sábado, 26 de setembro de 2020

As ambições psicototalitárias do capitalismo de vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 


As possibilidades políticas dessa ferramenta foram amplamente utilizadas para garantir a vitória do Brexit na Inglaterra, a eleição de Donald Turmp nos EUA e, sem dúvida alguma, para derrubar Dilma Rousseff no Brasil.

Por

 Fábio de Oliveira Ribeiro

 -

30/05/2020

 

Compartilhar

 

 

 

 

As ambições psicototalitárias do capitalismo de vigilância

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O texto anterior desta série tratou da expropriação e do uso da voz dos usuários dos novos produtos idealizados pelos capitalistas da vigilância [aqui]. No item II, do capítulo 9, segunda parte do livro, Shoshana Zuboff aborda uma questão realmente explosiva: a exploração psicológica e política do excedente comportamental expropriado pelo capitalismo de vigilância.

Antes de entrar diretamente no assunto, farei um pequeno desvio para dar ao leitor a oportunidade de perceber a verdadeira dimensão do problema levantado pela autora de The Age of Surveillance Capitalism.

No final do século XIX início do século XX, Sigmund Freud descobriu um novo continente. Estudando as neuroses, fixações e outras patologias emocionais dos seus pacientes, ele desenvolveu uma série de hipóteses científicas sobre o funcionamento da psique humana e criou um método para descobrir as causas mais profundas e ignoradas dos problemas que afetavam as vidas deles.

“O surgimento da transferência sob forma francamente sexual – seja ela de afeição ou de hostilidade -, no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado ou induzido pelo médico nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais irrefutável de que a origem das forças impulsionadoras da neurose está na vida sexual. A este argumento nunca foi dado o grau de atenção que ele merece, pois se isso tivesse acontecido, as pesquisas neste campo não deixariam nenhuma outra conclusão em aberto. No que me diz respeito, esse argumento continua a ser decisivo, mais decisivo mesmo do que qualquer das descobertas mais específicas do trabalho analítico.” (Os Pensadores, Sigmund Freud, A história do movimento psicanalítico, Abril Cultural, São Paulo, 1978, p. 43)

Além de provar a origem sexual dos problemas psicológicos, a transferência seria uma evidencia inquestionável da impossibilidade de cura do paciente. Ao longo de toda sua carreira, Freud cautelosamente defendeu que autoconhecimento adquirido durante o processo de psicanálise poderia apenas ajudar as pessoas a conviver melhor com seus problemas.

Discípulo de Freud, Carl G. Jung se distanciou do mestre ao defender a tese oposta:

“…É o ego que ilumina o sistema inteiro, permitindo que ganhe consciência e, portanto, que se torne realizado. Se, por exemplo possuo algum dom artístico de que meu ego não está consciente, este talento não se desenvolve e é como se fosse inexistente. Só posso trazê-lo à realidade se o meu ego o notar. A totalidade inata, mas escondida, da psique, não é a mesma coisa que uma totalidade plenamente realizada e vivida.” (O homem e seus símbolos, Concepção e organização de Carl G. Jung, O processo de individuação, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008 p. 213)

Freud pretendia ajudar seus pacientes a conhecer e a conviver com seus problemas. Jung defendeu a tese de que seria possível curar os pacientes fazendo-os trazer à realidade dos seus egos talentos que eles ignoravam. Um via o homem como um ser falho que poderia minimizar suas falhas. O outro acreditava que o homem podia superar suas limitações aperfeiçoando-se. Ambos acreditavam que sob a superfície do comportamento humano observável existia um imenso continente. Freud queria explorá-lo cientificamente para aperfeiçoar seu método, Jung acreditava que ele poderia ser conquistado por qualquer pessoa.

Colocando o foco exclusivamente naquilo que podia ser observado, Burrhus Frederic Skinner pensava diferente:

“… Uma ciência adequada do comportamento deve considerar os eventos que ocorrem por sob a pele do organismo, não como mediadores fisiológicos do comportamento, mas como parte do comportamento em si. Pode lidar com estes eventos sem presumir que tenham uma natureza especial ou que devam ser conhecidos de uma maneira especial qualquer. A pele não é tão importante como limite. Eventos privados e públicos têm o mesmo tipo de dimensões físicas.” (Os Pensadores, Pavlov/Skinner, Crítica das explicações alternativas do comportamento, Abril Cultural, São Paulo, 1984, p. 345/346)

 

Leia também:  O capitalismo de vigilância e o rebaixamento da elite a classe operária, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

