esclarece sobre as diferenças entre identidade colectiva e identidade individual, da qual constam, por sua vez, duas dimensões, a colectiva e a pessoal, e explora as suas ligações. No espaço desta relação, as identidades colectivas produzem aquilo a que o autor chama de “manuscritos”, narrativas que ajudam os indivíduos a moldar e a construir itinerários de vida. Estes manuscritos de vida, em que encontramos representações, quer positivas quer negativas, passam a ter um carácter afunilador e selectivo na prática do reconhecimento.
Taylor, ao salientar ao longo do seu ensaio a dialogicidade inerente ao processo identitário individual e colectivo, a respectiva necessidade vital de reconhecimento, leva-nos a reflectir não só sobre algumas fragilidades do discurso multiculturalista contemporâneo mas também sobre a prática de reconhecimento das potências ocidentais ao longo da História.
Pensa-se que desde 1492 os europeus têm vindo a projectar desses povos (colonizados) uma imagem de seres um tanto inferiores, “incivilizados”, e, que, através da conquista e da força, conseguiram impô-la aos povos colonizados. (p. 46, Taylor).
Trata-se, de facto, de um reconhecimento incorrecto por parte dos impérios europeus dos povos não ocidentais que, em certos momentos históricos, em particular a partir do século XIX, permitiu a formação e reprodução de representações culturais estereotipadas e anuladoras da possibilidade de um reconhecimento justo e igualitário.
Quando e como é que tudo começou? Zia Sardar (1996) aponta a data de 1496 como o início do desenrolar do novelo. Cristovão Colombo chega às Américas e leva consigo uma frota marítima, mapas, marinheiros e uma promessa de um mundo novo, mas também um oculus mundi que moldou a descoberta de territórios e povos novos às concepções e tradições medievais (ainda presentes na Renascença) judaico-cristãs e eurocêntricas: “Acompanhava-o [Colombo] não apenas toda uma iconografia, mas também uma geografia mental que incluía uma antropologia de barbarismo” (p. 25, Sardar).
Imagens já esquecidas do Velho Testamento, a origem grega da palavra “bárbaro” (barbaroi, aquele que não falava grego), a invenção de criaturas híbridas na literatura grega clássica, todos estes factores contribuíram para a iconografia do Outro, baseada na visão bárbara de todo aquele que não é semelhante à norma europeia. Na Idade Média a imagem do “selvagem” ganha contornos diabolescos e a ideia de essa energia selvática poder também existir no interior do homem levou à obrigação quase moral de dominar, destruir, subjugar esse “selvagem” e rendê-lo à civilização. Esta construção de valores face o Outro motivou, entre outros factores, a grande empresa cristã das Cruzadas, a que Sardar se refere como o início do “padrão da violência cristã, internacional” (p. 35).
Mas retomando à chegada de Colombo ao Novus Mundi, podemos constatar toda uma apropriação imagética e geográfica baseada nos valores- pilares do classicismo e do cristianismo, em que a alteridade é claramente um facto não aceite e não compreendido. O indígena tanto é retratado como o bom selvagem, quando aceita a presença dos europeus, como é violentado, na sua caracterização, como canibal e bárbaro, quando oferece resistência. Além de que a aceitação dos indígenas dependia em muito da sua permeabilidade à conversão cristã, a qual fazia a distinção entre o que eram pessoas civilizadas e não civilizadas.
Esta categorização de alteridade vai manter-se durante muito tempo até ao momento em que se manifesta como justificativa de práticas como a escravatura e o colonialismo. Pascal Blanchard e Nicolas Bancel (1998) resumem a evolução do pensamento ocidental sobre o Outro do seguinte modo:
Depuis l’Antiquité, l’Occident a construit son systéme de valeurs et sa culture en prenant comme mirroir négatif l’Autre. Du mythe biblique de la malédiction de Cham, fils de Noé, au barbare de l’Empire Romain, un certain nombre de myhtes fondateurs ont irrigué la pensée occidentale, dessinant son rapport à l’altérité et à l’identité. Dans ce long processus, l’affirmation scientifique du concept de race, au milieu du XIXème siècle, offrira une légitimité idéologique aux conquêtes coloniales. (p. 13, Blanchard e Bancel)
Nos finais do século XIX, a Conferência Internacional de Berlim sobre África comprova com o famoso mapa cor-de-rosa todo o discurso europeu fundado em princípios cristãos e humanistas em que supostamente a “raça” branca, sendo superior económica e culturalmente, tinha o dever de civilizar os outros povos. Esta construção da imagem do Outro e da própria imagem da Europa vai servir os propósitos da ideologia colonialista. Blanchard e Bancel apresentam uma desconstrução do universo iconográfico e discursivo da política francesa que legitimou a minoração e a estigmatização do povo africano que, ainda hoje, perdura na perpetuação de estereótipos e de atitudes discriminatórias face ao actual movimento migratório Norte-Sul.
Esta questionação da construção da identidade dos povos europeus face à identidade “forjada” dos povos não europeus tem a validade de nos levar a uma reinterpretação de factos actuais como a rejeição de imigrantes e o ressurgimento de atitudes xenófobas na Europa. Blanchard e Bancel vão mais longe e, face ao bombardeio de imagens televisivas sempre negativas, catastróficas e miseráveis das realidades dos povos africanos, apresentam-nos as “ajudas humanitárias” quase como uma substituição da “missão civilizadora” de outrora, as quais têm perversamente alimentado imagens desvalorizadoras e inferiorizantes desses povos. Dizem-nos eles:
Cette construction d’une image stéréotypée des immigrés est parallèle à la diffusion d’un imaginaire sur l’Afrique essentiellement négatif et misérabiliste. Famines, guerres tribales, exodes massifs, incapacité politique et administrative, corruption, retour à la sauvagerie (comme au Rwanda ou en Algérie), épidémies (Sida), etc., se succèdent et dessinent le tableau d’un continent ravagé, abandonné à sa malédiction originelle, toujours incapable de s’assumer depuis les indépendances. L’humanitaire succède à la mission civilisatrice, accréditant l’incapacité des Africains à résoudre les problèmes du continent. L’altérité des immigrés noirs s’en trouve alors renforcée, les images de leurs sociétés d’origine renvoyant à celles de la barbarie africaine élaborées lors de la conquête coloniale. (p. 90, Blanchard e Bancel))
A questão da identidade não pode deixar de ser complexa pois a sua própria definição, ou melhor, composição, é também ela complexa (Amin Maalouf, 1998). Complexa no sentido em que a identidade de cada um de nós se compõe de elementos múltiplos que não se resumem aos que estão enumerados nos documentos oficiais. Cada um de nós tem uma pertença a uma tradição, a um grupo, a uma nacionalidade, e tem várias pertenças simultaneamente. Esse sentimento de pertença também é, por si só, algo complexo porque é mutável, muda ao longo da nossa vida e muda com os momentos históricos. Além disso, cada pertença leva-nos a estabelecer ligações com diferentes grupos de pessoas e, como a nossa identidade é múltipla, ela é assim perspectivada, vivida e defendida de muitas formas diferentes.
A consciência desta noção de pluralidade, de multitude de pertenças é defendida por Amin Maalouf como estrutura-base para uma nova atitude, certamente mais tolerante e menos violenta:
Se virmos a nossa identidade como sendo feita de pertenças múltiplas, algumas delas ligadas a uma história étnica e outras não, algumas ligadas a uma tradição religiosa e outras não; a partir do momento em que conseguirmos ver em cada um nós, nas nossas próprias origens, na nossa trajectória, os confluentes diversos, as contribuições diversas, as mestiçagens diversas, as diversas influências subtis e contraditórias; a partir deste momento, cria-se uma relação diferente com os outros, tal como com a nossa própria “tribo”. Deixa de haver simplesmente “nós” e “eles” - dois exércitos em posição de batalha que se preparam para o embate seguinte, para a vingança seguinte. (p. 42, Maalouf)
II – ORIENTALISMO E IMPERIALISMO: O APRISIONAMENTO DO OUTRO
Foi no século XIX que surgiram os termos “orientalismo” e “orientalistas” para designar os estudiosos que traduziam os textos orientais para Inglês e os próprios textos. A prática de tradução nesse momento da história europeia era motivada pela noção de que a conquista colonial necessitava de um conhecimento do povo conquistado. Daí resulta a ideia de conhecimento como factor de poder. Esta construção de discurso acabaria por ser questionada nos anos 70 do século XX.
Abordar a temática do orientalismo é assumir a obrigatoriedade de falar de Edward Said e da sua publicação de 1978, Orientalism, Western Conceptions of the Orient. Esta foi uma obra que lançou a questionação da construção de imagens, estereótipos e dogmas relativos a realidades culturais outras, neste caso o Oriente.
Edward Said defende que a visão do Oriente tem sido uma construção intelectual, literária e política do Ocidente como meio de este último ganhar autoridade e poder sobre o primeiro. Através da desconstrução de discursos, pensamentos e imagens produzidos ao longo dos últimos séculos, com incidência especial sobre a literatura europeia do século XIX, Said tenta provar que o Ocidente construiu a sua própria identidade por oposição à do Oriente. Ao longo desse processo identitário foi consolidada a ideia de que a diferença entre o Ocidente e o Oriente é a racionalidade, o desenvolvimento e a superioridade do primeiro. Ao segundo são-lhe atribuídas características como aberrante, subdesenvolvido e inferior.
