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segunda-feira, 6 de junho de 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Luis Fernando Verissimo: Astrólogo por um dia - viomundo -

do Zero Hora, via blog Prosa Online de O Globo

E o grande texto da imprensa brasileira nesta quarta-feira é o horóscopo escrito por Luis Fernando Verissimo para o jornal gaúcho “Zero Hora”, que completa 47 anos. Pra comemorar a data, Verissimo voltou à seção em que começou no jornalismo, em 1967, e ainda editou o caderno de cultura do jornal.

Veja o que os astros dizem do seu signo, com a irreverência de Verissimo

Áries
Atrás de você, cuidado! Brincadeira. Você não sofrerá nenhuma ameaça. Nem tudo será perfeito, claro, mas quando a vida lhe sorri, não importa que ela não tenha alguns dentes. Agradeça o que você tem, pare de sonhar com o impossível e não chateie. Sua cor é o marrom.

Touro
Aquele seu plano envolvendo o bispo, o anão hermafrodita e o contrabando de alfajores do Uruguai – você sabe do que eu estou falando – não daria certo. Deixe para a semana que vem, quando a Lua será propícia. Seu número de sorte é impar, maior que três e menor que 725. Não posso dizer mais nada.

Gêmeos
Simplifique a sua vida. Pare de pagar suas contas. Em vez da declaração de renda, mande um bilhete desaforado para a Receita Federal. Se reclamarem, dê risadas irônicas. Ande de chinelo de dedo com meias e lixe-se para os comentários. Você comanda o seu próprio destino. Mas muito cuidado nos cruzamentos, porque pode vir outro louco.

Câncer
Evite alho-poró e pessoas chamadas Itamar, Fulvio Luiz ou Dalva Maria, principalmente à noite. Vênus entrou na casa de Netuno, o que significa que suas finanças e sua vida sexual podem se deteriorar rapidamente – tudo dependerá do que acontecer lá dentro.

Leão
Você é uma pessoa decidida, voluntariosa, opiniática e, francamente, insuportável. Está num período de grandes realizações, mas não deve esquecer que aqueles em que você pisou para subir mal podem esperar para segurar o seu pé na descida. Na vida sentimental, cuide para não arruinar romances com esse seu hábito de responder “Ah é, é?” a cada declaração de amor.

Virgem
Não quero estragar seu dia, mas… Só vou dizer o seguinte: não saia da cama hoje. Se já se levantou e está lendo isto em outro lugar, volte para a cama imediatamente! Amanhã tudo voltará ao normal. A não ser que… Não, não. Tudo voltará ao normal..

Libra
Não esqueça de checar o prazo de validade de tudo, inclusive das pessoas com quem entrar em contato. (Muita gente que já ultrapassou o prazo continua, por assim dizer, nas prateleiras.) Você encontrará alguém que lhe transmitirá uma inquietação filosófica: “Como saber se a luz da geladeira apaga mesmo quando a gente fecha a porta?”. Afaste-se rapidamente.

Escorpião
O alinhamento dos astros favorece cruzeiros em navios de luxo, romances de bordo e visitas a lugares exóticos, mas não garante que você não enjoará o tempo todo e pedirá para morrer. Se se arriscar, lembre-se que seu número na roleta é o 17. Pode não dar nada, mas é seu.

Sagitário
Aquele alguém que você esperava encontrar há tantos anos e que mudaria sua vida hoje estará dobrando uma esquina e esbarrando em você, dizendo “Não enxerga onde anda, não?” com irritação e seguindo adiante, porque seu signo é outro e sua previsão para hoje é completamente diferente.

Capricórnio
Parabéns. Seu futuro está assegurado. Você mesmo decidirá quanto ganha, terá prestigio, influência, mordomias… Mas primeiro terá que se candidatar e ser eleito.

Aquário
Abra-se para a vida, busque o que há de mais puro e autêntico do seu âmago e grite bem alto para os ventos: “Eu sou eu! Eu sou eu! Ou um fac-símile razoável!”. Abrace as contradições do mundo e declare seu amor por tudo que existe, seja animal, vegetal ou mineral, com a possível exceção do Ahmadinejad. Cante a beleza, cante a paixão e a Natureza, a qualquer hora do dia ou da noite. Só prepare-se para o protesto dos vizinhos.

Peixes
Estranhamente, não há nada previsto nos astros para os de Peixes, hoje. Talvez seja apenas um problema técnico.

terça-feira, 3 de maio de 2011

LIMA BARRETO, DISFARÇADÍSSIMO - Da ditadura do silêncio à “lista negra” - observatório da imprensa -

Por Alberto Dines em 7/9/2010


Capa raffinée, ilustrações idem, ao todo cinco páginas com textos de alto quilate. Tudo superlativo, comme il faut, no novo suplemento literário da Folha de S.Paulo (domingo, 5/9).

Mulato, pobre, morador de subúrbio carioca, funcionário público de terceira categoria, jornalista, escritor, bêbado, psicótico, solitário, amargo, intenso, inconformado, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) está de volta.

Em grande estilo: O Triste Fim de Policarpo Quaresma tem agora versão teatral, os contos serão republicados na íntegra, devidamente reavaliados e contextualizados. E a sua exemplar biografia, paradigma do gênero, agora em 8ª edição (as sete anteriores minuciosamente atualizadas pelo autor) está disponível nas livrarias. Assim como seu diário e as memórias do hospício.

Ao vivo

Marginalizado, banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima daquilo que ele próprio designou como "ditadura do silêncio".

Graças a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a "lista negra", o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos ou mortos.

O nome de Lima Barreto ficou quase 50 anos banido das páginas do liberalíssimo Correio da Manhã porque Isaías Caminha passava-se na redação de um poderoso matutino facilmente identificável e o seu fundador, Edmundo Bittencourt, era um dos protagonistas, embora disfarçado por um pseudônimo. O destemido Paulo Bittencourt que enfrentou tantas ditaduras manteve o embargo contra o literato que denegriu o pai.

Por coterie, reciprocidade corporativa, espírito de panelinha, o resto da imprensa aliou-se ao Correio e ignorou a obra que o editor ingenuamente apresentara como "livro de intriga jornalística fluminense".

"Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido onde tantas figuras respeitáveis – algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis – eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce", constatou o magistral biógrafo, Francisco de Assis Barbosa (pág.194)

Nome aos bois

Lima Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.

Fecharam-se na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras. Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este aos delírios.

Nos inspirados textos do caderno "Ilustríssima" (5/9) menciona-se o castigo imposto, mas não os motivos da punição. O triste fim de Lima Barreto fica parecendo obra de deuses vingativos, do perverso destino e não de seus humaníssimos contemporâneos, companheiros de profissão. A Folha tem o dom de contar histórias sem dar nome aos bois. É uma arte. Mãe extremada, transmite sua expertise a todos os rebentos.

O leitor que se dane.

***

A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa (José Olympio, 2002); Policarpo Quaresma, direção de Antunes Filho (SESC Consolação, até 31/10); Contos Completos de Lima Barreto (Companhia das Letras), Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos, prefácio de Alfredo Bosi (Cosac Naify).

O caso de Lima Barreto é fartamente mencionado na História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e na biografia Santos Dumont, do jornalista Gondin da Fonseca (Editora Vecchi, 1940), outro maldito que ousou revelar que o Pai da Aviação cometeu suicídio.


NIOMAR MONIZ SODRÉ BITTENCOURT (1916-2003)
O Correio da Manhã cada vez mais longe

Alberto Dines

Auto-exilou-se em Paris enquanto durou o regime militar, depois foi calada pela doença, longa, implacável. O jornal que o marido consolidou teria comemorado o seu centenário em 2001. Não passou dos 73 anos. Sumiu. Hoje é, no máximo, o "jornal do vovô".

Uma extraordinária saga de sucessos foi bruscamente interrompida por uma conjunção de fatalidades: em 1963, a morte de Paulo Bittencourt, filho do fundador, Edmundo Bittencourt. Em abril de 1964, já sob o comando da viúva, Niomar, o jornal liderou a cruzada da grande imprensa contra o governo de João Goulart. Pouco depois, fez meia-volta e passou à resistência contra o governo do marechal Castelo Branco.

Como castigo, o Correio da Manhã sofreu rigoroso boicote econômico e, logo depois do AI-5 (13/12/1968), Niomar foi cassada, em seguida encarcerada junto com jornalistas da sua redação. Libertada em 1969 percebeu que não havia condições para manter o jornal: arrendou-o a um grupo de empreiteiros próximos ao governo militar que serviram-se do que sobrara da empresa para lançar um jornal-satélite, o Diretor Econômico.

Em junho de 1974, desaparecia definitivamente um dos jornais mais combativos e independentes da moderna imprensa brasileira. Padrão de qualidade literária, paradigma de inovações empresariais e tecnológicas, incubadora de talentos, o Correio da Manhã foi também o protótipo do "jornalismo de dono de jornal" – explosiva combinação de personalismo, audácia e arrogância capaz de produzir grandes jogadas políticas e jornalísticas como também tremendas injustiças.

Entrou para a história do autoritarismo jornalístico o embargo ao escritor Lima Barreto (1881-1922), mantido impiedosamente na lista negra ao longo de meio século porque usou a redação do Correio como cenário para a arrasadora descrição do ambiente jornalístico da antiga Capital na novela Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909). Nos anos 1940, Gilberto Freyre demitiu-se porque a direção do jornal censurou um texto onde mencionava o nome de Samuel Wainer.

Sorte e desgraça

Fundado quando o resto da imprensa recebia os favores do presidente Campos Salles, ao longo de sua existência o Correio encarnou o jornalismo de oposição até que, vitorioso na cruzada pela posse de Juscelino Kubitschek, deixou-se envolver pelas benesses do situacionismo aceitando uma série de favores, inclusive a nomeação do seu redator-chefe, Álvaro Lins, para a embaixada em Lisboa.

Seu extremado antigetulismo confundiu-o durante algum tempo com o espírito da UDN (União Democrática Nacional), a oposição conservadora. Para isso muito contribuiu a presença de um inflamado colunista na última página, Carlos Lacerda, responsável pela rubrica "Tribuna da Imprensa". Mesmo quando a coluna transformou-se em nome de um vibrante vespertino (1949) o Correio continuou a fustigar Vargas: foi decisivo no cerco à Última Hora e mais ainda na tentativa de deposição de Getúlio Vargas, que culminou com o seu suicídio.

Reencontrou-se com o liberalismo no apoio intransigente a Juscelino Kubitschek e, logo em seguida, na campanha pela posse do vice João Goulart quando Jânio Quadros renunciou (agosto de 1961). O compromisso do jornal com este liberalismo levou-o a liderar a ação civil para derrubar Jango em 1964 através dos célebres editoriais de primeira página intitulados "Basta!" e "Fora!" (que deram o sinal para o início da insurreição militar) e alavancou, semanas depois, a surpreendente reviravolta quando assumiu solitariamente o combate às medidas de exceção e à repressão política do governo militar. Niomar Moniz Sodré Bittencourt teve a sorte e a desgraça de comandar o Correio nos seus melhores e piores momentos. [Sobre o Correio da Manhã leia-se História da Imprensa Brasileira, de Nelson Werneck Sodré (Civilização Brasileira, Rio, 1966)]

Morreu no mesmo ano em que morreram M.F. do Nascimento Brito (o transformador do Jornal do Brasil) e Roberto Marinho (criador da Organizações Globo). No mesmo ano em que as maiores empresas de comunicação do Brasil apresentam-se diante dos guichês do BNDES para sugerir uma linha especial de financiamento.

Encerra-se melancolicamente a "fase épica" da imprensa brasileira. Os historiadores logo encontrarão um nome mais apropriado para batizá-la. Os sucessores dificilmente produzirão um substituto

domingo, 24 de abril de 2011

O formato do umbigo - Luis Fernando Verissimo

24 de abril de 2011 | 0h 00
- O Estado de S.Paulo
Aquela "pasta" curta e oca que os italianos chamam de "pene" tem este nome porque lembra o pênis, mas não deve ser verdade que a inspiração para o nome veio do pinto pequeno do Davi de Michelangelo. Os mesmos italianos dizem que os "tortellini" têm o formato do umbigo de Vênus, mas este parâmetro, como o pinto do Davi, também não é universal, felizmente. A variedade de umbigos - côncavos, convexos, redondos, alongados, etc. - é, mesmo, uma das coisas que nos diferenciam um dos outros.


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Muitas coisas nos unem. Somos todos bípedes mamíferos. Todos os nossos antepassados, sem exceção, eram férteis. Todos sobreviveram até no mínimo a puberdade e todos tiveram ao menos uma relação sexual, digamos, convencional, e procriaram. Somos portadores de uma linha ininterrupta de DNAs triunfantes, portanto, e essa ascendência idêntica nos permite não só um sentimento de família como um certo orgulho do que conquistamos como espécie. A Natureza e os germes têm feito o possível para interromper nossa linhagem, mas perseveramos e prevalecemos. Pelo menos até agora.

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Nossas diferenças estão nos detalhes. Machos e fêmeas, para começar pela diferença mais óbvia. A cor da pele, a diferença mais superficial e sem importância que existe. E detalhes mínimos, como o formato do umbigo. Sabe-se que há muito mais destros do que canhotos no mundo, mas que tipo de umbigo tem a maioria? E que porcentagem lembra um "tortellini"?

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O umbigo tem causado controvérsias há gerações. Discutiam se nas imagens do Paraíso, Adão e Eva deveriam aparecer com ou sem umbigo, já que não tinham nascido de partos normais e sim feitos por Deus. Uma corrente justificava a presença de umbigos no primeiro casal como uma espécie e "imprimatur" do Criador, um carimbo bem no centro do corpo garantindo o equilíbrio da imagem e a autenticidade da obra. Outros encerravam a questão argumentando que, como Deus tinha criado o Homem à sua imagem, apenas reproduzira em Adão e Eva seu próprio umbigo, e quem ousava especular sobre a origem do umbigo de Deus? Na arte religiosa, os umbigos de Adão e Eva permaneceram. Como símbolo, ao mesmo tempo a marca da nossa ligação vital com o ventre materno e através dele com a nossa ascendência comum, com o cordão metafórico que atravessa os séculos e nos conecta todos ao começo da espécie, e à marca da nossa individualidade.