Um pouco adiante, Skinner esclarece que:

“O problema da privacidade pode ser abordado numa nova direção ao se inicial com o comportamento ao invés de partir da experiência imediata. A estratégia não será certamente mais circular ou arbitrária do que as práticas anteriores, e tem resultados surpreendentes. Ao invés de concluir que o homem pode conhecer apenas suas experiência subjetivas – que está sendo atado para sempre ao seu mundo privado e que o seu mundo externo é apenas um constructo – uma teoria comportamental do conhecimento sugere que é o mundo privado que, se não for inteiramente incognoscível, pelo menos tem poucas probabilidades de ser bem conhecido.” (Os Pensadores, Pavlov/Skinner, Crítica das explicações alternativas do comportamento, Abril Cultural, São Paulo, 1984, p. 346)

O behaviorismo rejeita as teses de Freud e Jung e defende que os comportamentos das pessoas são as únicas coisas que podem ser observadas e estudadas. Eles são adquiridos através de aprendizado, modelados por regras e se tornam permanentes em razão das condições de reforço. Alterando as condições de reforço e ensino de novos comportamentos seria, portanto, possível reprogramar as experiências subjetivas das pessoas.

Num de seus livros, Skinner concebeu uma sociedade perfeita em que os melhores estímulos, reforços e regras produziriam indivíduos produtivos, felizes, satisfeitos e conscientes de suas obrigações. Walden II fez muito sucesso. O maior deles certamente foi provocar uma reação literária que se transformou num dos maiores clássicos da literatura em língua inglesa. Refiro-me obviamente a Brave New World de Aldous Huxley.

Vejamos agora os fatos narrados por Shoshana Zuboff. Ela conta como a internet começou a ser explorada de maneira rudimentar por uma empresa interessada em analisar o comportamento dos empregados. As pessoas sujeitas a esse tipo de tratamento não gostaram muito do resultado. Afinal, elas começaram a sofrer consequências indesejadas da utilização pública de informações que poderiam ou deveriam ser privadas.

“A paper published in 2015 broke fresh ground again by announcing that the accuracy of the team’s computer predictions had equaled or outpaced that of human judges, both in the use of Facebook ‘likes’ to assess personality traits based on the five-factor model and to predict ‘life outcomes’ such as ‘life satisfaction’, ‘substance use’, ou ‘depression’. The study made clear that the real breakthrough of the Facebook prediction research was the achiefement of economies in the exploitation of these most-intimate behavioral dephs with ‘automatede, accurate, and cheap personality assesstement tools’ that effectively target a new class of ‘objetcs’ once known as your ‘personality’. That these economies can be achieved outside the awareness of unrestrained animals makes them evem more appealing; as once research team emphasizes, ‘The traditional method for personality evaluation is extremely costly in terms of time and labour, and it cannot acquire customer personality information without their aweranes…’

Personality analyss for commercial advantage is built on behavioral surplus – the so-caled meta-data or mid-level metrics – honed and tested by ressearches and destinet to foil anyone who thinks that she is in the control of the ‘amount’ of personal infermation thar she reveal in social media.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 275)

Tradução:

“Um artigo publicado em 2015 inovou novamente ao anunciar que a precisão das previsões de computador da equipe era igual ou superior à dos juízes humanos, tanto no uso de ‘curtidas’ do Facebook para avaliar traços de personalidade com base no modelo de cinco fatores quanto em outros fatores prever ‘resultados da vida’, como ‘satisfação com a vida’, ‘uso de substâncias’ ou ‘depressão’. O estudo deixou claro que o verdadeiro avanço da pesquisa de previsão do Facebook foi a conquista de economias na exploração desses comportamentos mais íntimos com ‘ferramentas de avaliação automatizada de personalidade, precisas e baratas’ que efetivamente visam uma nova classe de ‘objetos’ uma vez conhecida como sua ‘personalidade’. O fato de essas economias poderem ser alcançadas fora da consciência de animais irrestritos os torna mais atraentes; como a equipe de pesquisa enfatiza: ‘O método tradicional de avaliação da personalidade é extremamente caro em termos de tempo e trabalho, e não pode adquirir informações sobre a personalidade do cliente sem os alarmes ..’

 

Leia também:  As novas armadilhas criadas pelo capitalismo de vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

As análises de personalidade para obter vantagens comerciais são baseadas no excedente comportamental – os metadados chamados ou métricas de nível médio – aperfeiçoados e testados por pesquisas e destinos para frustrar qualquer pessoa que pensa que está no controle da ‘quantidade’ de inferências pessoais que ela revela nas mídias sociais “.