Todo esse sistema de representações do Oriente permitiu, com o peso real de uma autêntica estrutura sociopolítica, e legitimou a construção dos grandes impérios coloniais europeus. Em finais do século XIX, o oriental é visto como um problema a resolver ou como alguém necessitado de um poder superior. É quando a apropriação ou consciencialização europeia do Oriente passa de textual e teórica para económica e militar. A colonização tem no discurso orientalista todo um fundamento e justificação para as suas estratégias. Impérios como o francês ou o inglês beberam dessa fonte.
A representação europeia do Oriente é uma formação, ou melhor, uma deformação, baseada na contemplação de uma vastíssima área geográfica a que nos habituámos a chamar de “este” e que comporta contextos culturais extremamente diferenciados da África do Norte, do Médio Oriente e da Ásia. Este tipo de generalização e de abstracção abortou possibilidades de conhecimento e de contacto directo com as realidades orientais modernas. Correspondendo o “este” abordado por Said ao Oriente islâmico ou árabe, o resultado da distorção foi a clara estigmatização dessas culturas, que são reduzidas ao estatuto de ameaças ao mundo ocidental. Confirma-se assim a teoria de Taylor de que uma deformação do reconhecimento do Outro pode ser uma forma de opressão.
Muitos dos estigmas relativos ao mundo árabe e islâmico, estudados pelo autor, podem ser ainda hoje verificados na onda de reacções pós 11 de Setembro 2001, quer nas esferas políticas quer no mundo académico. Talvez seja essa a maior virtude e contribuição do trabalho intelectual de Edward Said: o de ter iniciado o debate sobre questões como as representações sociais, a visão do Outro e a alteridade, o pós-colonialismo e o de ter promovido uma revigoração desta discussão académica que se mantém até aos dias de hoje.
III – ORIENTALISMO PORTUGUÊS: SINOFILIA, SINOFOBIA E ACADEMICISMO.
Há quem afirme que os portugueses criaram o primeiro orientalismo europeu a partir do século XVI. Não é crucial para este trabalho evocar autorias, mas na verdade as navegações marítimas portuguesas permitiram a construção de um império, não só territorial, geográfico, comercial, mas também cultural e imagético: o Oriente Português. Do contacto com culturas tão diferentes como a Índia ou a China, resultou uma construção da visão do Outro ao longo dos séculos.
De Junho de 1998 a Dezembro de 1999, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses organizou um ciclo de exposições intitulado “Memórias do Oriente”, na cidade do Porto, com o propósito de comemorar a primeira viagem à Índia. As exposições intituladas “Os Construtores do Oriente Português”, “Os Espaços de um Império” e “O Orientalismo Português” tinham como objectivo mostrar a apropriação do Oriente pelo olhar luso que se manifestou, ao longo dos tempos, nas diversas artes, na política, na vida quotidiana. As exposições, em especial a última, realçam o valor dos objectos presentes na amostra como verdadeiros documentos sobre a história do Orientalismo Português, apelidando-os “sinais de um oriente sucessivamente imaginado pelos portugueses”.
Dessa exposição resultou um catálogo muito rico em registos fotográficos de objectos de arte e em textos explicativos da temática: O Orientalismo em Portugal - Séculos XVI-XX (1999). Um dos textos do catálogo apresenta-nos uma perspectiva diacrónica do Orientalismo Português. António Manuel Hespanha fala de um modelo português de características próprias, enraizado no empreendimento da descoberta de rotas marítimas e consequente motivação para a abertura de outros espaços comerciais. Com o desenrolar das relações diplomáticas e comerciais, o Império Português foi-se construindo, à semelhança de outros impérios europeus, embora com uma prática de poder diferente das restantes:
Era antes uma rede não monótona de relações políticas, estabelecida sobre redes de relações políticas pré-existentes, deixadas subsistir como elementos de auto-governo, sujeitos a um controlo eminente, muitas vezes quase diplomático, da coroa portuguesa (p. 18, Hespanha).
O facto de a construção do Império Português estar também ligada a uma motivação claramente missionária, que se manifestou na preocupação e vontade de conhecer as outras línguas, religiões e costumes, levou a uma certa proliferação na época de diversos documentos escritos, certamente enriquecedores para a relação com o mundo oriental, sejam eles descrições militares, relatos comerciais ou literatura de viagens.
Já no século XVIII, em pleno Iluminismo, o “entusiasmo sinófilo” é anulado pela defesa da universalidade dos valores humanistas europeus. O fortalecimento de um sentimento de superioridade tecnológica, económica e política da Europa fez com que o Oriente passasse a ser visto segundo duas abordagens: como “campo de observação” e como “campo de expansão”. Esta diferença de perspectiva, etnocêntrica e minimizadora do Outro, abriu caminho para o projecto colonizador por parte das potências europeias.
No século XIX, o Orientalismo Português manifesta-se quase exclusivamente através de certos poetas simbolistas, como, por exemplo, Camilo Pessanha e António Feijó. Entretanto, a Conferência de Berlim (1885-86) leva Portugal a radicalizar as suas ligações com as colónias, no sentido de impor uma maior rigidez de ocupação territorial e apropriação política, especialmente em África. Assim as manifestações orientalistas reduzem-se, para além de alguns traços orientalistas na poesia simbolista, a uma presença nas artes decorativas. Até que no Estado Novo há uma revalorização das terras do Oriente, não para divulgar a cultura oriental per si mas para realçar as qualidades do poder colonizador e fortalecer a imagética imperialista.
Por fim, e ainda a partir do texto de Hespanha, enuncia-se um “Orientalismo Pós-Imperial” que se revela a quatro níveis: na presença viva (e revivadora de imagens) das comunidades indiana e chinesa nas cidades, segundo o trabalho levado a cabo pela Comissão dos Descobrimentos desde 1989, na presença de Macau e sua imagem de “a última pérola do império” e na “questão de Timor”.
O autor reforça ainda a existência de uma afectividade atemporal ao corpus “Oriente” do seguinte modo:
O Oriente continua a ser, ainda, uma memória histórica dourada. Não tanto a memória de feitos bélicos heróicos, com os quais o gosto dos tempos não se compadece tanto, mas de contactos pessoais e culturais, suaves e estruturantes. Ou seja, o Oriente funciona como o lugar por excelência (talvez com o Brasil) das excelências da nossa acção colonizadora – desse particular jeito (tão causticamente ironizado por Chico Buarque de Holanda no Fado Tropical) de governar pelo amor. (p. 32, Hespanha)
Encontrámos igualmente a publicação de uma pesquisa sobre a presença do Oriente mítico na literatura portuguesa do final do século XIX e respectivas manifestações orientalistas. Falamos da obra de Manuela Delgado Leão Ramos (2001) sobre António Feijó e Camilo Pessanha.
Efectivamente a literatura é um dos melhores filtros de imagens, discursos e conceitos sobre o Outro. Neste caso os poetas António Feijó, responsável pelo Cancioneiro Chinês, e Camilo Pessanha, poeta da Clepsydra, são objecto de uma análise sobre as respectivas expressões orientalistas. Mas este estudo contempla, de igual modo, uma reflexão crítica sobre os pilares fundadores do orientalismo e sua história.
Manuela Ramos partiu da sua questionação sobre a (in) existência de uma tradição orientalista portuguesa para construir uma pesquisa sólida e muito bem documentada relativa aos inúmeros, mas desconhecidos e desvalorizados, testemunhos dessa tradição.
Partindo de uma reflexão sobre o conceito de orientalismo defendido por Edward Said e uma contraposição assumida por Raymond Schwab (1950) e John Mackenzie (1995), a autora prepara-nos para uma atitude aberta, mas não menos crítica, face à problemática da construção orientalista de um Outro (termo, segundo ela, vazio de significado por uso excessivo e superficial). Este estudo conta com referências históricas valiosíssimas para a definição de um percurso orientalista nacional. Relatos de viagens, relatórios e documentos oficiais, textos literários, trocas epistolares, toda uma panóplia de registos escritos apresentados pela autora são testemunhos de um estudo sinólogo português já de longa data.
Manuela Ramos dá-nos a conhecer vários exemplos de imagem construída da China que, de acordo com diferentes momentos históricos e políticos, ora é positiva ora é pejorativa. Somos então confrontados com uma série de autores e seus textos que vão do século XVI ao XIX. Interessante é, sem dúvida, a incursão no mundo da criação literária de Camilo Pessanha e António Feijó. Para além destes, Eça de Queirós e Wenceslau de Morais, escritores possuidores de uma outra clareza intelectual que lhes permitiu um discurso contrário ao da dominante eurocentrista.
Falar de imagens da China na nossa literatura serviria, certamente, um excelente exercício académico, mas essa descodificação ou identificação não é a abordagem prioritária para este estudo. No entanto, podemos recuperar algumas conclusões quanto ao olhar português sobre a China no século XIX. Num deles aferimos que “a imagem da China sofre em Portugal o mesmo processo que no resto da Europa: a passagem de uma sinofilia a uma sinofobia.” (p. 42).
