Mude-se o que for necessário na doutrina liberal desde que, protegida pela falácia de que “o poder” é apenas “o poder do Estado” e apoiada na eterna retórica da defesa da democracia, a grande mídia e os interesses que representa e defende continuem intocados.
Venício Lima
Desde a publicação do relatório da Hutchins Commission – “A free and responsible press” (Uma imprensa livre e responsável) – nos Estados Unidos, em março de 1947, a justificativa predominante (não a única) para o importante papel da mídia nas democracias liberais é a chamada “teoria da responsabilidade social da imprensa” (RS).
Como se sabe, a Hutchins, uma iniciativa dos próprios empresários de mídia, por eles financiada, foi criada em 1942 como resposta a uma onda de críticas diante da crescente oligopolização do setor e da formação das redes de radiodifusão (networks). Tornava-se cada vez mais difícil sustentar a doutrina liberal clássica do mercado livre de idéias (a free marketplace of ideas) onde a liberdade de expressão seria exercida por cidadãos e grupos empresariais de mídia em igualdade de condições. A saída foi a criação da teoria da RS.
Centrada no pluralismo e na diversidade de idéias – agora não mais no mercado, mas deslocados para dentro dos próprios veículos, regidos pelo profissionalismo, objetividade e imparcialidade das notícias – a Hutchins acreditava que a teoria da RS seria capaz de legitimar o argumento de que a liberdade da imprensa é uma extensão da liberdade de expressão individual [cf. nesta Carta Maior, “A responsabilidade social da mídia”].
Condição para o funcionamento da teoria da RS
Não só nos EUA, mas, sobretudo, em países europeus com forte tradição de imprensa partidária, a teoria da RS passou, no entanto, a enfrentar sérias dificuldades e a doutrina liberal clássica teve que se render à intervenção do Estado no mercado para garantir e estimular a concorrência através de agencias reguladoras independentes.
Teóricos da democracia liberal como Giovanni Sartori, por exemplo, afirmam que uma das condições que permitem uma opinião pública relativamente autônoma é “uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos”, isto é, uma “estrutura policêntrica dos meios de comunicação”.
De qualquer forma, o vínculo entre liberdade de expressão, liberdade da imprensa e democracia passa pela crença liberal de que o livre debate feito por indivíduos racionais e bem informados no mercado de idéias conduzirá necessariamente à formação de uma opinião pública independente capaz de tomar as melhores decisões para o conjunto da sociedade e, mais ainda, à prevalência da verdade. E uma das premissas para a formação de uma opinião pública independente, é a existência de competição entre os meios de comunicação.
Dessa perspectiva, a liberdade da imprensa encontraria sua justificativa na medida mesma em que permitisse a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade – vale dizer, garantisse a universalidade da liberdade de expressão individual no debate público.
Nova proposta
O jornal “El Clarin” de Buenos Aires, em conflito aberto com o governo Kirchner – e vice-versa – publicou em sua página editorial, no dia 24 de abril, o artigo “El periodismo, infraestructura de la democracia” do executivo italiano Carlo De Benedetti, ex-Olivetti e ex-Pirelli, e atual presidente do Grupo Editorial L’Expresso.
No artigo, De Benedetti introduz um novo argumento sobre o papel da mídia nas democracias contemporâneas. Diante do “fluir anárquico de la información online, en el bombardeo continuo de datos que nos llegan en forma de bytes o píxeles”, argumenta ele que somente
“el buen periodismo puede seleccionar, ordenar, interpretar y proponer a los ciudadanos una representación de la realidad que les permita participar en la vida pública y ejercer el necesario control sobre el poder . Sin esa función esencial — y es la historia que estamos viviendo en nuestras sociedades occidentales — la multiplicación infinita de un saber aparente se traduce en un ruido de fondo invasivo, en cuyo efecto alienante se afirman los peores liderazgos populistas. Ese es el gran riesgo que enfrentamos”.
Para De Benedetti, portanto, não é mais a pluralidade e a diversidade na circulação de idéias, vale dizer, a universalização do direito à comunicação – que muitos de nós acredita estar sendo estimulada pelas novas TICs, sobretudo, pela internet – que fortalece a democracia. Ao contrário, são necessárias “personas intelectualmente preparadas, que sepan encontrar, seleccionar, ordenar e interpretar las noticias” e que garantam “una función esencial (da mídia), sin la cual no sólo desaparecería la gran información, sino que se vería castigada la democracia misma”.
O artigo termina afirmando que “quizás hasta ayer el rol del periodista estaba más en buscar la noticia, hoy en cambio está en seleccionarla e interpretarla. Pero la función de perro guardián frente al poder sigue intacta” [cf. http://www.clarin.com/opinion/periodismo-infraestructura-democracia_0_468553234.html ].