Segundo um documento do Facebook vazado em 2018, esses recursos foram utilizados pelo Facebook.

“… ‘to predict future behavior’ targeting individuals on the basis of how they will behave, purchase, and think: now, soon, and later. The document links prediction, intervention, and modification. For exemple, a Facebook service called ‘loyalty prediction’ is touted for its ability to analyze behavioral surplus in order to predict individuals who are ‘at risk’ of shifting their brand allegiance. The idea is that these predictions can trigger advertisers to intervene promptly , targeting aggressive messages to stabilize loyalty and thus achieve guaranteed outcomes by altering the course of the future.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 279)

Tradução:

“…’para prever o comportamento futuro’, visando indivíduos com base em como eles irão se comportar, comprar e pensar: agora, em breve e mais tarde. O documento vincula previsão, intervenção e modificação. Por exemplo, um serviço do Facebook chamado ‘previsão de lealdade’ é elogiado por sua capacidade de analisar o excedente comportamental, a fim de prever indivíduos que estão “em risco” de mudar sua lealdade à uma marca. A ideia é que essas previsões possam levar os anunciantes a intervir prontamente, visando mensagens agressivas para estabilizar a lealdade e, assim, alcançar resultados garantidos alterando o curso do futuro.”

As possibilidades políticas dessa ferramenta foram amplamente utilizadas para garantir a vitória do Brexit na Inglaterra, a eleição de Donald Trump nos EUA e, sem dúvida alguma, para derrubar Dilma Rousseff no Brasil. Isso ficou absolutamente claro durante o escândalo da Cambridge Analytica.

“ ‘We exploited Facebook to harvest millions of peoples profiles’, Wylie admitted, ‘and built models to exploit what we knew about them and target ttheir inner demons’. His summary of Cambridge Analytca’s accomplishments is a précis of the surveillance capitalist projetc and a rationale for its determination to render from the depths. These are the very capabilities that have gathered force over the nearly two decades of surveillance capitalim’s incubation in lawless space. These practices produced outrage around the world, when in fact they are routine elements in the daily elaboration of surveillance capitalim’s methods and goals, both at Facebook and within other surveillance capitalist companies. Cambridge Analytica merely reoriented the surveillance capitalist machinery from commercial markets in behavioral futures toward guaranteed outcomes in the political sphere.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 280/281)

Tradução:

” ‘Nós exploramos o Facebook para coletar perfis de milhões de pessoas’, admitiu Wylie, ‘e construímos modelos para explorar o que sabíamos sobre eles e atingir seus demônios internos’. Seu resumo das realizações da Cambridge Analytca é uma prévia do projeto capitalista de vigilância e uma justificativa para sua determinação de renderizar a partir das profundezas [da psique humana]. Essas são as mesmas capacidades que ganharam força nas quase duas décadas de incubação do capital de vigilância no espaço sem lei. Essas práticas produziram indignação em todo o mundo, quando na verdade são elementos rotineiros na elaboração diária dos métodos e objetivos do capital de vigilância, tanto no Facebook quanto em outras empresas capitalistas de vigilância. A Cambridge Analytica apenas reorientou o mecanismo capitalista de vigilância dos mercados comerciais em futuros comportamentais em direção a resultados garantidos na esfera política.”

 

Leia também:  O idílio do salvacionismo judicial, por Guilherme Scalzilli

 

No fim deste item do capítulo 9, Shoshana Zuvoff afirma que:

“Billionaires such as Zuckerberg and Mercer have discovered that they can mucle their way to dominance of the dividion of learning in society by setting their sights on these rendition operations and the fortunes they tell. They aim to be unchallenged in their power to know, to decide who knows, and to decide who decides. The rendition of ‘personality’ wan an important milestone in this quest; a frontier, yes, but not the final frontier.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 282)

Tradução:

“Bilionários como Zuckerberg e Mercer descobriram que podem abrir caminho para o domínio da divisão da aprendizagem na sociedade, concentrando-se nessas operações de entrega e nas fortunas que contam. Eles pretendem ser incontestáveis em seu poder de saber, decidir quem sabe e decidir quem decide. A interpretação da “personalidade” foi um marco importante nessa busca; uma fronteira, sim, mas não a fronteira final.”

Esse é um tema realmente importante. Por isso fiz questão de fazer uma ligeira digressão sobre as obras de Freud, Jung e Skinner no início justamente para retomar a questão da exploração lucrativa e política da psique humana pelo capitalismo de vigilância.

