terça-feira, 3 de maio de 2011

LIMA BARRETO, DISFARÇADÍSSIMO - Da ditadura do silêncio à “lista negra” - observatório da imprensa -

Por Alberto Dines em 7/9/2010


Capa raffinée, ilustrações idem, ao todo cinco páginas com textos de alto quilate. Tudo superlativo, comme il faut, no novo suplemento literário da Folha de S.Paulo (domingo, 5/9).

Mulato, pobre, morador de subúrbio carioca, funcionário público de terceira categoria, jornalista, escritor, bêbado, psicótico, solitário, amargo, intenso, inconformado, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) está de volta.

Em grande estilo: O Triste Fim de Policarpo Quaresma tem agora versão teatral, os contos serão republicados na íntegra, devidamente reavaliados e contextualizados. E a sua exemplar biografia, paradigma do gênero, agora em 8ª edição (as sete anteriores minuciosamente atualizadas pelo autor) está disponível nas livrarias. Assim como seu diário e as memórias do hospício.

Ao vivo

Marginalizado, banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima daquilo que ele próprio designou como "ditadura do silêncio".

Graças a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a "lista negra", o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos ou mortos.

O nome de Lima Barreto ficou quase 50 anos banido das páginas do liberalíssimo Correio da Manhã porque Isaías Caminha passava-se na redação de um poderoso matutino facilmente identificável e o seu fundador, Edmundo Bittencourt, era um dos protagonistas, embora disfarçado por um pseudônimo. O destemido Paulo Bittencourt que enfrentou tantas ditaduras manteve o embargo contra o literato que denegriu o pai.

Por coterie, reciprocidade corporativa, espírito de panelinha, o resto da imprensa aliou-se ao Correio e ignorou a obra que o editor ingenuamente apresentara como "livro de intriga jornalística fluminense".

"Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido onde tantas figuras respeitáveis – algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis – eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce", constatou o magistral biógrafo, Francisco de Assis Barbosa (pág.194)

Nome aos bois

Lima Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.

Fecharam-se na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras. Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este aos delírios.

Nos inspirados textos do caderno "Ilustríssima" (5/9) menciona-se o castigo imposto, mas não os motivos da punição. O triste fim de Lima Barreto fica parecendo obra de deuses vingativos, do perverso destino e não de seus humaníssimos contemporâneos, companheiros de profissão. A Folha tem o dom de contar histórias sem dar nome aos bois. É uma arte. Mãe extremada, transmite sua expertise a todos os rebentos.

O leitor que se dane.

***

A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa (José Olympio, 2002); Policarpo Quaresma, direção de Antunes Filho (SESC Consolação, até 31/10); Contos Completos de Lima Barreto (Companhia das Letras), Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos, prefácio de Alfredo Bosi (Cosac Naify).

O caso de Lima Barreto é fartamente mencionado na História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e na biografia Santos Dumont, do jornalista Gondin da Fonseca (Editora Vecchi, 1940), outro maldito que ousou revelar que o Pai da Aviação cometeu suicídio.


NIOMAR MONIZ SODRÉ BITTENCOURT (1916-2003)
O Correio da Manhã cada vez mais longe

Alberto Dines

Auto-exilou-se em Paris enquanto durou o regime militar, depois foi calada pela doença, longa, implacável. O jornal que o marido consolidou teria comemorado o seu centenário em 2001. Não passou dos 73 anos. Sumiu. Hoje é, no máximo, o "jornal do vovô".

Uma extraordinária saga de sucessos foi bruscamente interrompida por uma conjunção de fatalidades: em 1963, a morte de Paulo Bittencourt, filho do fundador, Edmundo Bittencourt. Em abril de 1964, já sob o comando da viúva, Niomar, o jornal liderou a cruzada da grande imprensa contra o governo de João Goulart. Pouco depois, fez meia-volta e passou à resistência contra o governo do marechal Castelo Branco.

Como castigo, o Correio da Manhã sofreu rigoroso boicote econômico e, logo depois do AI-5 (13/12/1968), Niomar foi cassada, em seguida encarcerada junto com jornalistas da sua redação. Libertada em 1969 percebeu que não havia condições para manter o jornal: arrendou-o a um grupo de empreiteiros próximos ao governo militar que serviram-se do que sobrara da empresa para lançar um jornal-satélite, o Diretor Econômico.

Em junho de 1974, desaparecia definitivamente um dos jornais mais combativos e independentes da moderna imprensa brasileira. Padrão de qualidade literária, paradigma de inovações empresariais e tecnológicas, incubadora de talentos, o Correio da Manhã foi também o protótipo do "jornalismo de dono de jornal" – explosiva combinação de personalismo, audácia e arrogância capaz de produzir grandes jogadas políticas e jornalísticas como também tremendas injustiças.

Entrou para a história do autoritarismo jornalístico o embargo ao escritor Lima Barreto (1881-1922), mantido impiedosamente na lista negra ao longo de meio século porque usou a redação do Correio como cenário para a arrasadora descrição do ambiente jornalístico da antiga Capital na novela Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909). Nos anos 1940, Gilberto Freyre demitiu-se porque a direção do jornal censurou um texto onde mencionava o nome de Samuel Wainer.

Sorte e desgraça

Fundado quando o resto da imprensa recebia os favores do presidente Campos Salles, ao longo de sua existência o Correio encarnou o jornalismo de oposição até que, vitorioso na cruzada pela posse de Juscelino Kubitschek, deixou-se envolver pelas benesses do situacionismo aceitando uma série de favores, inclusive a nomeação do seu redator-chefe, Álvaro Lins, para a embaixada em Lisboa.

Seu extremado antigetulismo confundiu-o durante algum tempo com o espírito da UDN (União Democrática Nacional), a oposição conservadora. Para isso muito contribuiu a presença de um inflamado colunista na última página, Carlos Lacerda, responsável pela rubrica "Tribuna da Imprensa". Mesmo quando a coluna transformou-se em nome de um vibrante vespertino (1949) o Correio continuou a fustigar Vargas: foi decisivo no cerco à Última Hora e mais ainda na tentativa de deposição de Getúlio Vargas, que culminou com o seu suicídio.

Reencontrou-se com o liberalismo no apoio intransigente a Juscelino Kubitschek e, logo em seguida, na campanha pela posse do vice João Goulart quando Jânio Quadros renunciou (agosto de 1961). O compromisso do jornal com este liberalismo levou-o a liderar a ação civil para derrubar Jango em 1964 através dos célebres editoriais de primeira página intitulados "Basta!" e "Fora!" (que deram o sinal para o início da insurreição militar) e alavancou, semanas depois, a surpreendente reviravolta quando assumiu solitariamente o combate às medidas de exceção e à repressão política do governo militar. Niomar Moniz Sodré Bittencourt teve a sorte e a desgraça de comandar o Correio nos seus melhores e piores momentos. [Sobre o Correio da Manhã leia-se História da Imprensa Brasileira, de Nelson Werneck Sodré (Civilização Brasileira, Rio, 1966)]

Morreu no mesmo ano em que morreram M.F. do Nascimento Brito (o transformador do Jornal do Brasil) e Roberto Marinho (criador da Organizações Globo). No mesmo ano em que as maiores empresas de comunicação do Brasil apresentam-se diante dos guichês do BNDES para sugerir uma linha especial de financiamento.

Encerra-se melancolicamente a "fase épica" da imprensa brasileira. Os historiadores logo encontrarão um nome mais apropriado para batizá-la. Os sucessores dificilmente produzirão um substituto

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