Da aclamação da grandiosidade da civilização chinesa, os escritores portugueses passam a apontar como características negativas dessa cultura tudo o que não se rege segundo os padrões europeus, quer dizer tudo o que lhes é diferente. A China tem os seus períodos de convulsão e confrontação, os quais serão interpretados maleficamente, abrindo assim caminho para uma atitude claramente eurocêntrica. Como exemplo temos uma transcrição do livro Os Chins de Macau (1867) de Manuel de Castro Sampaio:
Os chins têm geralmente uma constituição forte, mas mediana estatura e pouca robustez. São muito cautelosos e desconfiados, e ao mesmo tempo pacíficos e humildes. Dotados de sagacidade e astúcia, estão sempre dispostos a enganar. … Contudo nestes últimos tempos a presença dos europeus na China tem-lhes feito um grande bem moral, porque já hoje os chins em grande parte estão desenganados dos muitos erros em que viviam. (p. 43, Ramos)
Do deslumbramento passa-se ao desencanto sobre a China e este é um processo obviamente complexo, ao qual Manuela Ramos aponta como eventuais causas o progresso técnico e industrial crescente na Europa – que reforça uma ideia de estagnação do Império Celeste ao não acompanhar a evolução e o expansionismo imperialista ocidental, em particular o britânico, que começaria por moldar discursos desvalorizadores do Outro, justificativos de uma intervenção ou mesmo de uma apropriação.
De igual modo, é-nos dado a conhecer a outra face da moeda através do livro de Ignácio de Andrade, Cartas Escriptas da India e da China (1843). Nessa obra, o autor acusa directamente o poder político inglês de ser o responsável pela criação e divulgação de uma imagem depreciativa dos chineses, devido a razões históricas e diplomáticas:
O carácter dos ingleses é tão avesso do que têm os chineses, que desde Lord Anson até Lord Amhers, isto é, de 1741, época em que Anson entrou no rio Tigre, até 1816, quando Amhers chegou a Pequim, os bretões foram sempre repelidos; por isso tomam vindicta, descrevendo a China com as mais negras cores. (p. 46, Ramos)
Esta denúncia tão acutilante faz-nos pensar que o orientalismo talvez não tenha sido apenas baseado numa relação de dominação intelectual e política, como defende Edward Said, mas também num propósito de conhecimento e entendimento mútuos. Manuela Ramos reforça exactamente a existência de um orientalismo positivo ao explorar obras de escritores como Wenceslau de Morais e Eça de Queirós.
De facto, o registo irónico e prazenteiro de Eça de Queirós apresenta-nos uma visão contrária e crítica da hegemonia ocidental. Ora leiamos:
Os países orientais são feitos para enriquecer os países ocidentais – e por isso com os Egiptos, os Tunis, os Tonquins, as Conchinchinas, os Siãos (ou Siões?) se fazem para a Inglaterra e para a França boas e pingues colónias. Eu sou civilizado, tu és bárbaro – logo dá cá primeiramente o teu oiro, e depois trabalha para mim. A questão está toda em definir bem o que é ser civilizado. Antigamente pensava-se que era conceber de um modo superior uma arte, uma filosofia e uma religião. Mas como os povos orientais têm uma religião, uma filosofia e uma arte, melhores ou tão boas como as dos ocidentais, nós alteramos a definição e dizemos agora que ser civilizado é possuir muitos navios couraçados e muitos canhões Krupp. Tu não tens canhões, nem couraçados, logo és bárbaro, está maduro para vassalo e vou sobre ti! (Cartas de Paris, s.d., Ramos).
Extraordinária a clareza deste diagnóstico do discurso intelectual e político da altura, o qual poderia ser, sem maiores dificuldades, transposto para o século XX.
Outro contributo para valorização das culturas não-ocidentais e para o combate ao imperialismo militar, económico e cultural europeu encontra-se na obra de Wenceslau de Morais, uma voz dissidente do poder político nacional. Manuela Ramos valoriza a seguinte passagem de A Vida Japonesa:
Quando se pensa atentamente na educação, na civilização ocidental, que os países europeus que têm colónias, impõem aos indígenas de tais colónias, havemos de convir que, por um explicável interesse do bem próprio, o que elas principalmente impõem, é a escravidão, é a repressão do natural desenvolvimento dos princípios éticos dos mesmos indígenas. A orientação dada ao trabalho, aos costumes, à moral, à religião, tudo tão diferente daquilo que germina na sentimentalidade dos povos submetidos, não pode classificar-se de outro modo. (p.79, Ramos)
No entanto, a maioria dos autores portugueses pautaram os seus livros por generalizações e reproduções de estereótipos negativos dos chineses (veiculados por escritores europeus) que resultaram em deformações da representação do povo chinês.
Após esta breve resenha sobre a pesquisa de Manuela Ramos, que poderá ser dito sobre um orientalismo português actual? Existe? Não existe? Se recuperarmos o sentido original do termo, e não a acepção negativa de Said, podemos afirmar que há uma tendência crescente para uma atitude de disponibilidade, curiosidade e investimento intelectuais que se manifesta, entre outros, nos meios universitários. Para além dos conhecidos Instituto Cultural de Macau, Centro Científico e Cultural de Macau e a Fundação Oriente, no âmbito da iniciativa privada, constatamos várias iniciativas académicas que abrem caminhos para pesquisa, investigação e divulgação de culturas orientais, entre elas a chinesa.
São vários os Centros de Estudos que existem no país. Acreditando que nos falham certamente alguns, existem em Lisboa o Centro de Estudos Chineses no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, a Unidade de Estudos Asiáticos no Instituto Superior de Economia e Gestão e o Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica Tropical. Temos igualmente outros centros que se dedicam a questões intrínsecas ao contacto entre culturas diferentes, como, por exemplo, o Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, o Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta e o Centro de Estudos Multiculturais da Universidade Independente.
Indo para Norte, encontramos na Universidade de Aveiro o Centro de Estudos Asiáticos que administra um Curso de Mestrado em Estudos Chineses e na Universidade do Minho temos o Centro de Línguas e Culturas Orientais.
Serão estes os sintomas de uma postura positiva, intelectualmente produtiva e culturalmente estimulante, perante a alteridade do Outro? Estamos certos de que sim, que o estudo, a descoberta, a questionação, a reflexão levar-nos-ão a uma outra capacidade de comunicação e interacção entre grupos, sejam eles culturais, étnicos, linguísticos, políticos, religiosos ou económicos.
IV – OCIDENTALISMO,
UNIVERSALISMO
E MULTICULTURALISMO:
QUE CAMINHO?
O conceito de orientalismo, abordado antes, levanta a questão da representação de uma cultura com a interferência da própria cultura. Entretanto, o diálogo académico tem contribuído para a definição de caminhos possíveis de maior reconhecimento e imparcialidade face ao Outro.
A publicação NIAS – Nordic Newsletter of Asian Studies tem certamente enriquecido esse diálogo. Em 1994, Stein Tonneson, professor investigador, escreve “Orientalism, Occidentalism and Knowing about Others”. Este artigo surge como resposta ao artigo de Denys Lombard (edição nº 1, 1994) em que este realça aspectos positivos do academicismo orientalista. Depois da análise crítica de Tonnesson do discurso orientalista com base em valores universalistas (edição nº 2, 1994), aparece Ing-Britt Trankell que escreve sobre formas extremas de orientalismo e sobre a inoperacionalidade do universalismo (edição nº 1, 1995). O diálogo continua com o texto de Yeu-Farn Wang em que é feita uma reflexão sobre o multiculturalismo e outras alternativas possíveis (edição nº 2, 1995).
O objectivo do artigo de Stein Tonneson era reflectir sobre a relação entre o Oriente e o Ocidente e o papel dos intelectuais e investigadores nessa relação. A estes agentes culturais é feito o apelo de não terem a pretensão de se acharem exteriores ao seu objecto de estudo mas sim que sintam a sua participação activa na construção dos futuros padrões dos binómios Oriente-Ocidente, Sul-Norte.
Tonneson defende que a relação Oriente-Ocidente tem sofrido importantes transformações nos últimos anos e agrupa-as em seis grandes processos de mudança: o triunfo do capitalismo de mercado livre e mundialização dos media e da informação, dois processos claramente ligados à globalização cultural; o crescimento económico no Extremo Oriente que aparenta estar a mudar a direcção do “pêndulo histórico” do Ocidente para o Oriente; depois da queda dos regimes comunistas ocidentais e o fim da Guerra-Fria, o desenho do conflito político deixou de dividir o Ocidente em dois e colocou o Ocidente e Oriente contra um e outro; o impacto da Guerra do Golfo em 1991; o revivalismo mundial do ritualismo, religião e tradição. Os últimos quatro processos apontados apresentam-se como os mais paradoxais considerando que tanto contradizem a tendência globalizante do mundo actual, e afastam o Ocidente e o Oriente, como os fazem aproximar.
A questão é como os intelectuais ocidentais e orientais devem relacionar-se com esses dois pólos culturais, aos quais o autor aponta três vias (tese, antítese e síntese): os ocidentais deverão definir mais conscienciosamente e promover os seus próprios valores – a tese; deverão ainda comprometer-se a uma análise crítica e moral da dominação ocidental secular do Oriente e manter uma distância significativa dos regimes sociais repressivos orientais – a antítese. Resta equacionar o resultado final, ou melhor, a síntese: recusar a dicotomia Oriente-Ocidente em nome de uma abordagem universal.