A psicanálise foi criada por Freud para ajudar as pessoas a se autoconhecer e a conviver com seus problemas. Ela ganhou uma nova dimensão com o trabalho de Jung para colocar à disposição de todos a possibilidade de conquistar as profundezas de sua própria personalidade para fazer aflorar habilidades adormecidas e desconhecidas pelo ego. Skinner rejeitou as teses de ambos e se concentrou no estudo do comportamento humano e das condições que o reforçam para possibilitar uma melhora das pessoas mediante a reprogramação dos seus costumes.

Com maior ou menor cuidado, todos os três psicanalistas mencionados se preocuparam apenas com uma coisa: o bem-estar dos seus pacientes. O bem-estar das pessoas não é objeto de qualquer preocupação nos cálculos daqueles que utilizam técnicas de análise do excedente comportamental expropriado dos usuários de internet e de telefonia móvel para garantir resultados econômicos e políticos. Essa mudança de foco me parece bastante relevante.

Os pacientes não são e não podem ser tratados como meios para os fins dos psicanalistas. O dever de não fazer mal que obriga o médico, impede-o de fazer análises sem o conhecimento das pessoas analisadas. Também o proíbe de comercializar as análises que ele fez com a finalidade de garantir os lucros ou a vitória política de quem quer que seja.

A automatização de psicanálises em massa não autorizadas e com a finalidade de induzir as pessoas a consumir ou a deixar de consumir um produto, a apoiar ou rejeitar uma proposta política, a pensar de uma maneira e não de outra, a ficar felizes ou tristes em razão do que é colocado na Timeline delas é uma evidente perversão da medicina e deveria ser tratada como tal. O resultado dessa perversão está sendo colhida na Inglaterra, nos EUA e no Brasil.

Se os eleitores não tivessem sido manipulados o resultado das eleições nesses três países teria sido diferente. A pandemia do COVID-19 mataria a mesma quantidade de ingleses, norte-americanos e brasileiros se eles não tivessem sido utilizados como ratos no laboratório de experiências políticas que foi construído e explorado com lucro por bilionários como Zuckerberg e Mercer?

 

 

Observações sobre o neo-feudalismo hayekiano

Por

 Fábio de Oliveira Ribeiro

 -

11/05/2020

 

Compartilhar

 

 

 

 

Aqui mesmo no GGN fiz algumas observações sobre o neo-feudalismo https://jornalggn.com.br/opiniao/telecatch-2-0-democracia-cpfs-x-feudalismo-cnpjs/. Volto ao tema por causa de um Twitter do jurista Rubens Casara.

 

O binarismo simplório imposto pela guerra ideológica permanente promovida pelos defensores do “neoliberalismo a lá Bolsonaro” não deu trégua nem mesmo durante a pandemia. Muito pelo contrario: os bolsonaristas fascistoides ocupam as ruas para forçar os trabalhadores a desocuparem a segurança das suas casas.

A explicação para esse fenômeno não é muito complexa. No período em que o keynesianiamo ocupou uma posição central, como teoria econômica dominante, as teses de Friedrich August von Hayek eram consideradas imposturas teóricas e, como tal, relegadas à margem do debate público.

PUBLICIDADE

Na década de 1970, a teoria de Hayek começou a ser movida para o centro do palco em razão das políticas econômicas baseadas nas teses de Keynes não serem mais capazes de impedir o declínio da rentabilidade do capital. Nas décadas seguintes o neoliberalismo se tornou dominante.

A partir do momento em que a maioria dos líderes políticos, jornalistas e banqueiros (não necessariamente nessa ordem) passaram a exigir uma adesão automática às políticas neoliberais, as teses de Hayek se tornaram os fundamentos de uma verdadeira teologia.

Na Idade Média contrariar a teologia dominante era algo perigoso. Potencialmente mortal. Quando o Papa Inocêncio III ordenou a Cruzada Albigense (1209-1229 dC), os comandantes militares dele fizeram uma objeção plausível: não seria possível distinguir entre cristãos e hereges.

A resposta do Papa foi exemplar: matem todos, Deus saberá escolher os seus. A solução sugerida pelo presidente do Banco Central do Brasil para o dilema imposto pelo COVID-19 lembra muito as palavras do Papa Inocêncio III: reduzir mortes por coronavírus é pior para a economia.

Não há outra alternativa. O postulado neoliberal explica o desprezo do presidente do BC pela vida humana. É preciso deixar o vírus matar todos os que ele quiser matar, o deus dinheiro não se importa. A preservação da ortodoxia teológica é mais importante do que qualquer coisa.