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O formato do umbigo é uma das pequenas coisas que determinam se somos minoria ou maioria na nossa própria espécie. Podemos pertencer a categorias dominantes ou a pequenas dissidências, sem nunca saber. Quantos homens botam as mãos na cintura quando fazem xixi? Ou uma mão na cintura enquanto a outra garante a pontaria? Somos multidões ou uma confraria que não se conhece? É mais comum abotoar a camisa de cima para baixo ou de baixo para cima? E comer a casca do queijo? Ou gostar de bife de fígado? Você pode se achar meio esquisito sem suspeitar que a maioria das pessoas tem a mesma esquisitice, ou achar perfeitamente normal mastigar a gravata e não entender a estranheza dos outros. O importante é, minoria ou maioria, nunca perder a consciência de que somos todos descendentes da mesma linhagem, a dos que venceram tudo o que conspirava contra sua reprodução. E temos os umbigos para provar.

sábado, 23 de abril de 2011

blog do nassif - Lições machistas, de Veríssimo

Lições machistas, de Veríssimo
Enviado por luisnassif, sab, 23/04/2011 - 10:46
Por Romanelli
provocação barata ..afrimação sem pé nem cabeça ..achismo conjectural travestido de ciência institucional

assim não ..assim não dá graça falarmos de economia

conta outra zé? ..se não sabe, então eu conto, ..ou melhor, repasso


DESABAFO DE UM BOM MARIDO
Luís Fernando Veríssimo

Minha esposa e eu sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras.
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Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica.
Então ela disse: 'Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar'.
Daí comprei pra ela uma cadeira elétrica.
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Eu me casei com a 'Sra. Certa'. Só não sabia que o primeiro nome dela era 'Sempre'..
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Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: 'O que tem na TV?' E eu disse 'Poeira'.
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No começo Deus criou o mundo e descansou.
Então, Ele criou o homem e descansou.
Depois, criou a mulher. Desde então, nem Deus, nem o homem, nem o Mundo tiveram mais descanso.
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Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes, o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.. Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer..
Certo dia, ao chegar em casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa.
Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dente e lhe entreguei..
'- Quando você terminar de cortar a grama,' eu disse, 'você pode também varrer a calçada.'
Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar, mas mancarei pelo resto da vida'.
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'O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a outra é o marido...

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Teclado silencioso - Luis Fernando Verissimo

- Os escritores antigos escreviam muito mais do que nós. Acho até que existia uma relação direta entre a dificuldade para escrever e a quantidade - e a qualidade - do que era escrito. Não há nada parecido, na era do e-mail, com o volume de correspondência dos escritores a pena, que além de manuscrever livros que pareciam monumentos manuscreviam cartas que pareciam livros. Quanto mais fácil ficou escrever, menos os escritores escrevem. Os livros ficaram mais finos e a correspondência se reduziu a latidos digitais, breves mensagens utilitárias cheias de abreviaturas, "envia" e pronto. Já um George Bernard Shaw escrevia uma peça atrás da outra com introduções maiores do que as peças e ainda tinha tempo para escrever cartas para todo o mundo. Geralmente xingando todo o mundo, o que exigia mais tempo e palavras.


Desconfio que a nova técnica também modificou o jornalismo. As barulhentas redações pré-eletrônicas eram áreas conflagradas onde o combate com o teclado duro era um teste de resolução e resistência, um trabalho decididamente braçal. Depois vieram os computadores e o ambiente de chão de fábrica foi substituído pelo de laboratório. Tese: data da informatização o começo do desvio das redações para a direita. E isso que a gente muitas vezes confunde com linhas editoriais conservadoras dominando a nossa grande imprensa pode ser apenas um efeito do teclado silencioso.

Racismo. O linguajar brasileiro está cheio de expressões racistas das quais não nos dávamos conta. Eram exemplos da condescendência que passava por tolerância entre nós. Termos como "crioulo", "negão", etc. eram considerados até carinhosos, do tipo de carinho que se dá a inferiores. Felizmente, são termos cada vez menos ouvidos. "Negro" foi substituído por "afrodescendente", por influência dos "afro-americans", num caso de colonialismo cultural positivo (em contraste com a substituição de "entrega" por "delivery"). Mas o racismo que não se reconhece continua no Brasil, e uma integração real pela linguagem viria mais rapidamente se as outras etnias adotassem autodenominações parecidas. Eu só teria dificuldade em definir minha ascendência com alguma concisão. Luso-ítalo-germano (e provavelmente afro)-descendente? Como boa parte dos brasileiros, não sou de uma linha, sou de um emaranhado.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Don Juan e a Morte - Luis Fernando Verissimo

– O Estado de S.Paulo
Quando a mulher revelou que era a Morte e que viera buscá-lo, Don Juan não pulou da cama nem tentou fugir. Apenas sorriu e disse:

- Eu deveria ter desconfiado.

- Por quê? – perguntou a Morte.

- Porque nenhuma mulher tão linda se entregaria a mim tão facilmente, se não fosse uma armadilha.

- Mas você não é um sedutor famoso? Um homem irresistível?

- Sim, mas na minha experiência, quanto mais linda a mulher, mais difícil a sedução. E com você não precisei usar nenhum dos meus truques. Nem meu olhar de desatar espartilhos, nem os versos que orvalham o portal do amor antes mesmo do meu primeiro toque… Você é a mulher mais bonita que já conheci, mas bastou dizer “vem” e você veio. Eu deveria ter desconfiado.

- Eu talvez tenha me precipitado, ao ceder tão facilmente. Gostaria de ouvir seus versos, que também são famosos. Se eu tivesse resistido um pouco mais…

- Pois é. Agora é tarde.

- O que você diria da minha beleza, se fosse obrigado a recorrer à poesia para me trazer pra cama?

- Bem. Assim, de improviso… Ainda mais depois de saber da minha morte iminente…

- Tente.

- Eu começaria elogiando o seu porte heráldico. Compararia a brancura da sua pele às primeiras neves, quando os cristais ainda reluzem, e o rego dos seus seios ao estreito de Gibraltar, onde dois continentes portentosos se roçam. Comentaria as estrias roxas do seu cabelo e… e…

- Que foi? Por que parou?

- Acabo de me dar conta. Está explicado por que nos amamos em todas as posições possíveis, inclusive algumas que eu mesmo inventei, sem que eu ouvisse um “ui” da sua boca. Um mísero “ui”. Você se manteve fria o tempo todo. Claro! Onde se viu a Morte gozar?

- Desculpe, eu…

- Não se desculpe. Você não vê? Isso redime a minha masculinidade. Pensei que tivesse perdido meu jeito de satisfazer as mulheres, que nunca tinha falhado antes. Mas não era eu. Era você. Você só estava aqui a serviço, não para se divertir.

- Não deixou de ser agradável.

- Obrigado, mas não precisa mentir. Vou morrer feliz, sabendo que não falhei. E o irônico é que passei a vida inteira seduzindo mulheres para adiar a velhice, enganar o tempo e protelar a morte, e ela, a morte, você, me aparece assim. Na forma da mulher mais bonita que já conheci. Olhos como lagos fosforescentes, pescoço como a coluna de mármore de Amastar, onde peregrinos encostavam a testa para rejuvenescer; tornozelos como…

- Não quero interromper, mas acho que deveríamos partir.

- Certo, certo. E se a gente desse mais uma, rapidinha, só para eu me lembrar depois? Ouvi dizer que, no céu, o canto coral substitui o sexo e no inferno é só com um cabrito.

- Não é uma boa ideia. Vamos?

- (Suspiro) Vamos

sábado, 26 de março de 2011

poesia - 127 pessoas

Caricatura de Almada Negreiros



José Paulo Cavalcanti Filho lança primeira biografia brasileira de Fernando Pessoa , em que revela 55 novos heterônimos

MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

José Paulo Cavalcanti Filho tinha um objetivo quando iniciou sua biografia de Fernando Pessoa (1888-1935): descobrir quem era o "homem real" por trás do grande poeta português.
Após oito anos de pesquisa, o autor e advogado pernambucano acabou deparando-se não com um, mas com 127 "Pessoas".
É esse o número de heterônimos do poeta catalogado pelo livro "Fernando Pessoa: Uma (quase) Biografia", que Cavalcanti lança agora.
As múltiplas personas de Pessoa vão muito além de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e superam também o que pensavam os especialistas.
Cavalcanti cita no livro que, no início dos anos 1990, eram conhecidos 72 heterônimos de Pessoa. O livro acrescentou 55.
O conceito de heterônimo que adotou é amplo e não se restringe à definição padrão: "nome imaginário que um criador identifica como o autor de suas obras e que apresenta tendências diferentes das desse criador".
Inclui todos os nomes, tendo estilo próprio ou não, com os quais o poeta assinou seus textos. A decisão pode ser contestada, mas a intenção de Cavalcanti nunca foi fazer uma biografia convencional.
As excentricidades já começam pelo subtítulo: "Uma (quase) Autobiografia".
O autor refere-se ao trabalho como o "livro que escrevi com meu amigo Pessoa".
A "amizade" é das mais antigas. Começou em 1966, quando Cavalcanti leu "Tabacaria", um dos principais poemas do autor.
A partir daí, viria a montar umas das principais coleções sobre vida e obra de Pessoa.
O poeta deixou mais de 30 mil páginas com anotações sobre si mesmo, literatura, família e fatos cotidianos.
Cavalcanti usou tantos trechos que chega a dizer que seu livro tem "mais frases de Pessoa do que minhas".
"Mas não se trata", explica, "de Pessoa falando sobre si, é a palavra de Pessoa falando sobre ele. Ou melhor: é o que quero dizer, mas por palavras dele".
Cavalcanti foi ainda além: para dar unidade estilística ao texto, tentou escrever como Pessoa.
Reduziu os adjetivos e adotou outro hábito dele: o uso, em média, de três vírgulas antes de um ponto final.

SEM IMAGINAÇÃO
Durante a pesquisa, Cavalcanti foi até quatro vezes por ano a Portugal. Leu centenas de documentos e entrevistou parentes e pessoas que conviveram com Pessoa.
Dessas andanças, saiu com a certeza de que o poeta é o autor "menos imaginativo" que existe.
"Tudo o que escreveu estava realmente à volta dele. Não tinha nada inventado."
Como exemplo, cita "Tabacaria". O poema menciona cinco personagens e Cavalcanti revela que todos realmente existiram e eram próximos do poeta.
Quando se trata de Pessoa, contudo, nem tudo é claro. "Sabes quem sou eu? Eu não sei", já advertia o poeta.
Sobre sua vida sexual ainda paira uma imensa dúvida. Teria sido gay? Cavalcanti acha que sim, embora não existam provas.
Também não há certeza sobre se teria ou não transado com Ophelia, seu mais conhecido relacionamento (Cavalcanti pensa que não foram além de beijos ardentes e leves toques nos seios).
Cultivar mistérios, ao que parece, fazia parte do estilo de Pessoa, e isso também Cavalcanti tentou incorporar.
O poeta tinha por hábito, diz o biógrafo, embaralhar as datas. O heterônimo Alberto Caeiro, por exemplo, morreu em 1915, mas há textos datados de 1930 atribuídos a ele.
No prefácio do livro, Cavalcanti também colocou uma data futura: 13/6/2011. Dupla homenagem, já que Pessoa nasceu nesse dia, em 1888.

Estilo do biógrafo rivaliza com o de Pessoa

Livro sobre o poeta português traz esforço notável de pesquisa, mas troca literatura por "verdade" biográfica


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O OBJETIVO NÃO É INTERPRETAR, MAS BUSCAR RELAÇÕES ENTRE VIDA E OBRA, PARA QUE O INICIANTE NÃO SE ILUDA
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CARLOS FELIPE MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O esforço é notável: milhares de documentos compulsados, dezenas de pessoas entrevistadas, em três continentes, e toda a vasta obra de Fernando Pessoa percorrida palmo a palmo.
Resultado: 700 e tantas páginas de comovida homenagem ao poeta, famoso pelos heterônimos. Trata-se de um relato biográfico em que o fio narrativo, abrindo mão de foco ou finalidade, constantemente envereda por atalhos e digressões. Podem levar das alfaiatarias, barbearias e cafés frequentados pelo poeta, às casas onde morou e aos escritórios onde trabalhou. De uma antologia não comentada de partes da obra às hipóteses relativas ao namoro com Ophelia e à sexualidade em geral, e muita coisa mais.
"Não é um livro para especialistas", afiança o autor, já que não lida com literatura, mas tem o mérito de reunir no mesmo lugar uma enorme quantidade de informações (fantasias à parte) até então dispersas. E isso pode ser útil a... especialistas.

SEM INTERPRETAÇÃO
Modestamente, porém, o autor considera a biografia um "simples guia para não iniciados". Por isso, Cavalcanti não arrisca nenhuma "nova interpretação".
Seu objetivo, com efeito, não fazer interpretações, mas buscar relações entre vida e obra, a fim de que o iniciante não se iluda julgando que vai lidar com poesia ou literatura: é tudo, só, uma questão de "verdade" biográfica.
Assim, ficamos sabendo (um exemplo, entre muitos) que, no poema "Tabacaria", a pequena dos chocolates "é sua sobrinha Manuela Nogueira" -"como ela própria me confessou", acrescenta o autor. O especialista, se quiser, que continue a buscar suas interpretações.

MÁSCARAS
O subtítulo diz: "Uma (Quase) Autobiografia". É que o escritor ilustra o seu próprio texto (sem aspas) com abundantes frases soltas (já agora entre aspas), livremente extraídas da obra pessoana.
Cleonice Berardinelli, na apresentação do livro, vai direto ao ponto: "Essas aspas funcionam como uma espécie de nova máscara, desta vez aplicada à face do autor deste novo livro".
O que temos, então, nem "auto" nem "quase auto".
Trata-se apenas de uma biografia, gênero híbrido em que a têmpera do biógrafo às vezes rivaliza com a do biografado, quem sabe para reforçar a homenagem.

CARLOS FELIPE MOISÉS é professor de literatura da USP e autor de "O Poema e as Máscaras" (1981), "Fernando Pessoa: Almoxarifado de Mitos" (2005) e "Conversa com Fernando Pessoa" (2008), entre outros livros

terça-feira, 8 de março de 2011

mídia e poder - BRUNA SURFISTINHA - A condensação e o deslocamento - Affonso Romano de Sant’Anna - observatório da imprensa

Por Affonso Romano de Sant’Anna em 8/3/2011


Onde começa a imagem da atriz Deborah Secco e onde termina a figura real de Bruna Surfistinha? Para mim não há dúvida, distingo a atriz da personagem. No entanto, tomo uma matéria publicada n’O Globo (23/2/2011) a propósito do lançamento nacional do filme Bruna Surfistinha, dirigido por Marcos Baldini. Estamos diante de um texto (ou contexto) que ilustra alguns dos impasses da ideologia da cultura contemporânea. É um texto sintomático. O que tem isto a ver com a fusão do público e do privado, com a superposição do centro e da periferia e com a questão do real e sua representação?

Tomemos o texto. Ele expõe uma ambiguidade textual e contextual. A rigor, a duplicidade Bruna/Deborah começou já numa outra ambigüidade anterior: Bruna/Raquel. Bruna é a personagem criada pelo jornalista Marcelo Duarte no livro O doce veneno do escorpião e Raquel Pacheco – a autêntica garota de programa que teve sua vida biografada. Aliás, biografada ou romanceada? (Os que se interessarem por isto academicamente, podem desdobrar aqui o item biografia/ficção – um dos tópicos preferidos da pós-modernidade).

Concentremo-nos na ambigüidade Deborah/Bruna tal como vem estampada no texto jornalístico. Esta duplicidade é um típico exemplo daquilo que Freud ao falar de mecanismos de nosso inconsciente chamava de "condensação" e "deslocamento", e os linguistas, posteriormente, a partir de Roman Jakobson denominaram de "metáfora" e "metonímia". Resumindo: pela condensação fundimos Bruna e Deborah numa só pessoa e pelo deslocamento falamos de uma no lugar da outra. Os dois movimentos são complementares, às vezes a condensação (metáfora) é dominante, às vezes o deslocamento (metonímia) é o que predomina.