A opção pelo universalismo pode parecer idealista, mas Tonneson realça a sua possibilidade ancorada nos chamados “construtores de pontes culturais”, como a indústria de computadores, as editoras, as agências de viagens, as agências de fundos internacionais, os professores de inglês, as companhias de telecomunicações, os refugiados e imigrantes, o capitalismo tecnológico, toda uma panóplia de opções que podem ajudar a tornar o mundo mais uno e unido no conhecimento do Outro.
Mas antes de divulgar a síntese, Tonneson fez questão de apresentar os protagonistas (na sua opinião) da atitude ocidental e da anti-ocidental que muito contribui para compreender o impacto dos intelectuais na formação das ideias e concepções sobre a já referida dicotomia.
A primeira é representada por Samuel P. Huntington (1993), autor de um artigo polémico, “Clash of Civilizations”, onde defende o conceito de uma ordem mundial baseada exactamente no conflito entre civilizações originado pelas diferenças culturais. Huntington defende que os valores tidos como basilares do Ocidente têm pouca projecção ou aceitação junto das outras “civilizações”, pelo que o Ocidente deve estar preparado para os defender, quer isto dizer, preparado para um futuro conflito mundial radicado nas diferenças “civilizacionais”
Do outro lado, encontra-se Fouad Ajami que, logo nesse ano de 1993, afirmou que os actores da política internacional são os Estados-nação e não as civilizações. Rejeitou igualmente a ideia de Huntington da influência superficial da cultura ocidental na Ásia. Tonneson refere também as opiniões de Liu Binyan (China) e Kishore Mahbubani (Singapura) e, com grande destaque, o trabalho académico já mencionado de Edward Said.
Esta enumeração de académicos não ocidentais surge como meio de apresentação de uma outra via possível de intervenção intelectual: o ocidentalismo. Por oposição ao orientalismo, esta seria a resposta positiva do mundo árabe e, na defesa deste conceito, encontramos Hassan Hanafi (Egipto). No seu livro de 1992, Introduction to the Science of Occidentalism, Hanafi pretende objectivar o Ocidente da mesma maneira que os ocidentais o fizeram com o Oriente e promover assim uma tradição intelectual árabe independente. Para isso, os árabes deveriam libertar-se da dominação mítica ocidental e rejeitar a ideia de uma cultura universal que, segundo ele, não é mais do que um outro mito criado para enganar os que estão dominados, os “conquistados”.
Foi a partir da argumentação do ocidentalismo que Tonneson chegou à sua síntese, claramente contrária ao projecto de Hanafi: uma abordagem humanista e universalista que concretize e contemple as palavras de Liu Binyan: the best of all civilizations, not emphasizing the differences between them.
Seguindo o decorrer desta discussão académica, em 1995 deparamo-nos com a visão de Yeu-Farn Wang (China), investigadora do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade de Estocolmo. Wang refere o uso do termo “orientalismo” por Edward Said como uma tentativa de desmistificar o imperialismo cultural ocidental, considerando, no entanto, que o conceito ainda hoje é controverso, e propõe que a vantagem de repensar e reconstruir noções de cultura não passe por essa denominação.
Por outro lado, Wang levanta críticas à teoria universalista de Tonneson, a qual assenta no velho modo de pensamento ocidental dominador, visto ter de se decidir quem decide o que é melhor para todos. No entanto, não a rejeita completamente e recupera daí a necessidade de conhecer o Outro. A propósito do multiculturalismo, a teoria é considerada como romântica e pouco interventiva, embora seja a good beginning for mutual understanding and tolerance, for knowing about others, but we should not stop here. A pouca eficácia, quer do universalismo quer do multiculturalismo na redução de conflitos, no aumento de compreensão mútua e na resolução de questões globais, leva Wang a apresentar duas propostas de abordagem.
A primeira alternativa chama-se a “redução do poder na produção do conhecimento”. Aqui, noções como etnocentrismo devem ser completamente erradicadas do cenário de produção de conhecimento para que esse tipo de exercício de poder não estilhace o diálogo entre culturas. Como saldo do etnocentrismo, temos pois a prática dominante ocidental de produção de padrões não só culturais mas também económicos, em particular ao longo do último século.
A segunda proposta está ligada à necessidade de “unir e não dividir pessoas”. Conceitos como orientalismo e o choque de civilizações surgem como promotores de separação e de desconfiança pelo carácter alarmista dos seus discursos, ao contrário do universalismo e multiculturalismo, que, mesmo assim, se apresentam como opções mais construtivas. A ênfase é, pois, dada ao apelo final de Wang:
Knowing about others with respect, keeping our differences with tolerance, rejecting ideas and institutions that continue to divide us, and linking us with others without making any universal claims on norms and values. (Wang)
Conhecer os outros com respeito e com neutralidade não tem sido uma prática regular e, muito menos fácil, em vários sectores intelectuais ou académicos. Por exemplo, Charles Taylor (1994) aponta algumas fragilidades do discurso multiculturalista contemporâneo em que podemos constatar que a exigência de juízos de valor positivos é tendencialmente homogeneizante e empobrecedora. E quando os juízos de valor são predominantemente de proveniência ocidental, deparamo-nos com um “auto-enclausuramento nos critérios etnocêntricos” (p. 93).
Taylor defende, então, uma ética de posicionamento no estudo do Outro, o pressuposto do valor igual que apenas exige de nós
Uma disposição para nos abrirmos ao estudo comparativo das culturas do tipo de nos obrigar a deslocar os nossos horizontes nas fusões resultantes. Acima de tudo, exige que admitamos estarmos muito aquém desse último horizonte que poderá tornar evidente o valor relativo das diferentes culturas. (p. 93, Taylor)
A opção de recuar no tempo e recuperar este desenrolar de teorias sobre o relacionamento com o Outro deve-se ao impulso de querer evidenciar a complexidade e dificuldade em estabelecer consensos e linhas de actuação que, ainda que académicos, se reflictam claramente nas sociedades e respectivas instituições.
Será que estamos perante um beco sem saída? Estarão os –ismos esgotados? Ou é possível dar um passo em frente? A verdade é que, mesmo querendo contrariar tendências eurocêntricas ou hegemónicas, a abordagem intelectual ou académica que tem definido os caminhos de comunicação com o Outro tem sido sempre de definição ocidental. O assimilacionismo, o melting-pot, o pluralismo, o interculturalismo, o multiculturalismo, a única variação é a sua origem (americana, francesa).
Será que não somos permeáveis a outras definições, a outras leituras? Não será possível conceber a existência de outros interlocutores que são, para além de nós, actores no nosso palco, e que possam contribuir para o desenrolar da peça? Não será que ainda falta muita curiosidade da nossa parte, que é necessário dar credibilidade a outras correntes teorico-intelectuais? Afinal, não estamos nós num mundo globalizado?
Zia Sardar (1996) lança um desafio a todos nós, ocidentais e não ocidentais (se é que esta dicotomia é a mais operacional, representativa e justa) de modo a recuperarmos
O nosso passado plural e, através dele, o nosso futuro plural de forma a, mais uma vez, podermos começar a ter histórias, meta-histórias e mitografias, formas variadas e igualmente válidas de ver o mundo e reconstruir o passado, e respostas igualmente válidas a acontecimentos e ideias que dêem base a um futuro plural para os povos do mundo em toda a sua diversidade. Esta é a única maneira de reivindicarmos os debates silenciados pelo êxito de Colombo. (p. 81, Zardar).
V – EUROPA, A FORTALEZA DE FALSAS FRONTEIRAS.
1. POLÍTICAS DE IMIGRAÇÃO.
A Europa está a ser construída como uma comunidade alargada ou quer ser assumida como tal. O problema é que, neste momento, os sectores da comunidade, ou melhor, os Estados membros, reflectem sobre políticas de imigração. Ao que parece a Europa não sabe o que fazer a milhares de pessoas que circulam na sua geografia. É que muitas dessas pessoas são oriundas de um espaço não-europeu, não-rico, não-democrático, não-católico ou não-protestante. A essas pessoas são-lhes identificadas variadíssimas razões ou causas para a sua emigração, mas não lhes são reconhecidos os mesmos direitos de cidadania e de mobilidade.
A Europa está fechada na sua concha e atribui perturbações socioeconómicas aos que vêm de fora. E parece que em breve acontecerá qualquer coisa como ”o último a entrar que feche a porta”. O problema é a proposta de fechar fronteiras como solução para o desafio de acolhimento e de integração de indivíduos imigrantes de diferentes origens. Fechar fronteiras num espaço que se quer livre, democrático, plural, parece um grande retrocesso na construção da Comunidade Europeia e uma deturpação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Uma vez mais, as consequências do processo de globalização fazem-se sentir: a globalização não é só cultural, tecnológica, económica, é também laboral. Os mercados financeiros internacionalizaram-se, a economia obedece a factores transnacionais e, por conseguinte, a mão-de-obra desloca-se conforme os sintomas de cada economia nacional (não sendo esta a única causa de imigração). Estamos perante a mundialização do trabalho. A mobilidade individual, o direito de procurar outros mercados de trabalho e outras condições de vida parece inquestionável. No entanto, o poder político europeu diz ser necessário controlar o número de pessoas a entrar e circular nos países e pensa em sistema de quotas.