 

Leia também:  Excedente comportamental, o novo mundo a ser conquistado e possuído

 

Usando as teses de Hayek como vetor, o feudalismo retornou de maneira tão avassaladora que as pessoas são incapazes de perceber o que realmente está ocorrendo. A democracia foi assassianda, porque ela é incompatível com a hierarquia social do Estado feudal.

Os cidadãos são divididos em duas classes: senhores feudempresariais e servos do glebercado. Qualquer pessoa que desafie a neo-feudalização bancária do cotidiano é sumariamente expulso da nova sociedade feudal. Quem ficar fora das muralhas dogmáticas não merece qualquer proteção legal.

Vejam, eles não podem entrar no nosso castelo. Eles são perigosos. Eles são os outros. Inimigos irredutíveis da segurança que nós desfrutamos e merecemos. Nós somos fiéis ao capital. Eles são hereges, Cataros, comunistas, possivelmente sodomitas… E assim começou a nova Cruzada Albigense “high tech” em defesa da teologia de Hayek.

 

O capitalismo de vigilância e o passado medieval à nossa frente

Por

 Fábio de Oliveira Ribeiro

 -

15/05/2020

 

Compartilhar

 

 

 

 

Terminei de ler a introdução do livro de Shoshana Zuboff. Pelo que entendi, o capitalismo de vigilância, se carateriza pela exploração unilateral de informações produzidas pelos usurários de internet.

As empresas que exploram esse negócio lucrativo sem pagar o usuário pela informação coletada, sabem o que nós queremos, pensamos e desejamos. Mas nós não sabemos como nossos perfis são definidos, utilizados e comercializado.

“This new market form is a unique logic of accumulation in which surveillance is a foundational mechanism in the transformation of investiment into profit. Its rapide rise, institutional elaboration, and significant expansion challenged the tentative promise of the inversion and its advocacy-oriented values. More generally, the rise of surveillance capitalism betrayed the hopes and expectations of many ‘netizens’ who cherished the emancipatory promise of the networked milieu.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 53)

Tradução:

“Essa nova forma de mercado é uma lógica única de acumulação, na qual a vigilância é um mecanismo fundamental na transformação de investimento em lucro. Seu rápido crescimento, elaboração institucional e expansão significativa desafiaram a prometida tentativa de inversão e seus valores orientados à autonomia. De maneira mais geral, a ascensão do capitalismo de vigilância traiu as esperanças e expectativas de muitos internautas que acalentavam a promessa emancipatória do ambiente em rede.”

A autora esclarece que:

“…Under this new regime, the precise moment at which our needs are met is also the precise moment at which our lives are plundered for behavioral data, and all for the sake of others’ gain. The result is a perverse amalgam of empowerment [of companies that collect and exploit information] inextricably layered with diminishment [of internet users]. In the absence of a decisive societal response that constrains or outlaws this logic of accumulation, surveillance capitalism appears poised to become the dominant form of capitalism in our time.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 53)

 

Leia também:  Diário da Peste 36

 

Tradução:

“… Sob esse novo regime, o momento exato em que nossas necessidades são atendidas também é o momento exato em que nossas vidas são saqueadas por dados comportamentais e tudo em prol do ganho de outras pessoas. O resultado é um amálgama perverso de empoderamento [das empresas que coletam e exploram informações] inextricavelmente mesclado com rebaixamento [do usuário de internet]. Na falta de uma resposta social decisiva que restrinja ou proíba essa lógica de acumulação, o capitalismo de vigilância parece prestes a se tornar a forma dominante de capitalismo em nossos dias.”

Na Idade Média, a principal fonte de poder e controle era a confissão. As pessoas contavam seus pecados (e desejos) aos padres. Ninguem sabia como eles utilizavam o conhecimento que adquiriam dessa forma.

Me parece evidente que qualquer pedaço de informação politicamente sensível obtida através da confissão podia ser utilizada contra a vontade do informante com violação do dever de sigilo do padre.

Se o poder da Igreja, do Feudo ou do Reino estivesse em perigo o padre poderia obter vantagens utilizando a informação colhida. Vida, segurança e riqueza eram objetos importantes de cogitação teológica.

Zuboff diz que o capitalismo de vigilância é um fenomeno sem precedente. Eu posso concordar com essa afirmação. Mas também digo que é possivel ver nesse fenomeno algumas características medievais que não existiam nos EUA, país predominantemente protestante (em que a confissão não é praticada).

Foi a Internet transformada no instrumento politico e religioso virtual através do qual os americanos renunciaram à Reforma Protestante?