Esses mecanismos existem não só nos sonhos, nas artes, mas nas representações sociais. A publicidade recorre a isto constantemente. Ao botar, por exemplo, uma linda mulher ao lado de um automóvel está procedendo primeiro a uma condensação (o automóvel tem os atributos da mulher irresistível) e depois a um deslocamento (eu compro o carro, investido do desejo anunciado). Ou seja, uma imagem contamina a outra.

As verdadeiras

Voltemos ao nosso caso exemplar: o jornal traz uma foto de Deborah Secco, lindíssima, em roupa de gala na estréia do filme Bruna Surfistinha (no Cine Odeon, Rio) sendo cumprimentada por umas cinco moças. A foto representa uma realidade, o lançamento do filme. No entanto, embaixo da foto a legenda faz uma condensação: "Bruna e as companheiras de michê". Estabelece-se a ambigüidade. A foto é de Deborah. Mas reparem, o texto não diz Deborah, mas Bruna. E pode-se pensar ambiguamente, que aquelas não são as atrizes (companheiras de Deborah), mas as companheiras de Bruna, a prostituta.

Por outro lado o titulo da matéria é igualmente ambígua: "Bruna Surfistinha tira a maior onda". De qual Bruna Surfistinha se trata? De Deborah a atriz presente na estréia da peça ou de Bruna propriamente dita, ausente fisicamente, mas presente simbolicamente?

A ambigüidade continua. Noutra parte, descrevendo as pessoas e as cenas na estréia do filme, o jornal formaliza a dubiedade escrevendo os nomes de Deborah e de Bruna separados por uma barra: "Deborah/Bruna(...)está ao lado da mãe. Dona Silvia assiste a tudo impassível". Ambigüidade de novo: se Deborah é Bruna, pode-se ficar na dúvida se Dona Silvia é mãe de Deborah ou Bruna.

A matéria continua expondo a ambigüidade. Dentro e fora da tela, dentro e fora do teatro. No filme, uma personagem, encenada pela atriz Drica Moraes, diz: "Tá cheio de mulher bonita gostosa e universitária querendo trabalhar". Bem, neste caso é outra atriz representando outra personagem, que faz essa afirmativa que define algo da sociedade atual. Segundo essa afirmativa, Bruna ou melhor, Raquel, é uma figura exemplar, pois exemplificaria um desejo de moças de classe média hoje.

A realidade e a ficção voltam a se misturar, agora de outra forma. Há outra vez uma mistura entre ficção e realidade: não é mais a personagem que Drica Moraes representa, mas outra pessoa concreta, uma atriz, Giulia Gam, na platéia do filme e não na tela, declarando: "Ah, toda mulher tem o fetiche de ser prostituta por um dia, nem que seja para o namorado". (É uma afirmação categórica à qual outras mulheres poderiam responder com mais propriedade.)

No entanto, face a essa afirmativa, a própria Deborah saindo da pele da Bruna, deixando o espaço de identificação e condensação, sentindo-se inconfortável diante dessa declaração tem a seguinte reação assim narrada pelo jornal: "Deborah pode até concordar, mas ficou ruborizada e disse que era ‘puramente artístico’ o seu interesse em viver uma prostituta".

Com efeito, a atriz havia declarado que preparando-se para o filme fez workshop, indo conversar com prostitutas verdadeiras para conhecer melhor a realidade delas. E confessou também que o papel era para ela uma possibilidade (artística), como se diz hoje, de desconstruir-se.

Empenho realista

Porém, voltemos à cena narrada pelo jornal. A condensação das duas imagens com o eventual deslocamento continua. Dou um exemplo: ali no Cine Odeon (diz o jornal) está uma ex-integrante do Big Brother – programa que para alguns é o espaço da permissividade e da prostituição chique. Cida Moreira, que saiu da tela do Big Brother para a tela de outra emissora em que agora trabalha (nova condensação/deslocamento entre ficção e realidade), acena para a atriz do filme e recebe um beijo de volta da Deborah/Bruna.

Consideremos, nessas alturas, contrastivamente, outros fatos artísticos que giram em torno da temática da prostituição. Remeto o leitor interessado ao livro O canibalismo amoroso (Editora Rocco) onde estudo a imagem da "prostituta sagrada" e o fenômeno da "hierogamia" seja entre os babilônios seja na tradição cristã com duas Marias: a mãe de Jesus e Maria Madalena. Contudo, embora em nossa tradição exista um farto material que inclui A dama das camélias/ A Traviata os romances de Jorge Amado ou a filmes como Uma linda mulher ( Julia Roberts) consideremos, dentro dos estreitos limites deste ensaio, a peça Navalha na carne de Plínio Marcos que teve, em 1968, Tônia Carreiro no papel de prostituta.

Quando Tônia representou a prostituta, por mais realista que fossem o texto e a cena, nem por isto sua imagem na imprensa e na ideologia da época foi confundida com a da personagem. A imprensa e o público sabiam que aquilo era "representação". A ambiguidade era zero. As coisas ocorriam no nível do simbólico, da representação. Evidentemente Tônia estava encarnando uma personagem, enquanto Deborah está encarnando uma pessoa viva, transformada pela mídia em personagem. Mas, estratégica e sintomaticamente, as entrevistas com Bruna/Raquel/Deborah que estão sendo feitas para o lançamento do filme reforçam ainda mais a condensação e o deslocamento.

E surge um outro fato para fértil análise.

Coincidentemente, nesses dias, A navalha na carne está sendo encenada no Hotel Paris, na Praça Tiradentes, no quarto de uma prostituta. O teatro contemporâneo (como a arte oficial de nosso tempo) tem trabalhado com essa experimentação. Não há mais fora e dentro, rascunho e texto definitivo, certo e errado, teatro e outras artes, platéia e palco, autoria e apropriação. Não há mais limites, trabalha-se sobre a indiferenciação ética e estética.

No caso da encenação no prostíbulo do Hotel Paris, o papel principal está com a atriz Marta Paret e o espetáculo é dirigido por Rubens Carmelo. É um empenho realista, digamos total, dentro de uma tendência do teatro atual de abolir o limite entre o espaço imaginário e o real, reforçando os mecanismos de condensação e deslocamento.

A diferença

Houve, portanto, um tempo em que era mais nítida a diferença entre a representação e o representado ou, então, isto era uma estratégia claramente delimitada. Um ator representando um assassino não era necessariamente tido como um assassino, quem representava um louco não era necessariamente um louco e assim por diante. Liam-se o texto e o contexto diferentemente.

Mas a cultura contemporânea propõe, em certas obras, uma coisa intrigante e de alto risco, conquanto às vezes muito criativa: abole-se a fronteira entre a realidade e ficção, o real invade o lugar do simbólico, como se a realidade (in presentia) fosse mais forte que a imaginação (in ausentia). A ordem é apresentar o real ao invés de representar ou de reapresentá-lo. Com isto o símbolo passa ser substituído pela realidade.

Seria isto um empobrecimento, um beco sem saída? Qual a diferença entre mergulhar jubilosamente no "mal estar da civilização" e, diferentemente, analisar isto enquanto sintoma? O que é que a tal ambiguidade, a quebra de fronteiras e limites têm a ver com o que Gregory Batteson chamava de double bind, ou seja, o discurso duplo de uma sociedade esquizofrênica que emite ordens contraditórias?

Onde começa a desrepressão pessoal e social e onde começa a anomia? De que modo, o fato de abolir as "diferenças", além de redefinir papéis nos joga no indiferenciado?

Nesses dias, também no jornal, li uma matéria sobre este mesmo assunto, mas era algo "diferente", "diferenciado". Desta vez a personagem real era Gabriela Leite, notória líder das prostitutas e ex-prostitutas brasileiras . Estava ela acompanhada de duas líderes de prostitutas alemãs que foram com ela visitar o cemitério das "polacas", ou seja, as prostitutas enterradas no século passado no cemitério dos judeus no Rio. Denunciavam assim o trabalho a que eram submetidas as escravas sexuais, desta vez sem nenhuma glamourização. E havia diferença. A condensação foi para o segundo plano. Operou-se um deslocamento crítico

quarta-feira, 2 de março de 2011

mídia,internet e poder - literatura - Carlos Fuentes - TEMPOS DE CONVERGÊNCIA - Sobre a coexistência dos meios - observatório da imprensa-

Por em 1/3/2011

Reproduzido do El País, 27/02/2011; título original "Sobre la coexistencia de los medios", intertítulo do OI

A Carmen Aristegui, periodista

Entramos al siglo XXI con una evidencia: el crecimiento económico depende de la calidad de la información y ésta de la calidad de la educación. El lugar privilegiado de la modernidad económica lo ocupan los creadores y productores de información, más que de productos materiales. Cine, televisión, casetes, las industrias de la comunicación y las productoras de los instrumentos y equipos procesadores de información están hoy en el centro de la vida económica global. Los ricos de antaño producían acero (Carnegie, Krupp, Manchester). Los ricos de hogaño producen equipos electrónicos (Bill Gates, Sony, Silicon Valley).

El presidente Bill Clinton nos recuerda que al asumir la presidencia en 1993, sólo había 50 websites. Al dejar la Casa Blanca ocho años más tarde, había 350 millones. Juan Ramón de la Fuente, ex-rector de la UNAM, nos recuerda, a su vez, que hoy circulan en Internet 50.000 millones de mensajes diarios. Primero, en 40 años, la radio logró sumar 50 millones de oyentes. La televisión, desde 1950, atrapó igual número de televidentes. Pero en sólo cinco años, Internet alcanzó la suma que a la radio le tomó 40 años y a la televisión otro medio siglo. En el año 2000, había 300 millones de usuarios de Internet. Hoy, hay 800 millones.

Se acusa a los medios más novedosos de aislar. Como en la excelente película de David Fincher, The Social Network el número de usuarios de los medios modernos pueden aislarse en la relación con otros usuarios, creando redes paradójicas de ficción comunicativa: si yo estoy en relación contigo, no tengo por qué estarlo con el resto del mundo. El tu y yo de la comunicación parecería excluir al nosotros.

Novos valores

Túnez y Egipto y todo el Mediterráneo sur, acaban de demostrar que la relación uno-a-uno no excluye la comunicación del yo con el nosotros a través de múltiples individualidades eslabonadas en una gran colectividad que, al conocerse, se da cuenta de que el mundo oficial la ignora y que al conocerse, también se da cuenta de su poder colectivo. Internet, Facebook, Twitter, reúnen a las multitudes que hemos visto en las calles de Túnez, El Cairo y Alejandría. Esas multitudes representan a una clase media y a una clase trabajadora ignoradas por el estrecho círculo del poder ejercido desde arriba y sólo para los de arriba, con algunos mendrugos arrojados a los de abajo. Sólo que los de abajo son la mayoría. Sólo que los de abajo no son sólo obreros y campesinos, sino estudiantes, profesionales, amas de casa, empresarios, comerciantes, toda una clase media formada por, a pesar de, al lado del autoritarismo que no la veía, y si la veía, la atomizaba en grupúsculos manipulables y minoritarios. Gran paradoja. Un gobierno autoritario de larga duración tolera a un pueblo dividido y lejano, hasta que ese pueblo adquiere la visibilidad de su propia conciencia gracias a lo que supuestamente lo aislaba y actúa en consecuencia. El tiempo que nos tocó nos niega la comodidad de creer que la educación concluye alguna vez, en algún grado anterior al resto de nuestras vidas.

Esto significa que, por una parte, las escuelas pierden el monopolio de la enseñanza y, por la otra, la prensa pierde el monopolio de la información pero también, que mantenerse informado en el largo periodo post-escolar y post-universitario es un deber y un derecho, inseparables del ejercicio de la ciudadanía y que este derecho, esta obligación, lo son de nuestra prensa. La información también está en crisis, pero acaso en una crisis de crecimiento, que expande los medios nuevos pero no sacrifica los anteriores. Se suponía en el siglo XIX que la aparición del periodismo de masas sentenciaría a muerte al libro. Balzac aprovechó el dilema para escribir una gran novela sobre el periodismo, Las ilusiones perdidas. Se suponía que la radiotelefonía, a su vez, mandaría a la prensa escrita al gran cementerio de las antigüedades. No fue así, radio y prensa convivieron y aunque Marshall McLuhan anunció la muerte del libro y la conversión del medio en mensaje, la televisión no enterró ni a la literatura, ni a la prensa, ni a la radio.

¿La nueva edad que se anuncia, la era de la tecnoinformación, matará a las formas de comunicación anteriores? No lo creo. La radio, lejos de perecer, está hoy más viva que nunca y mejor adaptada a los horarios, tempraneros o nocturnos, de la vida moderna. La televisión no hace sino aumentar y diversificar su oferta: los canales televisivos suman varios miles. ¿Es la prensa escrita la víctima propiciatoria de la nueva -o última- modernidad? Sí, hay grandes diarios que cierran o se achican, o se ofrecen por Internet. Acaso, quizás, la prensa escrita, como la literatura, sólo llegue en su forma actual a los menos aunque a los mejores, aunque yo, como escritor, tengo el gusto de mancharme diariamente las manos con la tinta fresca de un periódico y otros ciudadanos, más jóvenes, leen el mismo periódico en una pantalla. Al cabo, sin embargo, yo no creo que lo nuevo desplace totalmente a lo anterior. Creo que las cosas acabarán por equilibrarse, coexistir, subrayar valores y eliminar defectos, aunque con la posibilidad, humana al cabo, de generar nuevos defectos junto con nuevos valores.

terça-feira, 1 de março de 2011

Muniz Sodré - observatório da imprensa - RACISMO "AFETUOSO" - Monteiro Lobato vai para o trono?

Por Muniz Sodré em 1/3/2011


Um incidente pré-carnavalesco trouxe de novo à cena a figura de Monteiro Lobato, que frequentara com alguma assiduidade as páginas da imprensa no ano passado, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) considerou racista o livro Caçadas de Pedrinho. Agora é a camiseta desenhada por Ziraldo para o bloco carioca "Que merda é essa?", em que Lobato aparece sambando com uma mulata. Houve manifestação popular e protestos, dos quais o mais veemente e consistente foi o da escritora Ana Maria Gonçalves, autora de Um Defeito de Cor, romance notável no panorama da literatura brasileira contemporânea.

Nenhum jornal reproduziu o teor da carta – ponderada e judiciosa – da escritora ao cartunista, admitindo que poderia tê-la estendido a outros destinatários, nomes importantes no chamado corredor literário. Há, porém, a internet, e graças a ela se fica a par dos argumentos da romancista, todos inequívocos quanto ao racismo do consagrado autor de Caçadas de Pedrinho. Pela imprensa escrita, ficou-se sabendo apenas que, na opinião da autoridade tal, "a manifestação era uma besteira", ou então que carnaval não é ocasião para "assuntos de seriedade".

