terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ernesto Sábato, 99:

LITERATURA


Justiça, amizade, liberdade e compaixão

RESUMO Aos 99 anos, o escritor argentino Ernesto Sábato, Prêmio Cervantes de 1984, é tema de documentário sobre sua vida familiar e afetiva, dirigido por seu filho Mario, e tem o seu romance "Sobre Heróis e Tumbas" (1961), central na literatura latino-americana, relançado em edição crítica publicado na coleção "Archivos".

DENISE MOTA

É DOMINGO, A FAMÍLIA está reunida na biblioteca -ponto de encontro doméstico tradicionalmente escolhido para jogar conversa fora-, mas ainda falta o integrante mais ilustre do clã: Ernesto. A inquietação cresce. Subitamente a porta do corredor se abre, e surge um homem idoso, que caminha maquinal, em passadas rígidas e sincopadas, até o outro lado da casa, sem olhar ao redor, sem emitir palavra.
Segundos depois, corre no encalço de Ernesto uma menina pequena, aos gritos de "Vem cá, robô!". Ali, Ernesto Sábato, 99, não era tanto o romancista de "Sobre Heróis e Tumbas" (trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras), Prêmio Cervantes de 1984, mas, simples e definitivamente, um avô.
Como muitas outras histórias da vida íntima de Sábato, também ensaísta e físico, essa passagem de sua existência é contada por seu filho, Mario Sabato, diretor de "Ernesto Sábato, Mi Padre", documentário recentemente lançado na Argentina sobre seu maior escritor vivo. Como diz o diretor, "não é um filme para historiadores, estudantes de letras, acadêmicos", mas um retrato íntimo, urdido entre quatro paredes, do "homem por trás do bronze", como afirma Mario à Folha.
Aos 65 anos, diretor de cinema e televisão, Mario Sabato tem 15 filmes em seu currículo, alguns deles baseados na obra do pai, como de "El Poder de las Tinieblas" (1979), que tem como ponto de partida o "Informe sobre Cegos", ou "El Nacimiento de un Libro" (1963), curta-metragem que dirigiu aos 18 anos, sobre o processo de criação de "Sobre Heróis e Tumbas" (1961).

COTIDIANO O filme cobre quase meio século do cotidiano do escritor, entre imagens recentes e momentos-chave da história familiar, como as viagens ao exterior empreendidas em 1962 ou os reparos no jardim da casa de Santos Lugares, nas imediações de Buenos Aires, no final da mesma década. Enxada na mão, um enérgico Sábato surge diante das câmaras, atarefado em cuidar da senhorial residência, onde vive até hoje.
"O fio condutor sou eu, que narro o filme", diz Mario Sabato, que se distingue do pai por ser cineasta e por não ter o sobrenome acentuado. "O mais importante é que o documentário não pretende ser um documentário. Eu carecia de objetividade, não tinha a distância necessária, mas decidi que essas duas limitações seriam a vantagem desse material. Escolhi que a árvore ocultasse o bosque."
O que se vê em "Ernesto Sábato, Mi Padre" é a essência de um homem austero, a gênese de seus valores mais caros -"justiça, amizade, liberdade e compaixão"- e a marca que uma educação extremamente severa imprimiu na personalidade do autor, obcecado pela ordem e econômico nos afetos. "Por muitos anos, tive pesadelos com meus pais", confessa o escritor no documentário, ao falar da infância. "Era tudo muito sério. O que fazer?"
Em outro momento, ele admite: "O relacionamento que tenho com meus netos é muito diferente do que tive com meus filhos." Mario Sabato sintetiza: "Meu pai proporcionava as tempestades. Minha mãe, os amanheceres."
A responsável pelos amanheceres é Matilde, "moça heroica" que fugiu de casa aos 17 anos para viver com o escritor. O momento em que ele lembra quando a conheceu é um dos pontos altos do filme, assim como o dia em que soube da morte do filho Jorge, em 1995, ou a narração da vida da família sob a ditadura de 1976-83.
Pois a vida polítíca do país se mistura à vida privada de Ernesto Sábato, que teve um importante trabalho na redemocratização argentina, como presidente da comissão de investigação de crimes cometidos durante o regime militar. Elaborou "Nunca Más", compêndio de provas e testemunhos que possibilitou o julgamento de chefes militares e que foi entregue ao Estado argentino em 1984. O relatório é conhecido no país como "Informe Sábato".
"Era o homem indicado [para elaborar o relatório], com objetividade, imparcialidade e uma grande sensibilidade", afirma o ex-presidente Raúl Alfonsín (1927-2009) no documentário. O trabalho da equipe coordenada pelo escritor foi realizado em "dois andares do teatro San Martín, com entradas vigiadas até mesmo quando já vivíamos em democracia", conta ele.