Sobre a medievalização da vida cotidiana patrocinada pelo neoliberalismo vide https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/observacoes-sobre-o-neo-feudalismo-hayekiano/.

 

Leia também:   Diário da Peste 37

 

Ao longo dos dois primeiros capítulos da primeira parte do seu livro, Shoshana Zuboff usa metáforas medievais. Ela chega a mencionar autores que se referem à medievalização da vida cotidiana promovida pelo neoliberalismo em virtude da redução de direitos, hierarquização da sociedade, esvaziamento da democracia e aumento do abismo entre ricos e pobres. Todavia, ela se recusa a admitir que a maioria da população reverteu ou pode reverter à condição servil.

Zuboff acredita que os benefícios de décadas de individualização moderna impedem a implantação de uma nova sociedade feudal. Talvez ela esteja enganada. Talvez não. O tempo dirá a verdade. Nada está definido

 

 

Excedente comportamental, a mina de ouro do Google

Por

 Fábio de Oliveira Ribeiro

 -

16/05/2020

 

Compartilhar

 

 

 

 

Aqui mesmo no GGN, publiquei algumas considerações sobre a obra de Shoshana Zuboff https://jornalggn.com.br/artigos/o-capitalismo-de-vigilancia-e-o-passado-medieval-a-nossa-frente/. Volto ao tema porque me pareceu essencial fazer justiça à maior descoberta da autora: o excedente comportamental. Esse conceito que está intimamente relacionado com o de “mais valia” cunhado por Karl Marx para explicar a maneira como o capitalista acumula trabalho não pago aos operários.

PUBLICIDADE

Para entender a elaboração desse conceito é preciso refazer o caminho percorrido pela empresa Google. E foi exatamente isso que Zuboff fez no seu livro:

“Operationally, this meant Google wold turn its growing cache of behabioral data and its computational power and expertize toward the single task of matching ads with queris. New rethoric took hold to legitimate this unusual move. If there was to be advertising, then it had to be ‘relevant’ to users. Ads would no longer be linked to keywords in a search querry, but rather a particulara ad would be ‘targeted’ to a particular individual. Securing this grail of advertising would ensure relevance to users and value to advertisers.

Absent from the new rhetoric was the fact thar in pursuing of this new aim, Google would cross into virgin territory by exploiting sensitivities that its exclusive and detailed collateral behavioral data about millions and later billions of users coud reveal. To meed the new objetive, the behavioral value reinvestment cycle was rapdly and secretly subordinated to a larger and more complex undertaking. The raw materials that had veen solely used to improve the quality of searchs resultes would now also be put to use in the service of targeting advertising to individual users. Some data would continue be applied to service improvement, but the growing stores of collateral signals would be repurposed to improve the profitability of ads for both Google and its adverisers. The behaviorial data aviable for users beyond service improvement constituted a surplus, and it was on the strength of this behavioral surplus that the young company would find its way to the ‘sustained and exponentional profits’ that would be necessary for survival. Thanks to a perceived emergency, a new mutation began to gather form and quietly slip its moorings in the implicit advocacy-oriented social contract of the firm’s original relationship with users. (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 74/75)

Tradução:

“Operacionalmente, isso significava que o Google aumentaria seu cache crescente de dados comportamentais e seu poder computacional e se especializaria na tarefa única de combinar anúncios com consultas. Uma nova retórica entrou em cena para legitimar esse movimento incomum. Se houvesse publicidade, teria que ser ‘relevante’ para os usuários. Os anúncios não seriam mais vinculados a palavras-chave em uma consulta de pesquisa, mas um anúncio em particular seria ‘segmentado’ para um indivíduo em particular. A segurança desse graal de publicidade garantiria relevância para os usuários e valor para os anunciantes.

Ausente da nova retórica, na busca desse novo objetivo, o Google entraria em território virgem explorando sensibilidades que seus dados comportamentais colaterais exclusivos e detalhados sobre milhões e, depois, bilhões de usuários revelariam. Para abordar o novo objetivo, o ciclo comportamental de reinvestimento de valores estava subordinado rápida e secretamente a um empreendimento maior e mais complexo. As matérias-primas usadas apenas para melhorar a qualidade dos resultados das pesquisas agora também seriam usadas no serviço de segmentação de publicidade para usuários individuais. Alguns dados continuariam sendo aplicados à melhoria do serviço, mas as crescentes reservas de sinais colaterais seriam redirecionadas para melhorar a lucratividade dos anúncios para o Google e seus anunciantes. Os dados comportamentais disponíveis para os usuários além da melhoria de serviço constituíam um excedente e foi com base nesse excedente comportamental que a jovem empresa encontraria seu caminho para ‘lucros crescentes e sustentáveis’ que seriam necessários para a sobrevivência. Graças a uma emergência percebida, uma nova mutação começou a se reunir e silenciosamente deslizou seus ancoradouros no contrato social implícito e orientado para autonomia do relacionamento original da empresa com os usuários.”