Para meter aqui a colher na discussão, é preciso deixar claro de início e de uma vez por todas, o seguinte: Monteiro Lobato era um racista confesso, seu ódio aos negros não é nada que se deduza por interpretação de seu texto ficcional. Mas quase todo o mundo leitor sabe disso. É lamentável fingir inocência ou alegar que o racismo brasileiro é diferente, é "afetuoso". Aí estão publicadas as cartas ao amigo Godofredo Rangel, em que Lobato se perguntava como seria possível "ser gente no concerto das nações" com aqueles "negros africanos criando problemas terríveis". Que problemas? Simplesmente serem negros, serem o que ele chamava de "pretalhada inextinguível". O escritor sonhou ficcionalmente com a esterilização dos negros (vide O Presidente Negro) e sugeriu, muito antes do apartheid sul-africano, o confinamento dos negros paulistas em campos cercados de arame farpado.

Não cabe argumento

No entanto, se me perguntassem qual a minha relação pessoal com a literatura infanto-juvenil de Lobato, eu teria de ser honesto e confessar que, ainda menino, no interior do Brasil, era fascinado por suas narrativas. Francamente, eu nunca havia percebido os laivos racistas, que não são tão numerosos assim em sua obra ficcional, mas estão lá para quem se dispuser a bem enxergar. Lobato dizia que a escrita é um "processo indireto de fazer eugenia" e de fato ele sabia como fazer. Isso significa que se deva banir a literatura de Lobato? Como se pode abominar o que também se ama ou se amou?

Não são questões fáceis. O que se pode inicialmente fazer é fornecer algum material para uma reflexão, que talvez possa mesmo contribuir junto aos editores de nossa mídia para a adoção de posições mais qualificadas no tocante à difícil questão racial brasileira.

O primeiro ponto a se levar em conta, se desejarmos uma avaliação objetiva da posição de um "outro", estranha à nossa, é que se rejeite o binarismo simplista das oposições radicais (direita/esquerda, culpa/inocência etc.) porque debilita as formas mais abrangentes de compreensão do mundo. Claro que existe o racismo, assim como a direita política, autoritária e odiosa no passado, às vezes coberta com pele de cordeiro e sempre formuladora de políticas a serviço do capital financeiro e dos complexos industriais. Mas a radicalização da oposição a seu contrário impede não apenas a compreensão de dimensões sutis e ambivalentes de determinados problemas, como também a percepção de aspectos obtusos e autoritários na esquerda supostamente progressista.

A atuação soviética no leste da Polônia, durante a Segunda Grande Guerra, tinha em comum com alemã no oeste a palavra "atrocidade". Sobre as vítimas dos genocídios, não cabe o argumento das especificidades políticas.

Diferença que não é metafísica

Depois, que se ponham entre parênteses aspectos historicamente rebarbativos das circunstâncias ideológicas em que se gerou um determinado saber tido como relevante para a consciência crítica. Por exemplo, a inegável adesão de Heidegger a um momento do nacional-socialismo alemão, uma das primeiras ditaduras tecnológicas do Ocidente, não oblitera a importância da crítica heideggeriana à técnica. Outro exemplo: o passado nazista de Carl Schmitt não impede que sua obra hoje possa ser academicamente avaliada como uma das mais importantes da ciência política contemporânea.

É um engano, portanto, pôr a razão de um lado e a desrazão de outro, em termos absolutos. Quando falamos de "razão", estamos nos referindo à possibilidade de conhecer a priori, erigida como faculdade superior do homem. Mas não raro as posições divergentes são aspectos diferenciados da mesma razão, tomada como contraditória à primeira vista. É que existe uma espécie de "impacto emocional dos conceitos", referido por Florestan Fernandes ao criticar as formulações sociológicas que se detêm em determinações estruturais de significado geral, fora e acima dos contextos histórico-sociais, e assim "criam uma falsa consciência crítica da situação existente, paradoxalmente simétrica às mistificações antirradicais, elaboradas por meio das ideologias conservadoras".

Há evidentemente limites para a convergência ou para a reconciliação dos contrários (esses limites fornecem historicamente os materiais da oposição esquerda/direita). Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que a direita sempre esteve do lado do capital, enquanto a esquerda almejou a alternativa socialista. Mas a diferença não é metafísica, e sim histórica, e só pode ser deduzida de situações socialmente concretas.

Racista confesso

Em outras palavras, se não reconhecemos no trabalho dos autores historicamente classificados como de direita (reacionário, comprometido com a manutenção do status quo, a despeito das iniquidades) a mesma inteligência que gerou o trabalho de pensamento de esquerda (revolucionário ou reformista, empenhado na transformação das estruturas sociais e das formas vigentes de dominação), deixamos de entender por quê determinadas formas de dimensionamento da realidade foram tão aceitáveis para vastas parcelas da humanidade, ainda que contrárias à veracidade por nós atribuída à órbita intelectual e afetiva em que nos movimentamos, portanto, às vontades que comandam a nossa inteligência.

É provável que esse modo de pensar não resolva de imediato a questão – lobatiana – em pauta. Mas aponta para a densidade e a diferenciação dos níveis de leitura. Num certo nível, é possível a uma consciência generosa ou solidária para com as diferenças aproveitar algo do brilho de um pensamento conservador, nada solidário para com o outro. Em outro nível, isso é impossível. Por exemplo, a uma criança, portanto no estágio plástico e movediço de sua socialização, torna-se muito difícil fazer a crítica do criticável. O Lobato de que estamos falando é aquele que escrevia para um público infanto-juvenil, esse mesmo sobre quem os preconceitos e os estereótipos atuam com toda a força emocional que costumam ter. É, portanto, um público a ser protegido.

Se até hoje escritores, intelectuais, jornalistas, homens ditos públicos não conseguem assimilar a gravidade da questão racial e perdem o siso quando veem os pés de barro de seu escritor-ídolo de infância, como esperar que as crianças o façam? Lobato era, sim, um bom escritor, um editor importante, um visionário (sempre acreditou na existência de petróleo no solo nacional), mas também um racista confesso. Este é o real, este é o fato, que é preciso aceitar como ponto de partida para depois se decidir, como diria o Chacrinha, se ele vai ou não para o trono, se será ou não buzinado.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

blog do nassif - Tudo sobre Fernando Pessoa

blog
luisnassif, dom, 27/02/2011 - 22:19
Autor: Ivan Claudio
Por Gilberto Cruvinel
Da Revista Isto É - 25.Fev.11

O poeta português ganha a sua primeira biografia escrita no Brasil. Na contramão do muito que já se falou sobre Pessoa, o advogado e escritor José Paulo Cavalcanti desmonta lendas e mitos e traz à luz fatos inéditos

Ivan Claudio




NOVAS LUZES
Fernando Pessoa em tela de AlmadaNegreiros: vida revista e esmiuçada

Desde a sua morte, em 1935, já se escreveram mais de seis mil livros sobre a obra do escritor português Fernando Pessoa, um dos maiores da língua portuguesa e da literatura mundial. Mas biografias só existem três. A escassez decorre da originalidade de sua poesia, que se desdobrou em uma centena de heterônimos (autores fictícios) e, por isso, polariza a atenção dos estudiosos.

Há também outra razão, mais prosaica: Pessoa, morto aos 47 anos, passou quase a totalidade de sua curta existência em Lisboa e, nela, circunscrito a uma área de no máximo quatro quilômetros quadrados – território exíguo onde morava, trabalhava e ficavam os cafés que frequentava. Uma vida voltada para a arte e sem grandes lances, que necessita de uma lupa para reverberar versos como o de sua persona mais famosa, o poeta Álvaro de Campos: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” É com essa lente de aumento do rigor e da meticulosidade que o advogado e escritor pernambucano José Paulo ­Cavalcanti, 62 anos, pesquisa há uma década a trajetória do poeta e lança no dia 24 de março o livro “Fernando Pessoa – Uma Quase Biografia (Record). É a primeira obra do gênero sobre esse escritor no Brasil e Cavalcanti diz que a escreveu “quase não querendo”: “Esse é o livro que eu sempre quis ler sobre Pessoa e que até agora não existia.” Sua publicação promete causar polêmicas de alcance mundial, já que revê muitos fatos tidos como certos em relação ao autor do “Livro do Desassossego” e do poema “Tabacaria”, do qual foram extraídos os versos citados acima.


PERSONAGEM
Pessoa criou muitos autores fictícios. A biografia acrescenta 60
desses heterônimos, além dos já conhecidos

O poema “Tabacaria”, primeiro contato de Cavalcanti com o universo do autor (ele o leu aos 16 anos), suscitou algumas das maiores descobertas a ser reveladas pelo livro inédito. A tal loja de cigarros e charutos, que sempre se creu que Pessoa via da janela de sua casa e que até hoje se pensava chamar-se A Morgadinha é, na verdade, a Havaneza dos Retroseiros (atualmente uma loja de peles). Pessoa não a via da janela do quarto como se acreditava, mas do escritório onde trabalhava com o amigo Luís Pedro Moitinho de Almeida. Para chegar a essa conclusão, Cavalcanti adotou o método empírico: visitou o lugar em que o poeta morava na época e provou que, mesmo se ele se encurvasse na janela, não veria tabacaria alguma. Outro erro: o poema é de 1928 e a Morgadinha foi fundada em 1958. Nesse período, ele não tinha máquina de escrever e varava as noites usando a do trabalho, no centro de Lisboa. Basta olhar da janela desse prédio: está lá a antiga Havaneza. As conclusões de Cavalcanti não param aí. O homem citado no poema, o “Esteves sem metafísica”, realmente existiu e foi quem, tempos depois, registrou o atestado de óbito do escritor. Cavalcanti vai mais longe e avança na questão dos heterônimos para provar que Pessoa não se multiplicava apenas em 67 autores fictícios, mas em 127. Faz até uma genealogia do perfil inventado por ele para o seu mais famoso “duplo”, Álvaro de Campos, o autor de “Tabacaria”: teria nascido em Tavira (terra do seu avô paterno), no dia 13 de outubro (aniversário de Friedrich Nietzsche) de 1890 (para ser um ano mais jovem que Alberto Caeiro, outro heterônimo). A tia-avó com quem o imaginário Álvaro de Campos vivia era na verdade duas, as tias Maria e Rita, essas sim reais – tias mesmo do próprio Pessoa. E por aí vai.

Também causará polêmica a tese do ­biógrafo, para quem o autor lisboeta era um “homem sem imaginação” – e isso no melhor sentido.
“Tudo o que Pessoa escreveu refere-se a ele e ao seu entorno, indo dos ­vizinhos às amizades literárias”, diz Cavalcanti. E foi atrás desses rastros “­reais” deixados aqui e ali em seus escritos que o biógrafo se embrenhou por Lisboa em cinco viagens ao ano para compor a obra. Serviram-lhe como guias, pesquisadores e consultores na checagem dos fatos um jornalista e um historiador. Cavalcanti entrevistou familiares e pessoas que moraram próximas aos 20 endereços diferentes onde o biografado teve residência – três o conheceram em vida, como Antonio, o filho do barbeiro que aparava o bigodinho do poeta. Outra fonte é o octogenário e aposentado Carlos Bate-Chapa. Ele explicou a Cavalcanti o significado dos pedidos cifrados que o escritor fazia nas mercearias quando começava a beber pela manhã: “Sete” era o vinho de sete tostões, servido em copo grande e escuro para disfarçar o alcoolismo; “286” era, por ordem, caixa de fósforos (dois tostões), cigarros (oito tostões) e um cálice de macieira brandy (seis tostões).




“Tudo o que Pessoa escreveu refere-se a ele e ao seu entorno,
indo dos vizinhos às amizades literárias”
José Paulo Cavalcanti, escritor

Os encontros com familiares terminaram por aumentar o acervo de peças raras que Cavalcanti tem sobre o escritor e que serão mostradas na exposição “Fernando Pessoa – Plural como o Universo”. A abertura da mostra no Rio de Janeiro coincide com o lançamento da biografia. Dos primos do escritor, ele comprou o restante da biblioteca que não foi para instituições. De Maria das Graças Queirós, a sobrinha de Ofélia Queirós, a grande paixão do poeta, Cavalcanti adquiriu o retrato assinado por Almada Negreiros, o famoso “homenzinho de óculos e bigode”. Ela se dispôs a vender a obra ao ouvir de Cavalcanti o episódio de seu encontro com um sósia do artista. Ele, Cavalcanti, não hesitou: começou a seguir o homem que desapareceu correndo pelas ruas de Lisboa. Maria das Graças não teve dúvida: era o espectro de Pessoa e esse seria um sinal de boas-vindas ao brasileiro.

“Se o fantasma dele realmente existir, pode ter certeza de que está satisfeito de esses pertences estarem comigo”, diz Cavalcanti. Do lado de cá, os brasileiros fazem coro.

O SOM DO RELÓGIO - F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.

Não sei que distância
Vai de som a som
Peguando, no tique,
Do taque do tom.

Mas oiço de noite
A sua presença
Sem ter onde acoite
Meu ser sem ser.

Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa

O Som do Relógio de Ferrabrás Pessoa.

O Som do Relógio
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora;
Ecoa o que dentro
Do meu peito mora.

Ah, como este inveja
O taque seguro
Do rival de aço, e
Seu firme futuro!

O toque dest'outro,
Ao mudar da sorte,
Ora falha, ou dispára,
Mais fraco, ou bem forte.

E do atrito dos anos
não há quem lhe repare
os sofridos danos---
Exceto sua morte.

O Som do Relógio de Filiberto Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
Qual passo de atleta
Que as léguas devora.

Martela-lhe o peito
Com pulso constante,
Pendulam-lhe os braços
Em ritmo ofegante.

Se nunca se cansa
Seu corpo de aço
É que toma alento
A cada compasso:

Repousa um momento
Suspenso no vão
Entre o salto no tique
E o toque no chão.

O Som do Relógio de Florêncio Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
E a fala das gentes
Minh'alma devora.

Como luzes que cegam,
Ou livros mendazes,
Palavras sufocam
As mentes capazes.

Agridem-me as vozes,
Embotam-me o ouvido
As frases ferozes
De vácuo sentido.

Nojento debate!
Bem mais me valia
O suave conselho
Da noite vazia

O Som do Relógio de Faramundo Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Tem o tempo que foi-me,
E querem-me agora?

Tropeço na margem
Da noite cortante,
Da névoa sombria,
E querem que eu cante?

As poças refletem
O lume no poste,
O toque do sino,
E querem que eu goste?

A sós me deixaram
Na casa vazia,
Na vida gelada,
E querem que eu ria?


O Som do Relógio de Fortunato Pessoa.
O Som do Relógio
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Chamando ao presente
Memórias de outr'ora:

De tom de tambores,
De tempos ardentes,
Feridas e dores
No corpo e nas mentes;

De vidas e lidas,
De toques, de cores,
Na infância perdida
Da noite os temores;

De ecos distantes,
De um algo a sorrir,
Do nada de antes ---
E do que há de vir.




O Som do Relógio de Fragolino Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
São gotas-instantes
Pingando na hora,

Enchendo-me assim
Da vida esse vão
Do primeiro sim
ao último não.

É um hino vazio,
Poema de nada,
Que oiço passivo
Na noite parada;

É o tempo escorrendo
Em volta do agora,
Enquanto que a vida
Vai indo-me embora.

O Som do Relógio de Francisco Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
E diz que lá dentro
Angústia não mora.