Entretanto, as pessoas circulam e trazem as suas identidades compostas de diferenças, umas visíveis outras ocultas, mas que são inapagáveis no contacto com as culturas de destino. Mesmo negando direitos, diminuindo impactos ou reduzindo a importância este é, sem dúvida, um encontro de expressões étnicas. Se a cultura europeia consome muita da chamada “World Music”, se os Festivais Internacionais ocorrem em qualquer cidade capital europeia, se a comunidade científica valoriza a diversidade e as elites políticas fazem bandeira dos valores democráticos, porquê a resistência em encontrar outras abordagens para as migrações e em promover outra atitude face aos imigrantes?
O discurso sobre o Outro está outra vez inflamado. É o regresso de discursos utilitários e preconceituosos. Alain Morice, investigador francês na área das Migrações e Sociedade e colaborador na publicação Manières de voir do Le Monde Diplomatique, fala do conceito de imigrante “útil” e a sua instrumentalização num cenário de falta de mão-de-obra.
Em novembro de 2000, Manières de Voir teve como tema “Le Travail Mondialisé” e, no artigo intitulado “De l’”immigration zéro” aux quotas”, Morice faz breves apontamentos quanto à orientação do poder político francês face à imigração em França desde o fim da Segunda Guerra Mundial até à actualidade. Até aos anos 70 o fluxo imigratório foi ao encontro da grande necessidade de mão-de-obra até que, nas décadas de 80 e 90, a crise económica levou a atitudes xenófobas e à vontade política de fechar fronteiras. Mas, simultaneamente, neste princípio de século, pondera-se a importância dos imigrantes para colmatar o envelhecimento da população e o futuro défice demográfico, para assegurar o ciclo de produção, garante das pensões sociais, e manter postos de trabalho, em especial os de tipo 3D (demanding, dangerous, dirty).
Retomando um título do Le Figaro Economie (2000), o autor projecta a questão ao nível de toda a Europa: combatida por razões políticas, será a imigração combatida por razões económicas? O poder económico pondera a falta de pessoal qualificado, particularmente na área das novas tecnologias, e o poder político questiona o ajustamento dos fluxos imigratórios à lei da oferta e da procura. Esta é, segundo o autor, a conjuntura ideológica vigente que manipula políticas de imigração que respeitam muitos princípios excepto os do imigrante enquanto cidadão:
La conjoncture idéologique actuelle révèle, une fois de plus dans l’histoire de certains pays européens, le caractère opportuniste, c’est-à-dire utilitariste et pragmatique, des politiques d’immigration.(Morice)
Ainda no mesmo número de Manières de Voir encontramos um artigo muito interessante de Saskia Sassen, professora de Sociologia na Universidade de Chicago, que questiona até quando a imigração é estudada como um fenómeno isolado, nacional e autónomo de todas as transformações que se vivem com a globalização. A pergunta tem sido mal colocada: o problema não estará no mau controlo da imigração por parte dos Estados mas no modo como as políticas de imigração se enquadram no cenário actual da mundialização económica e dos acordos internacionais sobre direitos humanos.
Em “Mais pourquoi émigrent-ils?”, Saskia Sassen enumera os novos actores políticos das migrações que raramente são identificados como tal: as empresas multinacionais que alteram a economia tradicional, originam uma mão-de-obra móvel e criam ligações entre os países procuradores de capitais e os exportadores de capitais; os governos cujas intervenções militares levam à deslocação de populações e fluxos de refugiados e migrantes; o Fundo Monetário Mundial (FMI) e as suas medidas rigorosas que originam uma emigração doméstica ou internacional por parte dos mais pobres como estratégia de sobrevivência; os acordos do mercado livre que alimentam os fluxos de capitais, serviços e informações transfronteiriços, e com estes a circulação de trabalhadores especializados.
Sassen apela para a necessidade de relacionar as migrações às políticas susceptíveis de as terem provocado e não de as considerar como consequência directa de factores como a pobreza e assim imputar a responsabilidade ao imigrante pela sua escolha individual de emigrar.
Il est assurément plus compliqué de tenir compte de cet impact que de voir dans l’émigration une simple conséquence de la pauvreté, le résultat du choix individuel des émigrants. Or il importe de rattacher les faits migratoires aux politiques susceptibles de les avoir provoqués (...) il ne s’agit ni d’invasions de masse ni de mouvements spontanés de la pauvreté vers la richesse.(Sassen)
Refere ainda as dificuldades que a construção económica da Europa Ocidental tem levantado no que diz respeito ao esforço de equilíbrio entre regimes diferentes na definição de circulação de capitais e, por conseguinte, de imigrantes.
VI – PORTUGAL NA ROTA DO OURO.
No século XIX os portugueses escolhiam um trajecto migratório além-Atlântico com o Brasil como destino. Já em pleno século XX, nos anos 50 e 60, o trajecto passa a ser intra-europeu, com especial destaque para a França e a Alemanha. Com a crise do petróleo de 73-74, registou-se um abrandamento na emigração de tal forma que se chegou a recear um retorno em bruto dos nossos cidadãos emigrados (M. B. Rocha-Trindade, 1995). Nos anos 90, Portugal surge como um país de acolhimento de cidadãos de múltiplas nacionalidades. País dito tradicionalmente de emigrantes, transforma-se numa opção de destino.
Ao longo das décadas anteriores assistimos a uma migração do hemisfério sul para o do norte, ou seja, dos grupos colonizados para os respectivos países ex-colonizadores, o chamado “regresso das caravelas” (Bruto da Costa, 2001). Actualmente a relação entre o país de origem e o país de destino é talvez mais isenta de ligações históricas e o trajecto geográfico toma rumos mais alternativos. Talvez possamos dizer que a “mala de cartão” nos é devolvida.
Este movimento de fora para dentro, sem aviso prévio, é recebido primeiramente com indiferença, talvez até com um pouco de ingenuidade. Até que, nestes últimos anos, as diferentes vagas de imigrantes fizeram com que os portugueses olhem, com olhos de ver, quem está ao seu redor: ucranianos, moldavos, búlgaros, marroquinos, paquistaneses, indianos, africanos, chineses. Este melting pot, tão característico de países grandes como os Estados Unidos ou a Inglaterra, dissemina-se pelo nosso pequeno território nacional.
Nos passeios da rua, nos transportes públicos, nos supermercados, nos cafés, várias línguas convivem discretamente. A tolerância é confundida com distanciamento como se este fosse o garante de uma convivência tranquila, aceite e, acima de tudo, verdadeiramente paritária. Na verdade, o desconhecimento das diversas expressões culturais atenua surpreendentemente o impacte das mesmas. É uma parede de vidro, deixa ver o outro mas não o deixa aproximar.
À excepção de algumas recepções calorosas e integradoras de imigrantes de Leste, verificadas em pequenas cidades, chamadas de “ondas de solidariedade”, o nível de aceitação deste fluxo migratório não é facilmente verificável. O que contrasta com a visibilidade social dos próprios grupos e suas diferenças culturais.
Esta imigração não se reveste de nenhum cariz de exclusividade, muito pelo contrário, enquadra-se e justifica-se pela conjuntura internacional actual e respectivos fenómenos de dinâmica populacional. As causas dessa dinâmica aparentam ser múltiplas. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a População, podem ser a economia, o ambiente degradado, a política, os conflitos, a conjugação de alguns destes factores ou de todos eles (Rocha-Trindade, 1995). O que se passa é que cerca de 100 milhões de pessoas no mundo não residem no país onde nasceram. O porquê deste facto pode ser a chave para a compreensão e aceitação social das migrações.
Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o número de estrangeiros residentes em Portugal, com autorizações de permanência, atinge os 178 mil (até 24 de Maio 2002) oriundos de 144 países. Os países de origem com maior número de imigrantes são a Ucrânia (64.457) e o Brasil (32.707), seguidos da Moldávia (12.507), Roménia (10.886), Rússia (7.024), Angola (6.730) e a China surge em sétimo lugar da lista (4.595). Para darmos um rosto mais concreto à multiplicidade de origens dos imigrantes no nosso país, referimos ainda mais alguns países: Guiné-Bissau (4.577), Índia (4.166), Paquistão (3.911), Bulgária (2.466), São Tomé e Príncipe (2.116), Guiné-Conacry (1.800), Marrocos (1.501) e Bangladesh (1.158).
Mas, ainda que o país precise de mão-de-obra e de medidas de equilíbrio populacional, os governantes defendem uma maior regularização e controlo da imigração, em especial a ilegal. Figueiredo Lopes, ministro da Administração Interna, defende o sistema de quotas e a definição de três critérios para a concessão de vistos: as necessidades do mercado de trabalho, as necessidades em sectores fundamentais na economia nacional e a distribuição geográfica, de acordo com a capacidade de acolhimento de cada região (in Visão, 6 Jun 2002).
