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CRÍTICA CONTOS
"Desgracida" traz episódios de rancor, tara e crueldade
Nova coletânea de contos de Dalton Trevisan contém cartas a Pedro Nava, Rubem Braga e Otto Lara Resende
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DALTON TREVISAN SOLTA O VERBO NO LIVRO: "FALEMOS MAL DO "GRANDE SERTÃO'", E FAZ CRÍTICAS À "PIROTECNIA VERBAL" DE GUIMARÃES ROSA"
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MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Dalton Trevisan é como sexo e futebol: as posições e os momentos de clímax parecem sempre mais ou menos iguais, mas a gente continua gostando.
"Desgracida" não é essencialmente diverso de livros como "Pico na Veia" ou "Macho Não Ganha Flor". Estão ali suas figuras de classe média, em cenas microscópicas de tara e crueldade, às vezes reduzidas a breves diálogos.
"Trate de arrumar logo uma mulher. (...) Ao menos uma namoradinha. (...) Que seja então uma diarista!", diz o pai ao filho.
Mais à frente, num outro miniconto, duas mulheres conversam sobre uma garota abandonada pela "desgracida" da mãe, que planeja readmiti-la em casa porque, aos dez anos, "já lava uma loucinha".
A forma elíptica é a melhor maneira de captar a redução dos seres à condição de objetos, de desentranhar da linguagem corriqueira seus mecanismos de "coisificação".
Num conto mais dilatado, "Iluminação", o narrador volta à casa de uma "polaquinha", cujas coxas imaculadas lhe renderam uma "primeira iluminação erótica", no dia de seu velório o que não o impede de entrever, nas pernas da filha da prostituta morta, um "mesmo branco de nova epifania".
A morbidez das relações sociais se soma à fissura sexual (recorrente no uso de diminutivos que fuçam obscenidades) e à retórica de bolero (cuja pompa mascara pensamentos inconfessáveis). Podemos não compartilhar as taras das personagens de Dalton, mas ele reproduz a dinâmica do desejo, do deslizamento insaciável de uma sacanagem a outra na era da pornografia.
A insistência nesse universo repetitivo de pedófilos, onanistas ou crentes alucinados pelo erotismo bíblico sugere um escritor amarrado a suas obsessões. Mas obsessões que são sobretudo estilísticas, como provam as cartas do final do volume, na seção "Mal Traçadas Linhas".
A edição não esclarece quem são os destinatários, mas é fácil para identificar o memorialista Pedro Nava e os cronistas Otto Lara Resende e Rubem Braga. Dalton solta o verbo: "Falemos mal do "Grande Sertão'", e faz críticas à "pirotecnia verbal" de Guimarães Rosa na "história menos plausível na literatura de travesti".
E, salivando maldade contra "O General em Seu Labirinto", ele diz que Gabriel García Márquez "só fala por epigrama e aforismo, longo monólogo com a posteridade" comentário que vale como retrato em negativo da poética do próprio Danton Trevisan: um autor que busca, na forma breve e despojada, instantâneos de mortalidade.
A poesia de Adélia Prado soa conhecida em livro de inéditos
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Se humilde é um adjetivo elogioso, o verbo humilhar-se é negativo. Não para Adélia Prado, em cuja poesia as palavras têm a mesma origem: o húmus. Humilhar-se é aproximar-se da terra e admitir que as palavras são feitas desse chão.
"Eu só quero saber do microcosmo", diz o poema "Tão Bom Aqui", que abre seu último livro, "A Duração do Dia". E é no e do microcosmo que vêm os outros poemas, dizendo que, mesmo no sofrimento, é "tão bom aqui".
É assim a poesia religiosa de Adélia, para quem o pecado, o medo e o prazer são tão sagrados quanto o espírito e a panela de arroz.
Quando diz: "Sou um corpo e respiro./ Suspeito poder viver/ com meio prato e água", não se trata de apequenar-se diante de grandezas, mas de franqueza; o que basta é só um pouco: as mulheres, "todas da vida, dão de comer e comem/ coisas, de si, agradecidas".