Em seu autoplágio
Constante se esmera:
Só almeja tornar-se
Igual ao que era.

Com tal subterfúgio
De simples natura
Obteve uma vida
Sem mal que perdura:

É seu privilégio
Saber que, no vira,
Cada taque repõe
O que o tique lhe tira.


O Som do Relógio de Françoise Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
É voz que não mente
De mente que ignora.

Com toque seguro
De ser que se adora,
De quem não se sente
(Ou dor sua não chora),

Com taque tranquilo,
Entr'hora e sai hora,
Carrega o presente.
Pela vida afora.

Beato relógio ---
Seu fado, senhora
Não há quem lamente:
Só lembra do agora.

O Som do Relógio de Fructuoso Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Tem o gosto do espelho
E o rosto da amora.

As asas das nuvens
Nos ares repousam;
Querendo ou podendo
Pousar-se não ousam.

No toque dos ventos,
Na sombra do céu,
Na nau que não parte
Por falta de um véu,

O tempo circula,
Não sabe aonde vai:
Se passa, e perdura
Ou fica, e se esvai.

O Som do Relógio de Frederico Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
Oiço-lhe, e diz-me:
«Eu trago tua hora.»

E a cada batida
Do seu calcanhar
Afirma-me, firme,
«Não hás de escapar.»

Na pausa que o tique
Do taque separa
Meu peito se aperta:
«Não pára, não pára!»

Transfixo, me quedo
No escuro a escutar:
Morrendo de medo
De o tempo acabar

O Som do Relógio de Famigério Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Enterra as ruinas
De reinos de outrora.

O Futuro amedronta
A turba mesquinha,
Os que fazem de conta
Que puta é rainha.

O Presente os espanta:
Seus feitos de ratos
Ninguém mais os canta,
Afundam nos fatos.

O Passado lhes resta:
Viver de memórias,
De lendas de festas
E trapos de glória.


O Som do Relógio de Fulgêncio Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
É seu necrológio,
E mortalha sonora.

Som do carpinteiro
Pregando o caixão,
Da pá do coveiro
Abrindo-lhe o chão.

Som do sino rouco
De vago bezerro,
Cambaleando um pouco,
Seguindo-lhe o enterro.

(Um plano que gora.
Uma insana paixão.
Um ato de louco.
Seu último erro.)


O Som do Relógio de Furfurino Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
A noite é de todos
E a todos devora.

Seu tique resfria
O café pegajoso,
Seu taque consome
Um cigarro sem gozo.

Espelhos e luzes,
Cansados licores,
Escuros recantos
(Lacunas de amores),

Reflexos parados,
Palavras perdidas,
São cinzas e tocos
De sombras de vidas

O Som do Relógio de Feliciano Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora;
Mas íntimo enigma
Que a mente devora.

Suas breves palavras
Escuto-lhe atento;
O senso escondido
Decifrar-lhe tento.

Mas inda me fogem
Sintaxe e sentido
Da seca linguagem
De áspero acento.

Soubesse eu apenas
Se finda seu verso
No taque contido
Ou no toque perverso.

O Ele Sem Fundo e os Outros Ele
Poemas Inépitos de F. Pessoa





quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

mídia, internet e poder - literatura - Infalibilidade - Luis Fernando Verissimo - O Estado de S.Paulo

24 de fevereiro de 2011 | 0h 00
Os reis estão mais seguros do que os ditadores no norte da África e no Oriente Médio. No Marrocos e na Jordânia, pelo que se lê, a queda dos reis não está entre as reivindicações principais da rua. A revolta está custando a chegar à Arábia Saudita, protótipo de autocracia absoluta na região, e o poder dos aiatolás iranianos não parece estar ameaçado, por enquanto. Já os ditadores estão caindo um a um, como jacas. Governavam como reis mas sem a autorização divina, eram reis ilegítimos. Assim, curiosamente, ao mesmo tempo que dá um belo exemplo de conquista popular de democracia e modernidade, a sublevação endossa, indiretamente, a monarquia.


Constantino, que transformou o cristianismo de uma seita clandestina na religião oficial do seu império, escreveu certa vez numa carta que sua conversão tinha sido bem recompensada. "Recebemos da Providência Divina o supremo favor de estarmos eternamente livres de qualquer erro." Os ditadores costumam acreditar que junto com o poder absoluto vem, implícito, no pacote, os favores que a Providência Divina concede de nascença aos reis, começando pela infalibilidade. Mas não funciona assim.

Para-infernália. É pura implicância, eu sei. Mas tenho tanta antipatia por toda essa para-infernália eletrônica que, enquanto nos facilita a vida, nos escraviza e nos humilha que vibro a cada notícia de sua desmoralização, por menor que seja. Comemoro cada nova prova de que ela não é infalível. Agora mesmo surgiu um supercomputador, chamado Watson, que venceu dois humanos jogando Jeopardy na televisão americana. Jeopardy é um jogo de respostas que testa a memória e o conhecimento, e a capacidade do Watson de armazenar informação, reconhecer a informação que corresponde à pergunta e enunciá-la antes dos humanos representa um grande avanço sobre os computadores que, por exemplo, derrotavam campeões de xadrez, mas com os quais não se podia ter uma boa conversa sobre filmes, livros, a vida alheia, etc. O Watson não, o Watson sabe tudo. Leu tudo, viu tudo - mas (arrá!) tem uma falha. O Watson às vezes tem dificuldade em contextualizar. É o que seus construtores chamam de Síndrome de Paris Hilton. Se você alimentá-lo apenas com as palavras "Paris Hilton" o Watson se confunde, não sabe se a referência é ao hotel Hilton de Paris ou à herdeira maluquete dos Hilton, Paris. E é capaz de ficar mudo para não dar vexame. Um pequeno defeito para um computador, mas uma grande vitória para a humanidade. Eu não conseguiria vencer um computador nem num jogo de damas mas jamais confundiria a Paris Hilton com um hotel. Ou vice-versa.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Linguística - literatura, - Grass na trilha de Grimm

Gênese de um monumento linguístico

RESUMO
Em seu novo romance, Günter Grass mescla sua trajetória pessoal à da Alemanha ao narrar a hercúlea empreitada dos irmãos Grimm: um dicionário que retratasse a língua alemã em seus aspectos filológicos, literários e históricos. Deixado inconcluso por seus idealizadores, o dicionário só foi terminado nos anos 1960.

MARCUS VINICIUS MAZZARI

SE LUTAR COM PALAVRAS, como diz Drummond em célebre poema, é coisa vã, contar a história de tal luta pode não ser inteiramente sem fruto. Eis o que se propõe o Nobel de literatura Günter Grass em seu último livro, "Grimms Wörter" ["Palavras de Grimm"; 360 págs., € 29,80], publicado em agosto de 2010, pouco antes de completar 83 anos.
Günter Grass transporta o leitor para uma época em que livros, como o "Dicionário Grimm", eram produzidos de maneira artesanal. Inspirado por essa tradição, o autor não apenas criou as ilustrações para a edição alemã, mas também escolheu cuidadosamente, com o editor Gerhard Steidl e produtores gráficos, os melhores (e ecologicamente mais avançados) componentes da moderna produção de livros, desde o papel -passando por técnicas de impressão (com tintas de alta qualidade) e encadernação- até a tipologia usada, a fonte Bodoni, criada pelo tipógrafo e impressor italiano Giambattista Bodoni (1740-1813).

ALFABETO Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã, contemplando a origem e etimologia de cada palavra (com frequência, recuando-se ao gótico e ao antigo e médio alto-alemão), a mudança das acepções, assim como suas principais ocorrências na literatura, dos "monumentos linguísticos" da Idade Média até Goethe.
Embora não se trate de uma biografia, a narrativa se inicia com um fato marcante na trajetória dos irmãos: em 1837, o príncipe de Hannover -um dos incontáveis Estados alemães da época- revoga a constituição liberal promulgada três anos antes, e sete professores que lhe haviam prestado juramento realizam um ato de protesto. Entre estes estão os irmãos Grimm, que, como os demais, são despedidos e perdem todos os direitos civis. Jacob, mais veemente no protesto, é ainda expulso do principado e busca asilo no vizinho Estado do Hesse, onde foram coligidos, anos antes, os contos maravilhosos que celebrizaram o nome Grimm (depois os irmãos encontrarão asilo definitivo em Berlim). "Asilo" ("Asyl") figura assim no primeiro capítulo das "Palavras de Grimm" e enseja a Grass enveredar polemicamente pela questão do asilo político na atual Alemanha. Esse capítulo, afinal, é todo ele dedicado ao "A", "o mais nobre e primordial de todos os sons, ressoando plenamente do peito e da garganta, o primeiro som que a criança aprende a articular e que os alfabetos da maioria das línguas colocam com razão em seu início", conforme se lê na abertura do verbete "A", redigido por Jacob em nada menos do que sete colunas!

HISTÓRIA No ócio repentino a que os irmãos se veem condenados, chega a proposta de uma editora de Leipzig para a elaboração de um dicionário. Tem início assim um projeto filológico verdadeiramente monumental, em cujo desenvolvimento se espelharão as vicissitudes da história alemã ao longo de 123 anos. Pois, ao acreditar de início que poderiam concluir o dicionário em cerca de dez anos (e em sete volumes), os irmãos subestimaram fragorosamente o trabalho que tinham pela frente: ao falecer em 1859, Wilhelm dera conta apenas da letra "D"; Jacob, mais disciplinado e dotado de incomum capacidade de trabalho, conseguiu vencer o "A", "B", "C", "E" e avançar bastante no "F", falecendo (1863) em meio à redação do verbete "Frucht", fruto(a).
Dezenas de milhares de fichas com verbetes para as demais letras foram legadas aos sucessores, cujo trabalho virou o século, atravessou a Primeira Guerra, a República de Weimar, os doze anos do nacional-socialismo (quando, evidentemente, foram eliminados do dicionário todos os vestígios judaicos) e ainda -agora de maneira "pan-germânica", isto é, conduzido por filólogos das duas Alemanhas- 15 anos da Guerra Fria, concluindo-se em janeiro de 1961, com a publicação do 32º volume. (Ironicamente, o dicionário concebido também como estímulo cultural para a unificação dos Estados alemães -assim como, no plano material, a implantação de estradas de ferro- consuma-se ao mesmo tempo que se levantava o Muro de Berlim.)
Desse modo, narrar a acidentada gênese do dicionário oferece a Grass o ensejo para revisitar momentos cruciais da história alemã, não só os vividos pelos Grimm (como a revolução de 1848), mas também aqueles com os quais se entrelaça sua própria biografia, marcada pela Juventude Hitlerista e pelo posterior engajamento no movimento social-democrata.

FRUTOS O que, contudo, organiza a imbricação de temporalidades e trajetórias são justamente as letras do alfabeto, como o "A" de "asilo" ou o "B" de três ícones da social-democracia alemã (Bebel, Bernstein e Brandt). É fácil imaginar as dificuldades que tal procedimento impõe a uma tradução, pois se nos casos onomásticos ou de palavras próximas ao latim verifica-se larga coincidência (como "fructus": "fruht", em antigo alto-alemão), na maioria dos vocábulos mobilizados por Grass o tradutor terá de valer-se de artifícios para tentar colher alguns frutos.
O próprio capítulo da letra "F" tem por fulcro palavras como "Forschung", "pesquisa", ou "Freiheit", "liberdade" (o slogan "Freie Fahrt für freie Bürger", "caminho livre para cidadãos livres", é revelador da degradação sofrida pelo conceito de liberdade numa sociedade automobilística), enquanto o do "K" vem comandado, entre outras palavras, por "Krieg", "guerra", cujo significado, já para o tempo dos Grimm e ainda mais para o de Grass, não é preciso enfatizar.
Como nenhum outro livro desse autor, "Palavras de Grimm" se caracteriza por uma profusão de paronomásias, aliterações e assonâncias, que se intensificam nos poemas incrustados nos capítulos. Mestre soberano da língua alemã, Grass constrói a narrativa manipulando ludicamente as letras do alfabeto, e isso mesmo nos trechos em que reconstitui seus violentos embates ideológicos durante as décadas do pós-Guerra. Para não poucos leitores serão essas as passagens mais questionáveis do livro, pois em momento algum o autor parece admitir a possibilidade de não estar com a razão.

DARWIN E GRIMM Por outro lado, mesmo o leitor mais refratário a Grass dificilmente deixará de admirar passagens como a que desdobra, ainda sob o império da letra "F", um encontro fictício entre dois pesquisadores ("Forscher") contemporâneos: o inglês Charles Darwin, que demonstrou a ininterrupta mutação das espécies (sua origem e extinção por seleção natural, a sobrevivência mediante adaptação bem-sucedida), e o alemão Jacob Grimm, que investigou a fundo deslocamentos de sons, perdas e mutações linguísticas, do sânscrito até o alemão moderno.
Ou ainda a reconstituição do belíssimo "Discurso sobre a Velhice" proferido por Jacob na Academia Prussiana em 1860, um "tema que bate secamente à porta, impõe-se e quer ir para o papel, ainda que seja com mão trêmula", e que enseja assim a Grass considerações sobre a própria velhice (e a aproximação da morte). Fichte, Hegel, Herder e outras celebridades aparecem entre os ouvintes, mas a fantasia de Grass se confessa impotente em juntar-lhes Lutero (presente em centenas de citações do dicionário) e o bispo ariano Ulfila, que no século 4º traduziu o Novo Testamento para o gótico, sistematizando esse idioma já extinto.
A narrativa se fecha com outro extraordinário momento visionário, que suspende o tempo (afinal estamos agora na letra "Z", de "Zeit", "tempo") e mescla as temporalidades: transportando-nos para os dias imediatamente anteriores à construção do Muro, Grass fantasia um encontro com os inseparáveis irmãos no parque em que estes, durante os anos berlinenses, costumavam fazer passeios diários. O objetivo ("Ziel") é comunicar-lhes que o dicionário acaba de ser concluído, graças ao esforço final de filólogos de leste e oeste.
Eis, porém, que os Grimm acolhem a notícia com ceticismo e reserva, compenetrados -e aqui se poderia voltar ao verso drummondiano- do que há de vão na luta com as palavras, pois elas mudam continuamente, geram novos sentidos e levam os antigos à extinção: portanto, pondera Jacob, "não há diques suficientemente fortes para a língua", que, como um rio, "vai sempre fluindo e transbordando das margens".
Sobrevém então, única exceção no fluxo das transformações, a imagem da morte, "marco fronteiriço de todo poder, meta final ["Zielpunkt"] de toda aspiração", nas palavras do grande poeta barroco Gryphius, largamente representado no dicionário. Um melancólico acorde final, sem dúvida, mas o que verdadeiramente ressalta dessas "Palavras de Grimm" é a homenagem que o velho Grass rende aos esforços abnegados desses irmãos e -fruto mais belo ainda- a declaração de amor que faz à língua alemã.

Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã

domingo, 23 de janeiro de 2011

vermelho - literatura,poesia e revolução - José Martí: Cultivo uma rosa branca e outros poemas



Mais conhecido como herói cubano, José Martí era antes de tudo um poeta. Aliou seu espírito mudancista à intimidade com as palavras. Fundador da literatura hispano-americana e do modernismo na América Latina, ele deixou 507 poemas, além de novelas e dramas, que influenciaram gerações de escribas no continente. O Vermelho publica alguns dos versos de José Martí abaixo. Veja também o vídeo no qual o cubano Joseito Fernandez canta "Gantanamera", que tem a letra tirada da obra de Martí.
Cultivo uma rosa branca

Cultivo uma rosa branca,
em julho como em janeiro,
para o amigo verdadeiro
que me dá sua mão franca.

E para o cruel que me arranca
o coração com que vivo,
cardo, urtiga não cultivo:
cultivo uma rosa branca.


Do tirano

Do tirano? Do tirano
Denuncia tudo. E crava
Com fúria de mão escrava
A ignomínia do tirano.

Dos erros? De cada erro
Mostra o quanto possas,
A trilha obscura, as poças,
Do tirano e do erro.

Da mulher? Pois pode ser
Que morras de sua mordida,
Mas não entortes tua vida
Falando mal de mulher!


Sonho com claustros de mármore

Sonho com claustros de mármore
onde em silêncio divino
repousam heróis, de pé.
De noite, aos fulgores da alma,
falo com eles, de noite.
Estão em fila; passeio
Por entre as filas; as mãos
de pedra lhes beijo; entreabrem
os olhos de pedra; movem
os lábios de pedra; tremem
as barbas de pedra; choram;
vibra a espada na bainha!
Calada lhes beijo as mãos.

Falo com eles, de noite.
Estão em fila; passeio
por entre as filas; choroso
me abraço a um mármore. — “Ó mármore,
dizem que bebem teus filhos
o próprio sangue nas taças
envenenadas dos déspotas!
Que falam a língua torpe
dos libertinos! Que comem
reunidos o pão do opróbrio
na mesa tinta de sangue!
Que gastam em parolagem
as últimas fibras! Dizem,
ó mármore adormecido,
que tua raça está morta!”

Atira-me à terra súbito,
esse herói que abraço; agarra-me
o pescoço; varre a terra
com meus cabelos; levanta
o braço; fulge-lhe o braço
semelhante a um sol; ressoa
a pedra; buscam a cinta
as mãos diáfanas; da peanha
saltam os homens de mármore!


Amor de cidade grande

De orgia são e rapidez os tempos.
Corre qual luz a voz; em alta torre
Qual nave despenhada em sirte horrendo,
Some-se o raio, e em ligeira barca
O homem, como alado, fende o ar.
Assim o amor, sem pompa nem mistério,
Morre, logo que nasce, de saciado!
Prisão é a casa de pombas já mortas
E ávidos caçadores! Se tantos peitos
Dos homens se laceram, e as carnes
Rasgadas rolam na terra, não se vêem
Dentro mais que frutos esmagados!

Ama-se em pé, nas ruas, entre a poeira
Dos salões e das praças; agoniza
A flor que nasce. Aquela virgem
Trêmula que preferia dar à morte
A mão pura que a um ignorado jovem;
O gozo de temer; aquele sair
Do peito o coração; o inefável
Prazer de merecer; o grato susto
De caminhar depressa e sem desvio
Para a casa da amada, e às suas portas
Como um menino feliz romper em choro;
E o contemplar, de nosso amor ao fogo,
As rosas tingindo-se de cor,
- Serão patranhas? Pois, quem possuirá
Tempo pra ser fidalgo? Embora sinta
Qual áureo vaso ou quadro suntuoso,
Dama gentil na casa de um magnata!
Ou, se tem sede, estende o seu braço
E a taça que passa a bebe toda!
Depois, a taça turva no pó rola,
E o hábil provador – manchado o peito
Por um sangue invisível – segue alegre,
Coroado de mirtos, seu caminho!
Não são os corpos já, mas só resíduos,
E campas e farrapos! E as almas
Não são como na árvore frutos ricos
Em cuja pele macia o suco doce
Transborda quando ficam bem maduros.
- Mas fruta à venda que com brutais pancadas
O rude lavrador torna madura!

Esta é a era dos lábios ressequidos!
Das noites só de insônia! De uma vida
Esmagada antes do tempo! O que nos falta
Que a ventura não existe? Como lebre
Assustada, o espírito esconde-se,
Fugindo trêmulo ao caçador que ri,
Como em bosque selvoso, em nosso peito;
E o desejo, enlaçado na febre,
Qual rico caçador percorre o bosque.

Assusta-me a cidade! Que está cheia
De taças por esvaziar, ou taças ocas!
Tenho medo, ai de mim!, que este meu vinho
Seja peçonha, e em minhas veias logo
Qual duende vingador os dentes crave!
Tenho sede, - mas de um vinho que na terra
Ninguém sabe beber! Não padeci
Bastante ainda para derrubar o muro
Que me separa, oh dor, do meu vinhedo!
Bebei vós, mesquinhos provadores
De humanos vinhos fracos, esses copos
Onde o suco do lírio em grandes goles
Sem compaixão e sem temor se bebe!
Bebei! Eu sou honrado e tenho medo!


Meu Cavaleiro

De manhã cedo
meu pequerrucho
me despertava
com um grande beijo.

Logo montado
sobre meu peito
freios forjava
com meus cabelos.

Ébrios de gozo
tanto eu como ele
me esporeava
meu cavaleiro:
que suave espora
seus dois pés frescos!

E como ria
meu cavaleiro!

Como eu beijava
seus pés pequenos
dois pés que cabem
juntos num beijo!



Veja abaixo o cantor e compositor cubano Joseito Fernandes, que transformou em música versos de Poemas Sensillos de Martí, dando origem à talvez mais popular música latino-americana: Guantanamera. Abaixo, Joseito canta sua composição, em sua última aparição na TV.

literatura - veríssimo - Os pêssegos

23 de janeiro de 2011 | 0h 00

Luis Fernando Verissimo - O Estado de S.Paulo
Estava ficando tarde. Tinham começado a jogar às nove, eram duas da manhã. Cinco horas de pôquer. E ainda por cima o Natalino perdia feio. Passara a noite inteira perdendo feio. E ficando cada vez mais irritado.


***

Não se ouvia mais nada na mesa, além dos ruídos naturais do pôquer. O clicar das fichas. Frases curtas: "Dou cartas." "Vou." "Não vou." "Pago pra ver." "Não é possível!" (o Natalino). Etc. Um ou outro gemido. E alguns bocejos. Estava ficando tarde.

***

Foi quando o Eraldo disse "não vou" e jogou fora as suas cartas. Não iria naquela rodada. Espreguiçou-se. E depois disse a frase:

- Os pêssegos estão ruins, este ano.

O Natalino olhou em volta, com cara de espanto. Depois perguntou:

- O que, Eraldo?

- Os pêssegos. Não estão bons este ano.

- E o que os pêssegos têm a ver com o jogo, Eraldo? Ou com qualquer coisa?

- Nada. Foi só um comentário.

- Não é metáfora? Os pêssegos não querem dizer outra coisa? Pêssegos ruins são um mau presságio, é isso? Como pássaros caindo mortos do céu? Um prenúncio do fim dos tempos? Ou o quê?

- Não. Nada. Eu só comentei que...

- Está bom, Eraldo. Nós já ouvimos. Agora deixa eu me concentrar na minha mão. Que, como sempre, está uma porcaria.

***

O silêncio voltou à mesa. O jogo continuou. Natalino tinha um par de rainhas. Perdeu para dois pares. O baralho andou. Nova rodada. Todos fizeram o seu jogo. E o Eraldo falou:

- E olha que é tempo de pêssegos...

Natalino avisou ao resto da mesa:

- Eu vou matar esse cara.

- Calma, Natal. Calma.

- Eu vou matar esse cara!

Eraldo tentou se defender.

- Eu só estava...

- Me faz um favor, Eraldo - interrompeu Natalino. - Não diz mais nada. Eu não quero mais ouvir a palavra "pêssegos" esta noite. Está bem?

- Oquei, oquei.

***

Três rodadas silenciosas depois, novamente o Eraldo:

- Quem é o tal de Holden, afinal?

- Quem?

- Texas Holden. O nome desse tipo de pôquer que o pessoal está jogando.

- Não é Holden. É "hold"em". "Texas hold"em". Eme no fim.

- Ah...

Novo silêncio, e de novo o Eraldo:

- Será parente do William?

- Quem?

- William Holden. Aquele ator americano que fez...

Natalino se atirou por cima da mesa para agarrar a garganta do Eraldo. Espatifou a mesa. Tiveram dificuldade em arrancar o Natalino de cima do Eraldo, que ele tentava esgoelar. Todos concordaram que Natalino tinha razão para se irritar daquele jeito, ainda mais perdendo como estava. Mas também desconfiaram que havia estratégia na sua explosão. Com o seu salto espetacular, as fichas tinham se espalhado para todos os lados. Seria impossível saber quem estava ganhando ou perdendo. De qualquer jeito, decidiram acabar o jogo. Estava ficando tarde.

literatura - marx - Escorpião e Félix

Na íntegra, a primeira tradução do alemão da estrambótica novela que o autor de "O Capital" escreveu antes de completar 20 anos

KARL MARX TRADUÇÃO TERCIO REDONDO

CAPÍTULO X
Como havíamos prometido no capítulo anterior, segue aqui a comprovação de que a mencionada soma de 25 táleres pertence pessoalmente ao bom Deus.
Esses táleres não têm dono! São dotados de excelsos pensamentos, nenhum poder humano os possui; mas o glorioso poder que navega sobre as nuvens abarca o universo e, consequentemente, os mencionados 25 táleres; as vestes desse poder são tecidas com os fios do dia e da noite, do Sol e das estrelas, das gigantescas montanhas e das infindáveis planícies de areia, ressoam como as harmonias, como o estrondo de cascatas, e chegam lá onde a mão do homem não alcança, resvalando assim os mencionados 25 táleres, e... Não posso continuar, estou intimamente abalado, olho para o universo, para mim mesmo e para os 25 táleres cuja substância reside nestas três sentenças: o ponto de vista dessas moedas é o infinito, soam como a voz dos anjos, lembram o Juízo Final e o fisco... e Escorpião, estimulado pelas histórias do amigo Félix, arrebatado pela melodia inflamada e subjugado pelos sentimentos juvenis do companheiro, enamorou- se de Margarida, a cozinheira, supondo que ela fosse uma fada.
Presumo a partir desse fato que as fadas têm barba, pois Madalena Margarida -não se trata da Madalena arrependida- ostentava barba e bigode, como um glorioso guerreiro. Tenros fios encaracolavam-se em seu formoso queixo e, qual escarpa sobre o mar solitário, contemplada de longe pelos homens, esses fios sobressaíam na chata panela do rosto, orgulhosos e conscientes de sua grandeza, e rompiam os ares, agitavam os deuses e comoviam os homens.
Parecia que a deusa da fantasia havia sonhado uma beleza barbada e se enredara nos domínios encantados de um rosto jubado, mas, ao despertar, era a própria Margarida que sonhara, e eram ruins os seus sonhos: ela era a grande meretriz da Babilônia, o Apocalipse de João e a ira de Deus, que deixara um restolhal afiado brotar de sua pele vincada por linhas onduladas a fim de que a beleza não incitasse ao pecado e a virtude fosse preservada, como a rosa é preservada pelos espinhos, e para que o mundo compreendesse e não morresse de amores por ela.

Capítulo XII
"Um cavalo, um cavalo! Um reino por um cavalo!", dizia Ricardo 3º.
"Um homem, um homem! Eu mesma por um homem!", dizia Margarida.

Capítulo XVI
"No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus e o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória."
Belos e inocentes pensamentos! A associação de ideias conduziu Margarida mais adiante; ela acreditava que o verbo habitava as coxas, assim como, na história de Shakespeare, Tersites imagina Ajax com as vísceras na cabeça e a razão na barriga; e então Margarida, e não Ajax, concebeu convictamente a ideia de que o verbo se fizera carne; ela viu nas coxas a expressão simbólica do verbo, vislumbrou sua própria glória e resolveu lavá-las.

Capítulo XIX
Mas ela tinha grandes olhos azuis, e olhos azuis são comuns como a água do rio Spree. Desses olhos irrompe uma tola e saudosa inocência, uma inocência que lamenta a si mesma, uma inocência aquosa; quando o fogo se aproxima, ela ascende num vapor cinzento; nada mais se acha por trás desses olhos; seu mundo é todo azul, sua alma, um vapor azulado. Os olhos castanhos, contudo, são um reino ideal; um infinito e gracioso universo noturno aí dormita, eles expelem raios d'alma, soam como as canções de Mignon, como a terna, cálida e longínqua terra habitada por um próspero deus que se banqueteia de sua própria profundidade e se funda no universo de sua existência irradiando a infinitude e padecendo a infinitude. Sentimo-nos paralisados por um encanto, desejamos apertar em nosso peito o melodioso, profundo, inspirado ser, sugar o espírito de seus olhos e fazer canções a partir de seus olhares.
Amamos o mundo rico e agitado que se nos abre; em seu poscênio enxergamos gigantescos pensamentos solares, supomos a existência de um sofrimento demoníaco; e figuras que se movem delicadamente encenam uma dança diante de nós, acenam em nossa direção e retrocedem envergonhadas, como as Graças assim que as reconhecemos.