Resta então perceber quais serão os apelativos ou as facilidades que Portugal oferece aos imigrantes para que eles continuem a escolher este destino, mesmo com o agravar das condições de acesso ao processo de legalização. De facto, Portugal partilha de vários factores de atracção da Europa do Sul que se verificam actualmente: maior fragilidade nos controlos fronteiriços, grande área de zona costeira propícia à entrada de clandestinos, facilidade de entrar apenas com um visto de turismo, a ligação histórica-colonial com as ex-colónias portuguesas de África, alguma modernização económica desde a década de 70, a existência de actividades sazonais, a especialização da mão-de-obra que criou a necessidade de mão-de-obra não especializada, o decréscimo da natalidade e o envelhecimento demográfico (Catarina Oliveira, 2000).
VII – O OUTRO CHINÊS “MESMO AQUI AO LADO”.
A diáspora chinesa consta das grandes diásporas mundiais, como a hindu, a cigana, a judaica. Ela está documentada desde o século XIII e desenvolveu-se ao longo de períodos históricos conturbados por guerras, invasões, fomes. Há alguns anos atrás, a diáspora chinesa contava com cerca de vinte milhões no Sueste Asiático e dois milhões no resto do mundo (Rocha-Trindade, 1995).
A atribuição do termo “diáspora” justifica-se por cinco factores: a dispersão geográfica por várias partes do mundo, o afastamento face ao local de origem, o factor tempo que se reflecte na passagem de várias gerações, o sentido de identificação com a origem e o assumir referências da cultura de origem. No caso chinês, é notória a existência de uma “identidade sem territorialidade”, marca inequívoca de diáspora.
Não querendo fazer uma história da emigração chinesa, podemos referir as suas “cinco grandes vagas”: a “emigração antiga” caracterizada pela constituição de chinatowns nos diferentes locais de destino; os “novos emigrantes” que deixaram a China depois de 1965; a emigração de classes superiores da burguesia durante a Segunda Guerra Mundial; a emigração de jovens crentes na sua participação na construção da América e que sofreram sérias dificuldades de integração; a emigração clandestina organizada a partir do sul da China e com ligações fortes com gangs das chinatowns (Catarina Oliveira, 2000).
A emigração chinesa para Portugal enquadra-se nos movimentos migratórios europeus. Os primeiros chineses a estabelecerem-se no país fizeram-no em 1920 e estavam profissionalmente ligados à área do comércio ambulante. Durante o Estado Novo, cresceram várias comunidades chinesas em colónias portuguesas. Nos anos 70, em Moçambique a comunidade chinesa era de uma dimensão e importância bastante relevante, cerca de 7.500 chineses. Em Timor-Leste, antes da invasão Indonésia, contavam-se perto de 10.000 e, apenas, em Angola, a comunidade tinha uma reduzida expressão numérica. Com a independência dos países, a partir de 1974, os chineses do ultramar escolheram como destinos o Brasil, Portugal e Macau, muitas vezes como ponto de passagem para outros países como o Canadá e os Estados Unidos da América.
Em Portugal a presença do grupo chinês cresceu em 695,8% de 1991 para finais de 1998, isto é, de 356 chineses no país, em Abril de 1991, passa a registar-se um número de 2.477 chineses em 1998. Em termos de distribuição geográfica, 13,8% dos chineses encontravam-se no norte do país, 10,5% no centro e 8% no sul (Bastos e Bastos, 1999). Recentemente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras aponta o número de 4.595 chineses legalizados no país (in Visão, 6 Jun 2002).
De referir que, nas estatísticas de 1991, havia uma indicação diferenciada entre macaenses e chineses e, em relação a 1998, há apenas um número único referente a chineses. No registo da Base de Dados do Secretariado Entreculturas do Ministério da Educação, constata-se uma demarcação do número de macaenses inscritos no sistema educativo oficial, no qual supostamente estão integrados os chineses. Assim, esta divergência no tratamento estatístico torna pouco linear uma leitura da situação real do grupo chinês.
Podemos salientar que, segundo o Consulado da Embaixada da Republica Popular da China, em 1997, o número de chineses em Portugal seria perto dos 5.000, dos quais cerca de 1.000 seriam originários de Moçambique e Angola (Bastos e Bastos, 1999).
Como explicar então a diferenciação de estatísticas entre várias fontes, sejam elas oficiais ou associativas? A pesquisa feita por Catarina Oliveira (2000) refere quatro factores explicativos dessa diferenciação: “Primeiro, devemos considerar a presença clandestina da imigração chinesa. Em segundo lugar, como veremos pelos dados da Conservatória do Registos Centrais, muitos chineses adquiriram na última década a nacionalidade portuguesa, pelo que podem continuar a pertencer à comunidade sem ter nacionalidade chinesa [de 1985 a 1996 adquiriram a nacionalidade portuguesa 5.853 chineses, dos quais 5.415 tinham residência em Macau e somente 12 em Portugal]. Não podemos esquecer ainda que os dados do SEF, referentes a estrangeiros com residência legalizada, indicam apenas os imigrantes que têm autorização de residência, excluindo os vistos de turismo e de estudo, entre outros, a partir dos quais muitos estrangeiros entram em Portugal e alguns cá ficam em situações que podem ou não resvalar para a clandestinidade. Finalmente devemos considerar que a avaliação da presença de chineses em Portugal, por membros da “comunidade”, pode referir-se ao seu grupo de pares, em geral, e ao referir-se ao seu grupo incluir aqueles que têm origem chinesa, mas têm outra nacionalidade.” (p. 12).
O que sabemos destes imigrantes, do seu percurso migratório, das suas motivações? Factores de atracção e de repulsão aparentam estar na origem desta emigração. Apesar do crescimento económico recente da China, resultante da política “um país, dois sistemas”, a verdade é que esse crescendo de riqueza só se tem verificado nas zonas urbanas e costeiras. Além do imparável crescimento demográfico (apesar de rigorosas e questionáveis medidas políticas de controlo da natalidade) que se relaciona com uma alta percentagem de desemprego. Quanto ao percurso, é possível descrever três rotas de emigração: a aérea, a marítima e a terrestre. De salientar que a escolha da rota depende mais da natureza do movimento emigratório, ou seja, se é legal ou ilegal, do que da geografia de destino. O mais recorrente é uma conjugação das três possibilidades de rota ao longo do trajecto (Catarina Oliveira, 2000).
A maioria dos imigrantes chineses em Portugal é oriunda da Província Chinesa de Zhejiang e entram ilegalmente em Portugal por via terrestre. Permanecem nessa situação durante muito tempo, movimentando-se entre vários empregadores ou entre diferentes estabelecimentos do mesmo empregador (consideremos também nos outros Estados Schengen) e utilizam Portugal como país de trânsito para outros destinos (Maria José L. Ramos, 1999).
O estudo recente de Catarina Oliveira sobre a comunidade chinesa em Lisboa confirma a existência de uma “classe de tipo empresarial-comercial que se inter cruza na emergência de um mercado étnico” (p. 3). Este mercado assenta na rede de contactos, quer com o local de origem quer com comunidades de outros países e é ele que assegura a mão-de-obra e o abastecimento de bens (para os restaurantes e para venda nas lojas de roupa, bijuteria). Apesar da desvalorização da actividade comercial no país de origem, é notória a tendência dos imigrantes chineses para as áreas da hotelaria, restauração e comércio, em que, surpreendentemente e ao contrário de outros grupos étnicos, se verifica um grande número de trabalhadores por conta própria. Questiona-se, no entanto, esta perpetuação da actividade comercial face à sua estigmatização na origem. Talvez as dificuldades de integração numa nova sociedade condicionem a escolha para um ramo de exploração já garantido pelos pares étnicos.
No referido estudo é ainda apresentada uma leitura diferenciada quanto às estratégias de incorporação entre os imigrantes descendentes de chineses naturais de Moçambique e os chineses naturais da China. O grau de dependência do negócio étnico, dos segundos, face a uma outra independência e variação profissional dos primeiros, marca uma diferença entre estes dois grupos que, acima de tudo, não os torna rivais ou incompatíveis. Muito pelo contrário, os provenientes de Moçambique, por dominarem melhor a língua portuguesa e indiciarem uma outra integração na sociedade portuguesa, servem de ponte de contacto para os que vivem maiores dificuldades de adaptação.
Face à dispersão geográfica dos imigrantes chineses pelo país e à inexistência de uma concentração dos imigrantes tipo chinatown, é-nos permitido reflectir sobre o singular ou o plural das palavras “comunidade chinesa”, isto é, devemos considerar a presença de um grupo étnico chinês, disperso no espaço nacional, ou defender a multiplicidade de grupos étnicos chineses em várias cidades e assumir possíveis traços distintivos de cada comunidade. Conduzirá esta última leitura para um enriquecimento do olhar sobre este grupo?
2. REPRESENTAÇÕES DO OUTGROUP CHINÊS.
Antes de abordarmos o trabalho de campo aplicado à Comunidade Chinesa de Portimão, é interessante partilharmos os resultados de um estudo sobre os estereótipos dos portugueses quanto aos grupos étnicos presentes no país e, em particular, dos chineses. O estudo de Joana Miranda (1994) foi baseado na aplicação de um questionário a uma amostra de estudantes portugueses do 11º ano de escolaridade das Escolas Secundárias do Concelho do Seixal, no ano lectivo de 1993/94.