 

Leia também:  Tyrion Lannister e o cachorro louco brasileiro

 

Antes de começar a segmentar propaganda, o Google utilizava as informações colaterais produzidas a cada busca pelos usuários para melhorar o serviço que era prestado. A partir do momento em que foi obrigada a enfrentar a crise das empresas .com, o Google passou a utilizar essas informações para extrair valor econômico do comportamento dos usuários revelado pelas informações colaterais que eles produzem. Assim, o Google passou a atingi-los com anúncios personalizados de bens e serviços que eles provavelmente necessitariam, aumentando a eficiência da propaganda. Essa operação foi patenteada.

“The techniques described in the patent meant thar each time a user queries Google’s search engine, the system simultaneously presents a specifc configuration of a particular ad, all in the fraction of a moment that it takes to fufill the search query. The data used to perform this instant translation from query to ad, a predictive analysis thar was dobbed ‘matching’ wen far beyond the mere denotation of search terms. New data sets werw compiled that would dramatically enhance the accuracy of these predictions. These data sets were referred to as ‘user profile information’ or “UPI”. These new data meant that there would be no more guesswork and far less waste in the advertising budget. Mathematical certainty would replace all of that.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 78)

Tradução:

“As técnicas descritas na patente significam que cada vez que um usuário consulta o mecanismo de pesquisa do Google, o sistema apresenta simultaneamente uma configuração específica de um anúncio específico, tudo na fração de momento necessário para preencher a consulta de pesquisa. Os dados usados para executar essa tradução instantânea de consulta para anúncio, uma análise preditiva que foi adulterada como ‘correspondência’ foram muito além da mera designação de termos de pesquisa. Novos conjuntos de dados foram compilados para melhorar drasticamente a precisão dessas previsões. Esses conjuntos de dados foram referidos como ‘informações de perfil do usuário’ ou ‘UPI’. Esses novos dados significavam que não haveria mais adivinhações e muito menos desperdício no orçamento de publicidade. A certeza matemática substituiria tudo isso.”

No momento que o usuário faz uma pesquisa o perfil existente dele é formulado ou consultado. Quando fornece a resposta à consulta o Google adiciona anúncios de produtos que podem interessar especificamente àquele internauta. Cada vez que utilizar o Google para pesquisar qualquer assunto, o usuário fornecerá gratuitamente informações pessoais que serão acrescentadas ao acervo estocado utilizado para a formular o perfil individual que possibilitará à empresa obter lucro anexando propaganda segmentada ao resultado da consulta. Casa usuário do Google é um operário à serviço da segmentação da propaganda explorada economicamente pela empresa.

 

Leia também:   Diário da Peste 37

 

“Google would no longer be a passive recipient of accidental data that it could recycle for the benefit of its users. The targeted advertising patent sheds light on the path discovery that Google traveled from its advocay-oriented founding toward the elaboration of behavioral surveillance as a full-blown logic of accumulation, The invent itself exposes the reasonig through which the behavioral value reinvestd cycle was subjugated to the service of a new commercial calculation. Behavioral data, whose value had previously been ‘use up’ on improving the quality of Search for users, now became the pivotal – and exclusive to Google – raw material for the construction of a dynamuc online advertising marketplace. Google would now secure more bahavioral data than it needed to serve its users. That surplus, behavioral surplus, was the game-changing, zero-cost asset that was divert from service improvement toward a genuine and highly lucrative market exchange.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 81)

Tradução:

“O Google não seria mais um destinatário passivo de dados acidentais que poderiam ser reciclados para o benefício de seus usuários. A patente de publicidade direcionada lança luz sobre a descoberta de caminhos que o Google percorreu desde sua fundação orientada à autonomia em direção à elaboração da vigilância comportamental como uma lógica de acumulação completa. O próprio invento expõe o raciocínio pelo qual o ciclo de reinvestimento do valor comportamental foi subjugado a serviço de um novo cálculo comercial. Os dados comportamentais, cujo valor já havia sido ‘usado’ para melhorar a qualidade da Pesquisa para usuários, agora se tornaram a matéria-prima essencial e exclusiva do Google para a construção de um mercado dinâmico de publicidade on-line. O Google agora protegeria mais dados comportamentais do que o necessário para atender seus usuários. Esse excedente, excedente comportamental, foi o ativo de custo zero que mudou o jogo e foi desviado da melhoria de serviços para uma troca de mercado genuína e altamente lucrativa.”