Capítulo XXI
Reflexões filológicas. Félix desvencilhou-se dos abraços do amigo de modo nada suave, pois não percebera o caráter profundo e sensível de suas quimeras e, além disso, estava ocupado em dar continuidade... à digestão, à qual, agora e de uma vez por todas, ordenamos que encerre seu extraordinário mister, pois está impedindo a sequência da ação.
Assim também pensava Merten, pois um violento golpe fora desferido por sua ampla e histórica mão, justo na direção de Félix.
O nome Merten lembra Karl Martel, e Félix acreditou ter sido acariciado por um martelo, tal o prazer proporcionado pelo choque elétrico.
Esbugalhou os olhos, cambaleou e pensou em seus pecados e no Juízo Final. Eu, contudo, pensei na matéria elétrica, no galvanismo, na douta carta de Franklin a sua amiga "geométrica" e em Merten, pois minha curiosidade está extremamente atiçada, desejosa de descobrir o que há por trás desse nome. Não resta dúvida de que o nome descende em linha direta de Martel: o sacristão me garantiu isso, embora esse período seja muito contraditório. O "l" transformou-se num "n", uma vez que Martel é inglês, como todo conhecedor de história sabe; e em inglês o "a" frequentemente tem o som de "eh", que coincide com o "e" de Merten. Desse modo, Merten poderia ser uma outra forma de Martel. De acordo com o exposto, uma vez que entre os velhos alemães o nome se originava de diversos adjetivos e expressava o caráter de seu portador -como Krug, o cavaleiro; Rauprach, o conselheiro da corte; Hegel, o anão-, Merten parece ter sido um homem rico e honesto, embora fosse um alfaiate e nesta história encarne o pai de Escorpião. O que acabamos de dizer funda uma nova hipótese: em parte porque fora um alfaiate, em parte porque seu filho se chamava Escorpião, parece muito provável que seu nome tenha derivado de "Mars", o deus da guerra (genitivo Martis, acusativo grego Martin, Mertin, Merten), pois o ofício do deus da guerra é o corte, visto que ele corta braços e pernas e, usando uma serra, aparta da terra a felicidade. Além disso, o escorpião é um animal venenoso, que mata com o olhar; sua picada é fatal, seu olhar, fulminante; ele é uma graciosa alegoria para a guerra, cujo olhar mata e cujo resultado são cicatrizes que sangram internamente e jamais se fecham. Merten, entretanto, tinha um caráter pouco pagão, tendo pelo contrário uma fé bastante cristã; desse modo parece mais provável que descenda de San Martin. Com uma ligeira troca de vogais chega-se a Mirtan; o "i" soa na fala popular como "e", como, por exemplo, na locução "gieb mer" em vez de "gieb mir", e o "a", em inglês, como já dissemos, tem frequentemente o som de "eh", transformando-se no decorrer do tempo em "e", especialmente numa cultura em expansão, de modo que muito naturalmente nasce o nome Merten, com o significado de alfaiate cristão. Embora essa derivação seja absolutamente provável e esteja muito bem fundamentada, não podemos, sem mais, chegar à concepção de uma nova pessoa, concepção que poderia debilitar nossa fé em San Martin, que por sua vez só pode ser lembrado como padroeiro, já que ele, até onde sabemos, jamais se casou, não podendo por isso ter deixado um descendente. O dilema parece se resolver da seguinte maneira: todos os membros da família Merten tinham em comum com o "Pároco de Wakefield" o fato de que logo se casavam e, muito cedo, de geração em geração, ostentavam a coroa de mirto, que vinha a ser a coroa nupcial. Daí se explica, a não ser que tenha havido um milagre, que Merten tenha nascido e apareça nesta história como o pai de Escorpião.
"Myrthen" perderia forçosamente o "h", uma vez que ao celebrarmos o "Heirathen", as bodas, destaca-se na palavra justamente o "eh", que significa matrimônio. Vale dizer, o "he" é o elemento que se retira, de modo que "Myrthen" se transforma em "Myrten".
"Y" é um "v" grego e não é letra alemã.
Como já se demonstrou, a família Merten era uma velha estirpe genuinamente alemã, sendo ao mesmo tempo uma família de alfaiates muito cristã, de maneira que o "y" estrangeiro e pagão houve de se transformar num germânico "i"; dado, porém, que o casamento fora o elemento de destaque na família e que o "i" constitui uma vogal estridente e colérica, em contraste com a ternura e a suavidade dos casamentos realizados no seio dessa família, a vogal transformou-se em "eh" e, mais tarde, para que a ousada modificação não ficasse demasiado evidente, transformou-se em "e", cuja brevidade alude à firme determinação com que se consumavam os casamentos, e assim, na multívoca palavra alemã Merten, o termo "Myrthen" atingiu sua forma mais acabada.
De acordo com essa dedução poderíamos vincular tanto o alfaiate cristão de San Martin quanto a autêntica coragem de Martel e ainda a decidida resolução de "Mars", o deus da guerra, à abundância de casamentos, coisa que avulta em ambos os "es" de Merten, de modo que esta hipótese congrega todas as anteriores, ao mesmo tempo que as revoga.
É de opinião diversa o escoliasta que, com grande aplicação e persistente esforço, escreveu comentários sobre o velho historiador cuja obra nutre nossa história.
Embora não possamos partilhar de sua opinião, ela merece uma apreciação crítica, pois emana do espírito de um homem que juntou sua enorme erudição a uma grande proficiência na produção de fumaça, envolvendo os pergaminhos com sacras exalações tabagísticas e enchendo-os de oráculos em meio à exaltação pitonisíaca do incenso.
Ele pensava que "Merten" deveria originar-se de "Mehren" e "Meer", que significam respectivamente "proliferar" e "mar", isso porque os casamentos na família Merten se multiplicavam como a areia do "mar", e porque, além disso, a ideia de alfaiate está contida na ideia de "Mehrer", de "aumentador", dado que ele eleva macacos à condição de homens. Ele teceu sua hipótese a partir dessas profundas e bem fundamentadas investigações.
Ao ler essas hipóteses fiquei vertiginosamente perplexo; o oráculo tabagístico fascinou-me, mas logo a fria e discriminadora razão despertou e surgiram os argumentos contrários que seguem abaixo.
A ideia de um aumentador, que, se preciso fosse, eu aceitaria ver combinada à ideia de um alfaiate -como quer o escoliasta- não pode de modo algum ser relacionada à ideia de um diminuidor, pois isso constituiria uma "contradictio in terminis"; para as damas seria o mesmo que confundir Deus com o diabo, identificar uma piada numa roda de chá, colocarem-se elas mesmas no lugar dos filósofos. Se, entretanto, Merten deriva de Mehrer, a palavra teria perdido um "h", ou seja, não teria aumentado, algo que se revela substancialmente contraditório em relação à sua natureza formal.
Portanto "Merten" não pode absolutamente derivar de "Mehrer", e que se tenha originado de "Meer" é questão logo desmentida pelo fato de que a família Merten jamais caiu na água e jamais claudicou; pelo contrário, sempre foi uma devota família de alfaiates, fato que contradiz a ideia de um mar revolto, concluindo-se então que o citado autor, a despeito de sua infalibilidade, errou, sendo a nossa dedução a única correta.
Após esta vitória estou exausto para prosseguir e quero apenas me regalar na ventura da autossatisfação que, segundo Winckelmann, constitui um momento mais valioso do que toda a glória póstuma, embora eu esteja igualmente seguro desta, assim como Plínio, o Jovem.

Capítulo XXII
"Quocunque adspicias, nihil est,
nisi pontus et aer,
Fluctibus hic tumidis, nubibus
ille minax,
Inter utrumque fremunt immani
turbine venti,
Nescitcui domino pareat unda
maris.
Rector in incerto est, nec quid
fugiatve petatve,
Invenit, ambiguis, ars stupet
ipsa malis."
"Para onde quer que olhes, verás
apenas Escorpião e Merten,
Aquele afogado em lágrimas,
este obnubilado pela ira.
Entre ambos retumba uma
infinda torrente de palavras.
O mar revolto não sabe a que
senhor obedecer.
Eu, o reitor, vacilo, e aquilo que
deixo, aquilo que escrevo
Não mais encontro; diante do
escândalo a arte se recolhe aos
cantos."
Assim, nos "libri tristium", Ovídio conta a triste história que, como a que narrarei em seguida, seguiu às que a precederam. Como se vê, ele não tinha outro recurso, e eu, de minha parte, narro como segue:

Capítulo XXIII
Ovídio vivia em Tomi, aonde fora lançado pela ira do deus Augusto, pois tinha mais gênio que bom senso.
Aqui, entre os bárbaros selvagens, fenecia o terno poeta do amor, e fora o próprio amor que o derrubara.
Sua cabeça pensativa apoiava-se na mão direita, e o olhar saudoso vagueava pelo Lácio distante. O coração do cantador estava partido e, no entanto, mantinha a esperança, sua lira não podia se calar e ele apagava as saudades e a dor com canções melodiosas e docemente expressivas. O vento norte açoitava os membros do frágil ancião, infundindo-lhe estranhos calafrios, pois fora criado nas terras quentes do sul; lá os exuberantes e calorosos jogos da fantasia eram adornados com trajes suntuosos, e quando esses rebentos do gênio tornavam-se demasiado livres, a graça sacudia sua divina e velada grinalda por sobre os ombros, de modo que as dobras agitadas espargiam tépidas gotas de orvalho.
"Logo serás cinzas, pobre poeta!", e uma lágrima rolou pela face do velho quando... o potente baixo da voz de Merten, que estava profundamente comovido, elevou-se diante de Escorpião.

Capítulo XXVII
"Ignorância, pura ignorância!"
"Porque (isto se relaciona a um capítulo anterior) seus joelhos se dobraram mais para certo lado!", mas faltava a certeza, a certeza; e quem pode assegurar, quem pode asseverar qual é o lado direito e qual o esquerdo Se me disseres, mortal, de onde vem o vento ou então se Deus tem um nariz na cara, dir-te-ei onde estão o lado direito e o esquerdo.
Tomar a loucura e a insensatez pela sabedoria é algo que não extrapola o plano dos conceitos relativos! Ah, será vão todo o nosso esforço e insensata a nossa nostalgia até descobrirmos o que sejam direita e esquerda, pois ele disporá os bodes à esquerda e as ovelhas à direita.
Caso ele se vire, caso tome outra direção por ter sonhado à noite, então os bodes ficarão à direita e os devotos à esquerda, de acordo com nossos miseráveis pontos de vista.
Por isso, se explicares para mim o que são direita e esquerda, o nó da criação estará desfeito por completo; se "Acheronta movebo", deduzo onde irá parar tua alma, do que deduzo também em que patamar te encontras, pois aquela relação primordial se tornaria mensurável. Enquanto, da parte do Senhor, tua posição já foi determinada, tua posição aqui em baixo pode ser medida pelo tamanho de tua cabeça; tenho vertigens; se um Mefistófeles aparecesse, eu seria um Fausto, pois, evidentemente, todos somos um Fausto, visto não sabermos qual lado é o direito e qual o esquerdo. Nossa vida é, portanto, um circo; andamos em círculo procurando pelos lados até cairmos na areia e o gladiador nos tirar a vida; precisamos de um novo salvador, pois -excruciante pensamento! Roubas-me o sono, roubas-me a saúde, matas-me- não podemos discriminar o lado esquerdo e o direito, não sabemos onde ficam.

Capítulo XXVIII
"É na Lua, evidentemente, que encontraremos as pedras lunares; no peito da mulher, a falsidade; no mar, a areia; na terra, as montanhas", redarguiu um homem que bateu à minha porta e não esperou ser convidado para entrar. Rapidamente pus meus papéis de lado e lhe disse que muito me alegrava o fato de não o ter conhecido antes, pois isso aumentava ainda mais o prazer em conhecê-lo; e disse ainda que ele ministrava uma grande sabedoria, que ele apaziguava todas as minhas dúvidas. Porém, por mais que eu falasse a toda pressa, ele falava ainda mais rápido; tons sibilantes irrompiam por entre seus dentes; ao examiná-lo com mais atenção, percebi arrepiado que ele parecia um lagarto ressequido, nada mais que um lagarto que se esgueirara pelas fendas de um muro decaído.
Ele era atarracado e sua estatura semelhava à do fogão; seus olhos eram mais verdes que vermelhos e mais lembravam um alfinete que um raio; ele mesmo mais parecia um duende que um homem.
Um gênio! Percebi-o imediatamente e com toda a segurança, pois o nariz brotava da cabeça feito Palas Atena, que brotara da cabeça de Zeus pai todo-poderoso, e isso me explicava sua delicada ardência purpúrea, que sugeria uma origem etérea. Essa cabeça podia ser descrita como calva e descoberta, a não ser que tomássemos por chapéu uma espessa crosta de pomada, a qual, juntamente com outros produtos atmosféricos e primevos, proliferava no lombo dessa montanha primitiva. Nele tudo indicava elevação e profundidade, mas a forma de seu rosto parecia revelar um arquivista, pois as bochechas eram como tigelas lisas e profundas, protegidas da chuva por protuberantes ossos de dimensões enormes, de modo que aí se podiam depositar papéis e decretos governamentais.
Resumindo, disso tudo depreendemos que ele seria o Deus do amor em pessoa, caso não se assemelhasse a si mesmo, que seu nome seria gracioso como o amor, caso não lembrasse bem mais um cipreste. Pedi que se acalmasse, pois dizia ser um herói. Objetei-lhe modestamente que os deuses tinham uma compleição mais fina, que os "Heroden", ou seja, os arautos, eram donos de uma voz mais singela, menos complexa e mais harmoniosa, e que Eros, por fim, era uma beleza transfigurada, uma natureza verdadeiramente bela, o único ser em que a alma e a forma podiam reivindicar os atributos da perfeição, não sendo, portanto, passível de comparação com o amor de meu visitante.
Ele retrucou dizendo possuirrr uma forte osssatura, uma sssombra tão boa ou até melhor que a de outras pessoas, já que lançava mais sombra do que luz, que sua noiva podia se refrescar e prosperar à sua sombra e se tornar ela mesma uma ssssombra, que eu era um homem rrrrude, um gênio de fancaria e um idiota, que ele se chamava Engelbert, que seu nome sssoava melhor que Essscorpião, que eu me engannnara no capítulo XIX, pois os olhos azuis sssão mais belos que os cassstanhos, que os olhos da pomba são mais espirituosos e que ele mesmo, embora não fosse uma pomba, era surdo à razão, que, além disso, ele apreciava seu direito de primogenitura e possuía um tanque de lavar.
"Vossa Senhoria deve unir-se a mim em matrimônio e se postar à minha direita, e tu deves deixar tuas investigações sobre esquerda e direita; Vossa Senhoria reside em frente e não à direita ou à esquerda." A porta se fechou, uma aparição celeste despontou de minha alma; o gracioso colóquio se encerrara, mas pelo buraco da fechadura ouvia-se uma voz que sussurrava como um espírito: "Klingholz, Klingholz!"

Capítulo XXIX
Sentei-me, pensativo, pus Locke, Fichte e Kant de lado e me entreguei a um exame mais aprofundado para saber que relação poderia haver entre um tanque de lavar e a primogenitura, e de repente senti como se um raio me atravessasse, as ideias então se avolumaram, meus olhos se abriram e uma figura luminosa se postou diante de mim.
A primogenitura é o tanque de lavar da aristocracia, pois um tanque de lavar serve apenas para lavar. A roupa é alvejada, emprestando um brilho pálido àquilo que foi lavado. Da mesma forma, a primogenitura recobre de prata o filho mais velho da casa, empresta-lhe, portanto, a pálida cor argêntea, enquanto os outros membros da família são oprimidos pela pálida cor romântica da necessidade.
Aquele que se banha nos rios arroja-se contra o elemento revolto, luta contra sua ira e peleja com braços fortes; aquele, porém, que está no tanque de lavar permanece constrito e observa apenas os cantos formados pelas paredes.
O homem comum, quer dizer, o não primogênito, luta contra a vida furibunda, joga-se ao mar encapelado e, nas profundezas, rouba pérolas valendo-se das prerrogativas de Prometeu; a configuração interna da ideia surge magnificamente diante de seus olhos, e ele executa o seu esforço, mas o primogênito fica apenas com os pingos d'água, receia ter os membros deslocados e assim entrega-se ao tanque de lavar. Descobriu-se, descobriu-se a pedra filosofal!

Capítulo XXX
Em nossos dias não é possível escrever uma epopeia, como deduzimos de dois estudos recentemente realizados.
Primeiramente tecemos profundas reflexões sobre os lados direito e esquerdo, despojando, portanto, essas poéticas expressões de sua roupagem poética, assim como fez Apolo com a pele de Márcias, e transformamos essas expressões numa figura duvidosa, no desfigurado pavião que tem olhos para não ver e é um Argo pelo avesso; este possuía cem olhos para achar aquilo que se perdera; e ela, a que investe contra o céu, a dúvida, possui cem olhos para tornar não vistas as coisas vistas.
Mas o lado, o lugar, é um critério fundamental da poesia épica, e à medida que não há mais lados, como comprovadamente sucede conosco, essa poesia só poderá despertar de seu sono de morte quando o alarido das trombetas despertar Jericó.
Além disso, encontramos a pedra filosofal, todos a apontam e eles...