Partindo de uma problematização sobre a noção de estereótipo e suas funções sociais e psicológicas, são-nos apresentadas as seguintes constatações: os estereótipos são incorrectamente aprendidos, são sobregeneralizações, não coincidem com os factos que descrevem e são rígidos. Os estereótipos “desenvolvem-se de acordo com a evolução das relações intergrupais como também as justificam e as antecipam.” (p. 85).
O questionário pedia aos estudantes que escolhessem cinco adjectivos de uma lista de setenta e nove que, na sua opinião, melhor caracterizavam os seguintes grupos: alemães, brasileiros, cabo-verdianos, chineses, ciganos, espanhóis, franceses, indianos, ingleses, judeus, originários dos PALOP, portugueses e timorenses. Também lhes era pedido que indicassem se consideravam os adjectivos que tinham escolhido positivos ou negativos e que assinalassem, numa escala de –5 até +5, o grau de semelhança e/ou diferença entre o grupo e o dos portugueses.
Os dez adjectivos mais atribuídos aos chineses foram: tradicionalistas (79), cultos (70), inteligentes (61), disciplinados (60), eficientes (60), organizados (56), económicos (48), exóticos (48), negociantes (47) e calculistas (42). O facto mais curioso deste estudo, no que diz respeito à estereotipização dos chineses é que, segundo a percentagem de vezes em que o sinal de + é atribuído, os chineses encontram-se no topo da escala, quer isto dizer que os estereótipos que os estudantes tinham acerca dos chineses, eram estereótipos positivos. Realmente os adjectivos atribuídos aos chineses, tal como aos ingleses, são os mais positivos do estudo, mas também muito diferentes do que foram atribuídos aos portugueses. Além de que a positividade dos estereótipos é um factor independente, por exemplo, do grau de semelhança que é atribuído aos Chineses, em que estes são o grupo considerado o mais diferente do grupo dos Portugueses.
A conclusão do estudo diz-nos que
À positividade do estereótipo dos chineses está, decerto, subjacente o fascínio, a valorização de uma cultura perspectivada como exótica, a valorização de características como a inteligência, a disciplina, a economia, as quais não são, curiosamente, atribuídas ao ingroup. (p.182, Miranda).
Interessante seria, com certeza, aplicar de novo o questionário para verificar a estabilidade, ou não, dos estereótipos, visto que os mesmos, tal como a autora do estudo afirmou no início do trabalho, reflectem as relações inter grupais e suportam, muitas vezes, as atitudes assumidas perante esse grupo. A partir daí seria igualmente possível e desejável uma reflexão sobre a integração do grupo na sociedade portuguesa.
IX – INCLUSÃO OU EXCLUSÃO: OS DOIS LADOS DO ESPELHO.
Aprofundemos a análise sobre as respostas dos portugueses. Nelas não encontramos a expressão de uma imagem negativa dos chineses, o exogrupo, mas em comparação com a auto-imagem dos portugueses, o endogrupo, parece-nos que esta última é claramente positiva. Podemos aferir que não há uma categorização negativa do exogrupo mas sim uma valorização do endogrupo? Assim sendo, podemos estar perante a expressão subtil de preconceito, preditor de comportamentos de discriminação e de racismo, segundo um estudo de Jorge Vala, Rodrigo Brito e Diniz Lopes (1999).
Na pesquisa intitulada “Expressões dos Racismos em Portugal” são estudadas diferentes manifestações do racismo e são ponderados vários preditores de atitudes discriminatórias. Um dos interesses deste estudo é a constatação de que o racismo já não se constrói ou se expressa pelo tradicional preconceito negativo sobre um exogrupo mas sim a partir da valorização da imagem positiva de um endogrupo e da negação da atribuição de elementos positivos ao exogrupo. Desta transformação resultam as formas flagrante e subtil de racismo.
Isto é, numa sociedade em que a norma é anti-racista, a discriminação assume contornos subtis ao manifestar-se através da negação de estereótipos e emoções positivas face a um exogrupo, tornando-se essa negação um claro preditor de comportamentos discriminatórios. A subtileza do processo de categorização do exogrupo passa também pelo reforço das diferenças culturais, em que o endogrupo se afirma como distinto, logo potencialmente como superior ao exogrupo.
A questão a colocar é a seguinte: os portugueses expressam um preconceito subtil face à comunidade chinesa na medida em que não indicam atributos negativos e poucos positivos (à excepção da categorização como muito trabalhadores) e não estabelecem contactos intergrupais? Vejamos as três dimensões do preconceito subtil, segundo Jorge Vala:
(…) a percepção de que o exogrupo não se conforma aos valores tradicionais da sociedade, nomeadamente aos valores do trabalho e do sucesso; a acentuação das diferenças culturais entre o endogrupo e o exogrupo; e a incapacidade de exprimir emoções positivas relativamente aos membros do exogrupo. (p.172, Vala, 1999)
Nos resultados do inquérito não encontramos a presença, pelo menos de um modo óbvio, destas dimensões. No entanto, preocupa-nos a tendência do endogrupo para uniformizar e estabelecer uma imagem generalista e limitativa do exogrupo. Para Jorge Vala esta será uma outra forma subtil de estabelecer diferenciações entre os grupos e abrir caminhos para a discriminação:
Esta estratégia consiste em descrever de forma mais rica, com mais traços e com mais traços positivos, o endogrupo do que o exogrupo, e corresponde à crença implícita de que o endogrupo é formado por entidades diferentes, por indivíduos autónomos, enquanto o exogrupo é, no seu todo, uma entidade internamente indiferenciada. Não será esta uma forma indirecta de desumanizar o exogrupo? (p.100, Vala, 1999)
O inquérito que foi aplicado junto dos portugueses não permite averiguar, com clareza e profundidade, o verdadeiro posicionamento dos portugueses face aos chineses. Isto porque a sua incidência recai mais sobre os possíveis estereótipos e não sobre as emoções que, segundo Jorge Vala, poderão revelar-se como melhores preditores do racismo. No entanto, temos de realçar a não constatação de qualquer expressão de racismo flagrante, facto por si só positivo. Fica por aprofundar a hipótese dos portugueses expressarem de um modo subtil, à imagem do que acontece em outros países europeus, atitudes discriminatórias e de racismo, sem porem em causa as normas anti-racistas.
Do outro lado do espelho, ou seja, o grupo chinês expressa uma auto-imagem positiva. É interessante o facto de se considerarem conversadores, o que está em oposição à categorização feita pelo endogrupo.
Quanto à opinião do exogrupo chinês sobre o endogrupo português, verificamos que se trata de uma visão igualmente positiva, em que não se constata atributos negativos. Apenas se evidencia a categorização dos portugueses como muito conversadores, facto pouco claro quanto à sua positividade ou negatividade. No entanto, parece-nos que não há uma sobrevalorização do próprio grupo chinês ou, por outro lado, uma depreciação do grupo português.
Concentremo-nos agora em duas perguntas, presentes nos dois inquéritos, significativas para a averiguação das relações inter-étnicas entre os dois grupos. A primeira é se aceitariam, na família, um casamento com um português/um chinês. O endogrupo responde, com clareza, que aceitaria esse casamento. Esta será, por ventura, uma resposta “politicamente correcta”, numa sociedade que se assume como tolerante, não discriminadora e tendencialmente multicultural.
Do outro lado do espelho, encontramos alguma indefinição ou hesitação. As respostas do exogrupo oscilam entre o sim e o não sei, o que reflecte uma possível questionação da preferência por laços familiares exclusivamente co-étnicos. Ou então um sinal de abertura progressiva à cultura da sociedade de acolhimento.
A segunda pergunta a salientar é se consideram a comunidade chinesa integrada na cidade de Portimão. O grupo português revela alguma incerteza pois a resposta não sei é a mais significativa, seguida do sim e do não com igual percentagem. Trata-se de uma atitude de reserva e de algum distanciamento.
O grupo chinês, ao responder sobre a integração da sua própria comunidade, divide-se entre as opções de resposta não e não sei. Podemos talvez dizer que tal se deve às dificuldades no processo de adaptação de um grupo imigrante. Mas também devemos colocar a hipótese da influência do carácter provisório desta imigração. Apesar disso, a maioria dos inquiridos chineses dizem gostar de viver em Portimão. Facto este indiciador de uma possível criação de outros laços que não os profissionais à comunidade receptora.
A última pergunta do inquérito aos portugueses pedia-lhes uma palavra que associassem à China. Surpreendentemente metade dos inquiridos não respondeu. Pensamos que tal facto se deve a duas possíveis razões: recusa em se comprometer com uma resposta de cariz pessoal e dificuldade em caracterizar uma realidade cultural distinta da portuguesa por falta de conhecimento.
As palavras mais indicadas foram o adjectivo “chinoca” e o substantivo “arroz”. Ao debruçarmo-nos sobre estas palavras, verificamos que as mesmas podem originar uma visão redutora da comunidade chinesa. A palavra “arroz” tanto pode ser remetida ao hábito alimentar secular dos chineses como à presença do grupo chinês na restauração. Em ambas possibilidades, a generalização de características é notória e negativa, no sentido em que uniformiza toda uma comunidade e não possibilita uma abordagem ou conhecimento mais individualista das várias componentes deste grupo.