Como em Jorge de Lima, as mulheres são "da vida" e quem está mais próximo de Deus é quem peca, os dementes e os que reconhecem que pouco é mais belo do que uma mãe dizendo à filha, antes de morrer: "vai calçar um trem,/ agora mesmo a casa enche de gente".
Nestes poemas em que a eternidade discute pacificamente com o tempo histórico, a "graça", como bênção, está intimamente ligada às ideias de agradecimento, graciosidade e humor.
Não é à toa que um ateu como Drummond tenha se espantado com essa poesia crente e crédula, em que metáforas elaboradas se casam com construções feitas de "pequeninos nadas".
Não é poesia para religiosos; é poesia de palavras que contêm e são contidas por um cristianismo original, que interessa também a quem não crê.
Entretanto, após uma carreira de grande fôlego poético e narrativo, algo nesse novo livro soa conhecido. A exigência de que sempre se produza o novo é polêmica e, mesmo assim, fica a vontade de que brotasse alguma semente não conhecida.
Talvez, por meses, uma fé menos teimosamente confessa, que se esgueirasse mais sorrateira entre as palavras. Mas é sempre bom que a poesia de Adélia continue nos afirmando que é muito bom que "amanhã seja outro dia,/ igual a este dia, igual,/ igual a este dia, igual".
Espetáculo materializa incertezas kafkianas
"Labirinto Kafka" une duas obras do autor tcheco de modo coerente
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PILHAS DE PAPEL SÃO OFUSCADAS POR FUMAÇA QUE SE DISSIPA COM LENTIDÃO AO LONGO DO ESPETÁCULO, EM ATMOSFERA NEBULOSA
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CHRISTIANE RIERA
CRÍTICA DA FOLHA
Após um ano de temporada e milhares de espectadores no sul do país, chega a São Paulo "Labirinto Kafka", montagem em atos distintos dos dois mais conhecidos textos do tcheco Franz Kafka (1883-1924).
A primeira parte é a adaptação do romance "O Processo", em que Josef K. é o respeitável funcionário de um banco até que, preso de maneira abrupta, vê-se obrigado a defender sua inocência contra acusações obscuras por um crime que ele ignora. "A Metamorfose" ocupa a segunda metade. Aqui Gregor Samsa é o caixeiro viajante cuja rotina muda radicalmente ao encontrar-se aprisionado em corpo de inseto.
Apesar das diferentes tramas, há um conceito de unidade claro e coerente nesta adaptação pelo diretor Janssen Hugo Lage à frente da Confraria dos Ritos. Sua busca parece ser pela tradução em linguagem cênica do universo atordoante do autor.
O cenário grandioso é palco das angústias que acometem os protagonistas. Pilhas de papel são ofuscadas por fumaça que se dissipa com lentidão ao longo do espetáculo. Sempre nebulosa, a atmosfera parece materializar as incertezas kafkianas.
Em cena, os 13 atores têm os rostos pintados de branco e as vozes pontuadas por respiração ofegante. Com os ombros inclinados e barrigas recolhidas, movem-se em pulos, um tom animalesco que adensa ainda mais o quadro tenebroso.
Ao privilegiar o escuro, o clima sinistro não deixa dúvidas. Do breu, focos de luz surgem de maneira inesperada, criando breves espaços de encenação para onde os atores saltam bruscamente.
A interpretação estilizada cria, além de linguagem única, uma demanda de tônus para os atores que impressiona. O vigoroso Anderson Cicconne se destaca pela destreza como um bicho possuído. Nesta montagem, o retrato dos protagonistas solitários, que sofrem por não encontrarem soluções para o que não planejaram, é primoroso.
Ali estão presos em sistemas despóticos impenetráveis, representados pelo mundo burocrático ou pela fantasia.
Porém, a presença de um Kafka sentado em uma cadeira alta durante todo o espetáculo compromete esta leitura. "Por que uma obra literária tem começo, meio e fim?", ele diz. E explicita suas intenções: "O leitor é o principal responsável pela trama".