Karl Marx definiu a “mais valia” como uma parcela de trabalho não é paga ao operário. Essa parcela pode ser aumentada de duas maneiras: aumento da jornada de trabalho sem aumento correspondente de salário; aumento da produtividade durante a mesma jornada de trabalho. O empregador administra a empresa e não tem obrigação de prestar contas ao empregado. Portanto, em qualquer das hipóteses, o trabalhador nunca está em condições de saber qual foi a diferença exata entre o trabalho dele que foi pago e a parcela acumulada pelo empregador. Essa ignorância é essencial. Ela preserva a racionalidade do capitalismo, bem como a hierarquia entre o empresário e o trabalhador.

Segundo Shoshana Zuboff algo semelhante ocorre na dinâmica do capitalismo de vigilância. O Google se apropria das informações colaterais produzidas pelos usuários e obtem lucro sem pagar por elas O que o Google fornece ao retornar cada pesquisa, é apenas uma parcela do que foi requisitado pelo usuário (as informações que ele solicitou). O excedente que foi produzido pelo próprio usuário (informações colaterais das pesquisas dele) é transformado em propaganda segmentada direcionada à ele com lucro para o Google.

“Key to our conversation is this fact: surveillance capitalism was invented by a specific group of human beings in a specifc time and place. It is not an inherent result of digital technology, nor is it a necessary expression of information capitalism. It was intentionally construtcted at a moment in history, in much the same wat that the engenieers and tinkeres at the Ford Motor Company invented mass prodoction in the Detroit of 1913.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 85)

 

Leia também:  O capitalismo de vigilância e o passado medieval à nossa frente

 

Tradução:

“A chave da nossa conversa é esse fato: o capitalismo de vigilância foi inventado por um grupo específico de seres humanos em um tempo e local específicos. Não é um resultado inerente à tecnologia digital, nem é uma expressão necessária do capitalismo da informação. Foi intencionalmente construído em um momento da história, da mesma maneira que os engenheiros e pensadores da Ford Motor Company inventaram a produção em massa em Detroit em 1913.”

Esse é um detalhe importante. A Google inventou uma maneira de explorar seus usuários sem dar eles qualquer opção de não fornecer informações colaterais, de impedir o uso delas ou de receber uma quantia em razão do lucro que a empresa obter explorando-as. Isso não era e não é inevitável. Todavia, o caminho aberto pelo Google em pouco tempo passaria a ser explorado pelo Facebook.

“… Once Google’s leadership undertood the commercial power of behavioral surplus, Schmidt instituted what he called the ‘hiding strategy’. Google employees were told not to speak about what the patent had referred to as its ‘novel methods, appararus, message formats and/or data strutures’ or confirm any rumors about flowing cash. Hiding was not a post hot strategy; it was baked into the cake that would became surveillence capitalism.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 88/89)

Tradução:

“… Depois que a liderança do Google compreendeu o poder comercial do excedente comportamental, Schmidt instituiu o que chamou de ‘estratégia de ocultação’. Os funcionários do Google foram instruídos a não falar sobre o que a patente chamava de ‘novos métodos, aparelhos, formatos de mensagem e/ou estruturas de dados’ ou confirmar rumores sobre fluxo de caixa. Esconder não era uma estratégia de correlação coincidente; foi assado no bolo que se tornaria o capitalismo de vigilância.”

O círculo virtuoso se fecha mediante uma artimanha: ocultação e ignorância. Assim como o capitalista acumula uma parcela de trabalho não paga que é ignorada pelo trabalhador (Karl Marx), o usuário do Google deve ignorar como ele mesmo acrescentou valor à empresa sem receber em troca uma parcela significativa das informações que produziu e foram utilizadas para segmentar a propaganda que ele recebe junto com o resultado da pesquisa (Shoshana Zuboff).

O conceito de “excedente comportamental” mantém assim uma relação com o de “mais valia”, com uma diferença: o trabalhador é pago por uma parcela do trabalho; o usuário não recebe absolutamente nada em troca além da propaganda que ajudou a segmentar fornecendo gratuitamente informações colaterais ao usar o Google.

Nenhum comentário:

Postar um comentário