Por outro lado, a palavra “chinoca” reveste-se de uma mistura de sentimentos afáveis e estigmatizantes. Ou seja, é uma palavra com história, representativa de um passado em comum já muito longínquo (ou, pelo menos, sentido como tal). Não sendo propriamente uma palavra prejorativa, a verdade é que também não abona muito a favor dos chineses. É uma expressão não negativa mas isenta de positividade, talvez até portadora de um valor de superioridade por quem a diz. Assim, a escolha desta palavra poderá alimentar factores preditores de um posicionamento discriminatório face a comunidade chinesa.
Aos chineses foi-lhes pedido uma palavra para definir os portugueses. Também, neste caso, quase metade não respondeu e os adjectivos apurados foram: bom, preguiçoso, pobre, lento e simpático. É interessante realçar que, deste cinco adjectivos, três são negativos (preguiçoso, pobre e lento) e dois são positivos (bom, simpático). Estas respostas parecem-nos objectivas, mesmo que não evitem um tom generalizador e que estejam ligadas a um possível perfil de trabalhador. Podemos dizer que as parcas relações entre os dois grupos se resumirão a eventuais contactos laborais ou a contactos comerciais? Uma vez mais, é clara a ausência de um conhecimento mútuo mais abrangente entre as duas comunidades.
A análise das respostas aos inquéritos permite-nos apenas possibilidades de leitura quanto ao nível de inclusão do exogrupo chinês na cidade de Portimão. Deste modo, este grupo não é alvo de exclusão ou de atitudes de discriminação e a receptividade do endogrupo português à sua presença enquadra-se nas normas anti-racistas das sociedades contemporâneas.
Não obstante, constata-se a pouca inter-acção e convivência entre os dois grupos, o que reflecte a necessidade de amadurecimento de uma atitude de abertura, disponibilidade e conhecimento do Outro. Parece-nos que a sociedade portuguesa está a dar passos importantes na consciencialização do seu cariz, cada vez mais, multicultural, mas será necessário promover mais pontes de contacto com os grupos imigrantes, quer ao nível de estruturas sociais, quer ao nível da produção cultural.
A multiculturalidade é, hoje em dia, um fenómeno irrefutável em muitos países europeus. Em Portugal a fragilidade da vivência intercultural é visível mas possível de ser potenciada no seu melhor. Isto é, a multiculturalidade ainda é uma das melhores respostas que uma sociedade moderna, receptora de movimentos migratórios, pode oferecer não só a estes últimos mas também aos seus próprios membros.
Neste trabalho, analisámos anteriormente visões académicas diversas sobre o conceito de Multiculturalismo e abordámos uma proposta de desenvolvimento da aplicação deste conceito: a produção de conhecimento isenta de relações de poder, de etnocentrismos e juízos de valor.
É esta produção de conhecimento que faltará a muitas comunidades portuguesas, como a de Portimão. Um conhecimento isento, ético, promotor de relações inter-étnicas, neste caso entre as comunidades portuguesa e chinesa. Acreditamos que a via do conhecimento não deve ser um privilégio dos académicos mas sim uma plataforma de entendimento acessível ao cidadão comum.
Através da produção, divulgação e partilha de conhecimento será mais fácil combater estereótipos e transformar comportamentos discriminatórios. Para que o Multiculturalismo seja um conceito vivenciável e verificável e não uma mera leitura sociológica das actuais sociedades.
CONCLUSÃO
Para compreender os recentes movimentos imigratórios em Portugal é necessário equacionar todas as actuais implicações da globalização, ou melhor, todas as facetas da globalização. Como dissemos anteriormente, a globalização não é só cultural, tecnológica ou económica, mas também, e como consequência desta última, laboral.
A mundialização do trabalho faz com que a mobilidade das populações seja uma constante nos dias de hoje, especialmente porque se verificam grandes disparidades nas condições de vida e nas situações políticas em muitos países. Logo, a procura de uma vida melhor é um impulso presente em milhares de indivíduos e, muitas vezes, é mesmo um acto de sobrevivência.
Se globalizamos expressões culturais, desenvolvimentos tecnológicos, ideologias e políticas, economias e mercados, não podemos estancar, por receios e inseguranças, a mobilidade de indivíduos. Porque são eles a sustentação humana de tudo o resto. E se assim fizermos, estamos a viciar o próprio termo globalização se esta se estende apenas àqueles que já têm acesso a certas condições de vida.
A imigração chinesa em Portugal deve ser, então, enquadrada nos grandes movimentos migratórios intra-europeus e intercontinentais. É uma imigração claramente motivada por razões económicas, o que justifica a relativa facilidade e rapidez de implantação de um negócio étnico: os restaurantes de comida chinesa e, recentemente, as lojas de objectos decorativos e lojas de pronto-a-vestir, como se verifica na cidade de Portimão. Essa implantação está assegurada através de uma rede de contactos co-étnicos e é sustentada por uma mão-de-obra quase exclusivamente familiar. Nos últimos meses, observa-se uma alteração nessa mão-de-obra, que passou a incluir indivíduos imigrantes de outras origens, como a eslava ou brasileira.
Os portugueses, desde sempre, foram muito receptivos a esse marcador cultural que é a cozinha chinesa. No entanto, não se regista um relacionamento espontâneo e aprofundado entre as duas comunidades, a acolhedora e a imigrante. Também não se registam hostilidades ou discriminações, talvez porque a comunidade chinesa delimitou o seu território de intervenção – económica, claro! – e se protege no espaço da sua privacidade familiar e co-étnica.
Como podemos interpretar esta estratégia – consciente? – de invisibilização e separação? Uma primeira resposta possível será o carácter aparentemente provisório desta imigração, em que o objectivo de angariar fundos e posteriormente regressar ao país de origem está claramente presente nos imigrantes. Uma outra justificação para esta estratégia poderá ser o parco domínio linguístico da língua do grupo dominante, motivador de um afastamento relacional e social.
Face ao exposto, fica por clarificar a necessidade de reconhecimento por parte do grupo étnico chinês, ou seja, segundo a teoria de Charles Taylor, a existência de uma defesa ou construção identitária chinesa em função do Outro e dos diferentes meios envolventes em que se encontram.
Não havendo pontes de comunicação entre os dois grupos, à excepção dos momentos de interacção comercial, resta pesquisar a imagem que cada grupo constrói de si mesmo e do Outro. Esta pesquisa permite evidenciar certos estereótipos na categorização e descrição do Outro e, assim, tentar desmontar a sustentabilidade dos mesmos.
Apesar de se verificar a tendência para uma caracterização generalista do chinês, factor preditor de possíveis comportamentos discriminatórios, não se constatou nos resultados dos inquéritos a expressão de posicionamentos racistas ou de exclusão.
Por outro lado, os estereótipos expressos na escolha de palavras levam-nos a pensar na relação histórica entre os povos chinês e português. Uma relação longa mas actualmente ausente das nossas referências. Será que poderíamos afirmar que alguma herança do orientalismo português se manifesta na construção da imagem dos portugueses sobre os chineses? Ou será que a convivência entre os dois grupos, no caso particular da cidade de Portimão, é reveladora de um posicionamento orientalista dos portugueses, no melhor sentido da palavra, isto é, um posicionamento receptivo e curioso sobre o Outro chinês? Poderemos nós aplicar o termo orientalista à representação identitária dos chineses pelos portugueses?
Pensamos que o arquétipo mental do português sobre o chinês é fruto de um processo de distanciamento histórico e geográfico, que cristalizou, de alguma maneira, a representação étnica do chinês e é, assim, portador de certas distorções identitárias.
Por outro lado, cremos que o orientalismo académico português está vivo e pena é que não se assista a manifestações ou expressões dessa atitude de reencontro e de descoberta do Outro noutras esferas que não as universitárias.
Consideramos importante a produção e activação de conhecimento sobre e entre as duas comunidades para que a vivência da multiculturalidade seja uma realidade. Acreditamos que a sociedade portuguesa está cada vez mais consciente da sua composição pluralista, multicultural e que procura ter uma resposta de tolerância. Mas será necessário investir em iniciativas – políticas, culturais, económicas, sociais, comunitárias – mais assertivas no que diz respeito à aceitação e integração de grupos étnicos diferentes, como o grupo chinês.
Não obstante, verificamos algumas iniciativas no campo das artes, como por exemplo, a exposição sobre Arte Chinesa Contemporânea – Subversão e Poesia, promovida na Culturgest, de Janeiro a Março de 2003; como também nos apercebemos de uma atitude de curiosidade e exploração de certos marcadores culturais chineses no nosso comércio, como é o caso de toda uma panóplia de objectos decorativos orientais e algum vestuário. Podemos ainda referir a presença visível de livros de autores chineses nas livrarias e hipermercados portugueses, especialmente depois da atribuição do Prémio Nobel de Literatura ao escritor Gao Xingjian.
Todos estes sinais de abertura são caminhos por percorrer ao encontro da diferença e da tolerância. Caminhos que nos ensinarão, com certeza, que a nossa identidade não se constrói por oposição às outras mas por relacionação. Que a diversidade é um valor não só cultural, social e étnico mas também ético e ideológico. Que o nosso olhar, relembrando Amin Maalouf, tem o poder grandioso de libertar o Outro.
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