Para o espectador é então apontada uma saída rápida aos delírios paranoicos tão essenciais à obra kafkiana. Com isso, "Labirinto Kafka" cai em eventual didatismo ao oferecer um fio de Ariadne para o novelo que a própria montagem se propõe
ANTONIO CICERO
Originalidade e plágio
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Usar, no interior de uma obra, um texto que seja universalmente conhecido, de outro autor, não é plágio
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RECENTEMENTE, Helene Hegemann, uma jovem alemã de apenas 17 anos, fez grande sucesso de crítica com seu primeiro romance, intitulado "Axolotl Roadkill". O problema é que logo se descobriu que longos trechos desse romance haviam sido copiados da obra de um autor menos conhecido. Pois bem, longe de pedir desculpas pelo plágio, a moça afirmou que "não existe originalidade; o que existe é autenticidade". Ao que um crítico comentou, com razão: "De fato, trata-se de um autêntico roubo".
É evidente que o fato de não haver originalidade absoluta não significa que não haja originalidade relativa ou que esta não possa em princípio ser conferida. Do contrário, o que justificaria chamar a própria Helene Hegemann de AUTORA de "Axolotl Raodkill"?
Contudo, a falsa tese de que simplesmente não existe originalidade tornou-se trivial nesses tempos de internet e de "cópia e cola", e é frequentemente invocada, nos Estados Unidos (será diferente no Brasil?) por alunos universitários acusados de plágio. Segundo a antropóloga Susan D. Blum, professora da Universidade de Notre Dame, em Indiana, "nossa noção de autoria e originalidade nasceu, floresceu, e pode estar murchando".
Ora, essas ideias da professora Blum parecem-me remontar ao (eu quase disse: "parecem-me ORIGINAR-SE no") ensaio "A Morte do Autor", escrito por Roland Barthes no ano de 1968. "A escritura", lê-se ali, "é a destruição de toda voz, de toda origem".
Tudo o que o escritor pode fazer é "imitar um gesto que é sempre anterior, jamais original. Seu único poder é o de misturar escrituras, opor umas às outras, de modo a jamais repousar em nenhuma". Suponho que isso seja o que o próprio Barthes fez em seus livros. Seria então aceitável que outro escritor pretendesse ser o autor desses livros?
O sentido mais legítimo da retórica da "morte do autor" é o de programaticamente afirmar a autonomia do objeto dos estudos literários -a autonomia do texto- contra a sua redução à psicologia, à história, à filosofia etc. Hegemann se sente capaz de empregar a mesma retórica para justificar o plágio porque, independentemente das intenções de Barthes, ela, como tantos outros, apropriou-se de tal figura para os seus próprios fins. Afinal, ele mesmo declarava que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor".
De todo modo, ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja "uma figura moderna, um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da "pessoa humana'".
A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica. Só as culturas orais primárias não a conheciam. Assim, é possível, por exemplo, que "Homero" fosse, na cultura oral primária, um nome genérico para determinado tipo de bardo, porém seria absurdo dizer algo semelhante de poetas líricos como Píndaro, Safo, Teógnis etc.
Normalmente, copiar uma obra ou um trecho de uma obra ipsis litteris, sem nada lhe modificar ou adicionar, e pretender ser o seu autor é inadmissível em qualquer sociedade letrada, pois não passa de impostura.
Contudo, usar, no interior de uma obra, um texto que, tendo sido escrito por outro autor, seja universalmente conhecido, não constitui plágio, mesmo que a fonte não seja citada. Assim podiam na Antiguidade clássica ser usados, por exemplo, os poemas atribuídos a Homero. Assim também podem ser usados os versos "No meio do caminho da nossa vida" e "E agora, José", no Brasil contemporâneo.
Se acusado de plágio, um poeta que use versos tão famosos pode dar ao acusador a mesma resposta que Brahms deu aos críticos que observaram uma grande semelhança entre um trecho de sua primeira sinfonia e um trecho da última sinfonia de Beethoven: "Qualquer imbecil percebe isso".
Já copiar uma obra pouco conhecida, como Helene Hegemann fez, é inaceitável, pois lesa o seu autor. A bem da verdade, o crítico francês Roger Caillois admite uma possibilidade legítima de fazê-lo. Para ele, sempre se justifica a apropriação de uma obra medíocre, caso o resultado seja uma obra-prima: mas as obras primas são muito raras
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