Capítulo XXXI
Eles, Escorpião e Merten, jaziam no chão, pois a aparição sobrenatural (isto se relaciona a um capítulo anterior) a tal ponto lhes havia abalado os nervos que a força de coesão de seus membros se dissipou no caos da expansão -que, como o embrião, ainda não se livrara da condição universal para assumir uma forma particular-, e assim o nariz de ambos mergulhou no umbigo, e a cabeça pousou na terra.
Merten vertia um sangue espesso que continha muito ferro; quanto, exatamente, eu não saberia dizer, pois a química como um todo ainda está pouco desenvolvida.
Especialmente a química orgânica torna-se diariamente mais complexa por meio da simplificação, visto que diariamente se descobrem novas substâncias elementares, as quais, em comum com os bispos, têm a propriedade de receber nomes de terras pertencentes aos infiéis, ficando "in partibus infidelium"; trata-se de nomes que, além disso, são tão compridos quanto o título de um membro de diversas sociedades científicas e quanto os nomes dos príncipes do império alemão, nomes que representam os nomes livre-pensantes porque não se relacionam a nenhuma língua.
Aliás, a química orgânica é um herege que busca explicar a vida por meio de um processo inerte!
Blasfema contra a vida, assim como eu o faria se tentasse deduzir o amor a partir da álgebra.
Tudo isso está evidentemente fundamentado na doutrina do processo, a qual ainda não foi suficientemente elaborada e jamais o será, pois se baseia no jogo de cartas, um jogo de puro acaso em que o ás é protagonista.
O ás fundou a moderna jurisprudência, pois certa noite Irnério havia perdido o jogo; ele vinha da companhia de mulheres e estava bem vestido, portava um fraque azul, sapatos novos com longas fivelas e uma véstia de seda carmesim, e, ao se sentar, escreveu sobre o ás uma dissertação que o impeliu adiante, de modo que passou a ensinar direito romano.
O direito romano abarca tudo, inclusive a doutrina do processo e a química, pois, como Pácio demonstrou, é o microcosmo que se separa do macrocosmo.
Os quatro livros das Instituições são os quatro elementos; os sete livros das Pandectas, os sete planetas; e os doze livros do Códice, os doze símbolos do zodíaco.
Mas nenhum espírito havia penetrado o todo; era antes Margarida, a cozinheira, que chamava para o jantar.
Escorpião e Merten, sob violenta comoção, haviam cerrado os olhos e confundido Margarida com uma fada. Quando se recobraram de seu terror hispânico, que remontava à última derrota e à vitória de Don Carlos, Merten escorou-se em Escorpião e se elevou como um carvalho, pois Ovídio e Moisés disseram que o homem deve mirar as estrelas e não a terra; mas Escorpião agarrou a mão de seu pai e pôs seu corpo em posição arriscada, dispondo-o sobre os pés.

Capítulo XXXV
"Meu Deus! O alfaiate Merten é uma mão na roda, mas cobra caro demais por seus serviços!" "Vere! beatus Martinus bonus est in auxilio, sed carus in negotio!", exclamou Clóvis após a batalha de Poitiers, quando, em Tours, os padres lhe explicaram que Merten havia cortado suas calças de montaria, com as quais ele cavalgara o valente rocim que lhe garantira a vitória, e cobraram duzentos florins de ouro pelo serviço de Merten.
Mas a história toda se passou assim...

Capítulo XXXVI
Estavam sentados à mesa: Merten estava à cabeceira, tendo Escorpião à sua direita e Félix à sua esquerda, enquanto o primeiro oficial se mantinha bem afastado, visto haver uma lacuna entre o príncipe e a plebe, constituída na estrutura estatal de Merten pelos membros subordinados, chamados comumente de jornaleiros.
Essa lacuna, que não poderia acolher nenhum ser humano, não estava reservada para o espírito de Banquo, mas sim para o cachorro de Merten, que diariamente devia fazer a oração à mesa, pois Merten, que estudara humanidades, afirmava que seu Bonifácio (assim se chamava o cachorro) era o próprio São Bonifácio, o apóstolo dos alemães, referindo-se dessa maneira a uma passagem segundo a qual o santo declarou ser um cão que ladra (cf. epístola 105, pág. 145, Ed. Seraria). Por isso Merten tinha uma supersticiosa veneração pelo cachorro, cujo assento era de longe o mais elegante de todos; esse assento era constituído por um delicado cobertor carmesim da mais fina caxemira, almofadado como um luxuoso sofá e guarnecido por borlas de seda, tendo por alças umas molas engenhosamente interligadas. Assim que a refeição terminava, o assento era levado ao canto solitário de uma alcova afastada, que parecia ser a mesma descrita por Boileau, em seu "Le Lutrin", como o templo de repouso do preboste.
Bonifácio não estava em seu lugar, a lacuna estava aberta e as faces de Merten se descoraram. "Onde está Bonifácio", ele perguntou, com o coração angustiado, e toda a mesa se sentiu profundamente abalada.
"Onde está Bonifácio", Merten perguntou mais uma vez. Como se assustou, como estremeceram os seus membros, como se lhe arrepiou o cabelo ao ouvir que Bonifácio estava ausente.
Num átimo todos saíram à sua procura, ele mesmo parecia ter perdido a fleuma habitual; fez então soar a campainha; Margarida entrou e pressentiu algo ruim, já ia pensando...
"Margarida, onde está Bonifácio" Ao ouvir a pergunta, ela se acalmou visivelmente, mas ele bateu com o braço na lâmpada e todos se viram envoltos pela mais completa escuridão; sobreveio então uma noite tempestuosa e prenhe de infortúnios.

Capítulo XXXVII
David Hume afirmou que este capítulo é o "locus communis" do anterior e disse isso antes que eu o tivesse escrito. Sua prova consistia no seguinte: se este capítulo existe, não existe o anterior; este capítulo afastou o anterior, do qual se originou, mas não no sentido de uma relação de causa e efeito, pois ele tinha dúvidas sobre a questão. Todo gigante e, portanto, todo capítulo de vinte linhas, deixa atrás de si um anão; todo gênio, um filisteu; toda agitação do mar, a lama; e, tão logo os primeiros se retiram, os últimos se apresentam, tomam assento à mesa e esticam sem comedimento suas longas pernas.
Os primeiros são demasiado grandes para este mundo; por isso são lançados fora. Os últimos, pelo contrário, deitam suas raízes e nele permanecem, como os fatos nos mostram, pois o champanhe deixa sempre um sabor final desagradável; o heroico César deixa o ator Otaviano; o imperador Napoleão, o rei- burguês Luís Filipe; o filósofo Kant, o cavaleiro Krug; o poeta Schiller, o conselheiro da corte Raupach; o celeste Leibniz, o aprendiz Wolf; o cão Bonifácio, este capítulo.
Assim as bases se cristalizam como resíduos, mas o espírito se esfuma.

Capítulo XXXVIII
A última frase a respeito das bases era um conceito abstrato, não sendo, portanto, uma mulher, pois "um conceito abstrato e uma mulher são coisas muito distintas", exclamou Adelung. Mas eu afirmo o contrário e vou prová-lo cabalmente. Não o farei, contudo, neste capítulo; deixo a questão para um livro não subdividido em capítulos que pretendo escrever tão logo esteja convencido da existência da Santíssima Trindade.

Capítulo XXXIX
A quem deseja chegar a um conceito claro e não abstrato dela -não me refiro à grega Helena nem à romana Lucrécia, mas à Santíssima Trindade-, a esse não dou outro conselho senão o de que nada sonhe até que não durma. Pelo contrário, sugiro que permaneça em vigília no Senhor e investigue este parágrafo, pois nele repousa o conceito claro. Se, feito uma alta nuvem, nos elevarmos à sua altura, distante cinco patamares do ponto onde nos encontramos agora, iremos deparar com o gigantesco "não"; se descermos à sua metade, seremos assombrados pelo monstruoso "nada", e, se mergulharmos até as suas profundezas, ambos se harmonizarão novamente no "não", que investe contra nós portando a reta, audaciosa e flamejante escritura.
"não" - "nada" - "não" Este é o claro conceito da trindade, mas o abstrato, quem o conceberá Pois "quem ascende ao céu e torna a descer" "Quem apanha o vento em suas mãos" "Quem recolhe a água em suas vestes" "Quem estabeleceu os confins do universo" "Como se chama e qual é o nome de seu filho Tu o sabes", indagou Salomão, o sábio.

Capítulo XL
"Não sei onde ele está, mas uma coisa é certa: estou apalpando um crânio, um crânio!", bradou Merten. Receoso, curvou-se para descobrir no escuro de quem era a cabeça que suas mãos tocavam, e então recuou como que fulminado, pois os olhos...

Capítulo XLI
Exatamente! Os olhos!
São um magneto e atraem o ferro, daí que nos sintamos atraídos pelas mulheres e não pelo céu, pois as mulheres nos miram com dois olhos, e o céu, apenas com um.

Capítulo XLII
"Provo-lhe o contrário!", disse-me uma voz invisível, e, quando me voltei para ela, contemplei -os senhores não acreditarão em mim, mas garanto, juro que é verdade- contemplei -não se exaltem nem se espantem, pois não se trata das esposas nem da digestão dos senhores- contemplei a mim mesmo, porque eu mesmo me oferecera como contraprova.
"Ha! Sou um sósia de mim mesmo!", foi o que me passou pela cabeça, e os "Elixires do Diabo", de Hoffmann,...

Capítulo XLIII
... estavam diante de mim, postos na mesa, e foi então que refleti sobre o motivo de o judeu errante ser um berlinense nato e não um espanhol; percebi, porém, que isso se relaciona à contraprova que eu devia produzir, motivo pelo qual, para sermos precisos... não desejamos fazer nada com eles, contentando-nos, porém, com a observação de que o céu está nos olhos das mulheres e que os olhos delas não estão no céu, resultando disso a constatação de que não são os olhos que nos atraem e sim o céu, pois não contemplamos os olhos, mas o céu que neles se encontra. Se nos atraíssem os olhos e não o céu, então nós nos sentiríamos atraídos pelo céu e não pelas mulheres, pois o céu não tem um olho, como dissemos acima; ele não tem nenhum. E, no entanto, ele nada mais é que o infinito olhar amoroso da divindade, o terno e melodioso olho do espírito da luz, e um olho não pode ter um olho.
Portanto, o resultado final de nossa investigação é a constatação de que nos sentimos atraídos pelas mulheres e não pelo céu, porque não vemos os olhos das mulheres e sim o céu que neles se encontra, porque nós, por assim dizer, não nos sentimos atraídos pelos olhos, porque não há olhos nenhuns e porque Ahsverus, o eterno, é um berlinense nato -é velho e doente e viu muitas terras e olhos e assim mesmo continua a se sentir atraído pelas mulheres e não pelo céu- e porque existem apenas dois magnetos: um céu sem olho e um olho sem céu.
Um paira sobre nós e atrai para cima, o outro está abaixo de nós e atrai para as profundezas. Ahsverus é atraído violentamente para baixo. Vagaria ele eternamente pelas terras deste mundo se as coisas ocorressem de outro modo E vagaria eternamente por essas terras se não fosse um berlinense nato, acostumado às planícies arenosas

Capítulo XLIV
"Segundo fragmento, tirado do porta-cartas de Halto." Vínhamos de uma casa no campo, fazia uma bela noite tingida de azul-escuro. Eras amparada por meu braço, do qual te querias soltar; mas não o permiti, minha mão te prendia como tu prenderas meu coração, e consentiste nisso. Murmurei palavras cheias de nostalgia e disse as coisas mais belas e elevadas que um mortal pode dizer, pois eu nada dizia, estava mergulhado em mim mesmo; vi então elevar-se um reino cuja atmosfera era a um só tempo suave e pesada, e nessa atmosfera havia uma figura divina, a beleza em pessoa, tal como eu a vislumbrara em sonhos fantásticos sem reconhecê-la; ela rebrilhava com os raios do espírito e sorria, e eras tu a figura.
Espantei-me comigo mesmo, pois, graças a meu amor, eu me tornara grande, gigantesco. Vi um mar infinito, mas nele não havia a agitação das torrentes; ele adquirira profundidade e eternidade, sua superfície era um cristal e seu escuro abismo aprisionava trêmulas estrelas douradas que entoavam canções de amor e irradiavam um forte calor, e o próprio mar se achava cálido!
Oxalá esse caminho fosse a vida!
Beijei tuas mãos doces e suaves, falei do amor e de ti.
Uma tênue neblina pairava sobre nossas cabeças, seu coração se partiu, ela chorou copiosas lágrimas e caiu então entre nós; sentíamos-lhe, contudo, as lágrimas e nos calamos.

Capítulo XLVII
"Ou é Bonifácio ou são as pernas de minhas calças!", exclamou Merten. "Luz, luz, digo eu!", e houve luz. "Por Deus, não se trata das pernas de minhas calças, mas de Bonifácio, acomodado aqui neste canto escuro, e seus olhos ardem num fogo lúgubre, mas... o que vejo" "Ele sangra", e então Merten desmaiou sem dizer mais nada. Os jornaleiros viram primeiramente o cão e depois o dono. Finalmente este se ergueu bruscamente do chão. "O que estão olhando, cretinos Não percebem que São Bonifácio está ferido Instituirei uma investigação minuciosa, e ai, três vezes ai do culpado! Mas agora, rápido! Ponham-no em seu assento, chamem o médico da família, tragam vinagre e água morna e não se esqueçam de chamar o mestre-escola Vito. Sua palavra pode ser muito benéfica para Bonifácio!" Assim ele expediu rapidamente suas ordens. Os circunstantes se abalaram pelas portas em todas as direções. Merten examinou mais atentamente Bonifácio, cujos olhos ainda mantinham um intenso fulgor, e balançou a cabeça inquieto.
"Estamos diante de uma desgraça, de uma grande desgraça. Chamem um padre!"

Capítulo XLVIII
Desesperado, Merten ergueu-se algumas vezes enquanto não chegava nenhum daqueles que mandara chamar.
"Pobre Bonifácio! E se eu mesmo tentasse fazer alguma coisa enquanto o socorro não chega Estás exausto, o sangue jorra de tua boca, não queres comer; vejo um violento esforço se processando em teu ventre, eu te compreendo, Bonifácio!", e Margarida entrou trazendo água morna e vinagre. "Margarida! Há quantos dias Bonifácio não evacua Não te ordenei que lhe fizesse semanalmente uma lavagem Vejo que doravante serei obrigado a assumir pessoalmente os encargos importantes da casa! Traga óleo, sal, farelo, mel e uma sonda para o clister!"
"Pobre Bonifácio! Teus santos pensamentos e reflexões constipam-te, uma vez que não podes externá-los pela boca nem pela pena!"
"Oh, tu, admirável vítima da profundidade das ideias, oh, tu, pia constipação!"