À la Lampedusa
É impossível ler o artigo de Carlo De Benedetti no “Clarin” e não se lembrar da máxima de Tomasi di Lampedusa no clássico “Il Gattopardo”: “é preciso mudar, para continuar tudo como está”.
Vale dizer, mude-se o que for necessário na doutrina liberal desde que, protegida pela falácia de que “o poder” é apenas “o poder do Estado” e apoiada na eterna retórica da defesa da democracia, a grande mídia e os interesses que representa e defende continuem intocados.
Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
A responsabilidade social da mídia
No Brasil, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior ao trabalho da Hutchins Commission, de 1947.
Venício Lima
Há 62 anos, em 27 de março de 1947, era publicado nos Estados Unidos o primeiro volume que resultou do trabalho da Hutchins Commission – “A free and responsible press” (Uma imprensa livre e responsável). A Comissão, presidida pelo então reitor da Universidade de Chicago, Robert M. Hutchins, e formada por 13 personalidades dos mundos empresarial e acadêmico, foi uma iniciativa dos próprios empresários e foi por eles financiada.
Criada em 1942 como resposta a uma onda crescente de críticas à imprensa, a Comissão tinha como objetivo formal definir quais eram as funções da mídia na sociedade moderna. Na verdade, diante da crescente oligopolização do setor e da formação das redes de radiodifusão (networks), se tornara impossível sustentar a doutrina liberal clássica de um mercado de idéias (a marketplace of ideas) onde a liberdade de expressão era exercida em igualdade de condições pelos cidadãos. A saída foi a criação da “teoria da responsabilidade social da imprensa”. Centrada no pluralismo de idéias e no profissionalismo dos jornalistas, acreditava-se que ela seria capaz de legitimar o sistema de mercado e sustentar o argumento de que a liberdade de imprensa das empresas de mídia é uma extensão da liberdade de expressão individual.
Em países europeus, com forte tradição de uma imprensa partidária, no entanto, a teoria da responsabilidade social enfrentou sérias dificuldades e a doutrina liberal clássica teve que se ajustar à implantação de políticas públicas que regulassem o mercado e estimulassem a concorrência.
Responsabilidade Social
A responsabilidade social tem sua origem associada à filosofia utilitarista que surge na Inglaterra e nos Estados Unidos no século XIX, de certa forma derivada das idéias de Jeremy Bentham (1784-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Nos anos pós Segunda Grande Guerra, a responsabilidade social se constituiu como um modelo a ser aplicado às empresas em geral e às empresas jornalísticas estadunidenses, em particular, e começou a ser introduzido através de códigos de auto-regulação estabelecidos para o comportamento de jornalistas e de setores como rádio e televisão. O modelo está, portanto, historicamente vinculado aos interesses dos grandes grupos de mídia.
A responsabilidade social se baseia na crença individualista de que qualquer um que goze de liberdade tem certas obrigações para com a sociedade, daí seu caráter normativo. Na sua aplicação à mídia, é uma evolução de outra teoria da imprensa – a teoria libertária – que não tinha como referência a garantia de um fluxo de informação em nome do interesse público. A teoria da responsabilidade social, ao contrário, aceita que a mídia deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, mas subordina essas funções à promoção do processo democrático e a informação do público (“o público tem o direito de saber”).
Para responder às críticas que a imprensa recebia, a Hutchins Commission resumiu as exigências que os meios de comunicação teriam de cumprir em cinco pontos principais:
(1) propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de opinião);
(2) servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;
(3) retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;
(4) apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo; e por fim,
(5) distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.
Esses cinco pontos se tornariam a origem dos critérios profissionais do chamado 'bom jornalismo' – objetividade, exatidão, isenção, diversidade de opiniões, interesse público – adotado nos Estados Unidos e “escrito” nos Manuais de Redação de boa parte dos jornais brasileiros.
Liberdade de imprensa vs. responsabilidade da imprensa
Analistas estadunidenses consideram que a Hutchins Commision talvez tenha sido a responsável por uma mudança fundamental de paradigma no jornalismo: da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa. Teria essa mudança de paradigma de fato ocorrido?
No Brasil, certamente, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior à Hutchins Commission. Basta que se considere, por um lado, a concentração da propriedade e a ausência de regulação na mídia e, por outro, as enormes dificuldades que enfrenta até mesmo o debate de temas e projetos com potencial de alterar o status quo legal.
Um exemplo contemporâneo são as resistências – que já se manifestam – em relação à realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicações.
As recomendações da Hutchins Commission, se adotadas pelos grupos de mídia no Brasil, representariam um avanço importante. Para nós, a teoria da responsabilidade social da imprensa permanece atual, mesmo 62 anos depois.
Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
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