ENTRE ALGODÕES Às vésperas de completar cem anos, Ernesto Sábato mantém uma rotina simples, pontuada pelo encontro com os parentes próximos -especialmente os três bisnetos, de 11, nove e quatro anos-, ao lado de livros de pintura e sob os cuidados de uma enfermeira.
"Limito-me a dizer o que é certo e suficiente: o mantemos isolado e protegido, rodeado pelas coisas e pessoas de que gosta. Impedimos visitas que poderiam perturbá-lo e até exercemos uma certa censura televisiva: os filmes substituem os noticiários, porque sabemos que ele tem direito a descansar e a não se angustiar mais por um mundo que não é aquele que sonhou", diz o filho. "Está entre algodões, não deixamos que o incomodem."
A censura não é apenas televisiva. De "Ernesto Sábato, Mi Padre" o escritor viu apenas os primeiros dez minutos. Para poupar o pai de emoções fortes, o realizador interrompeu a projeção sob a alegação de que o aparelho de DVD havia quebrado. "O mais importante é que termine sua vida em paz."
O recente aniversário foi celebrado como os três anteriores: apenas parentes e amigos muito próximos, decisão tomada em 2006, quando o escritor, aos 95 anos, achou por bem fechar a casa de Santos Lugares para as comemorações multitudinárias que costumavam acontecer a cada 24 de junho (dia do seu aniversário). A última delas está reproduzida no documentário.
O filme mostra o presente que o escritor recebeu da cantora Mercedes Sosa, morta em 2009 aos 74 anos: ela cantou "Romance de la Muerte de Lavalle". A canção, com letra de Sábato, integrava o repertório da artista de Tucumán. A celebração dos 98 anos também aparece no filme, ainda que em uma passagem bastante rápida. "Fiz muito poucas imagens atuais. Respeito as vontades que meu pai sempre teve. É vaidoso e não quer se mostrar. Não queremos alterar seu estado emocional."

MILAGRE Os bisnetos e a pintura continuam a ser duas das molas mestras que acalentam a existência de Sábato, crescentemente ocupada por um sem-fim de recordações, como deixa transparecer o documentário em cada fotograma. "Ter ganhado um bisneto foi como um milagre para ele", diz o filho sobre o ressurgimento emocional que viu no pai em 1998.
No documentário, Sábato apresenta, como um mestre de cerimônias, uma paixão bissexta: a pintura. Conta como passou a se interessar pelas artes plásticas, rememora casos divertidos e surpreendentes de sua amizade com artistas como o cubano Wifredo Lam (1902-82) e mostra suas telas.
As pinceladas fortes, de marcada inspiração expressionista, revelam outra obsessão do autor: o interesse pelo retrato e, a partir dele, o fascínio pela representação dos olhos, não raro transfigurados em expressões de angústia e pavor. "Sim, são bastante horríveis", diz o artista. "Não os colocaria na sala de jantar, obviamente."
Se a comemoração dos 99 anos foi discreta no âmbito pessoal, em termos literários o centenário de Ernesto Sábato não passará em branco. De publicação recente, a edição crítica de "Sobre Heróis e Tumbas" apresenta, em suas 1.036 páginas, análises sobre a gênese do texto e a recepção na Argentina dos anos 60, além de múltiplas leituras que oferecem diferentes perspectivas do livro.
No conjunto, os materiais iluminam as diversas camadas que compõem a narrativa a partir de abordagens em que se cruzam disciplinas como a filosofia ou a psicanálise. Publicado na prestigiosa coleção "Archivos", da Unesco, pela editora argentina Alción, o trabalho reúne duas dezenas de estudiosos da obra do autor e foi coordenado pela pesquisadora e escritora María Rosa Lojo, doutora em filosofia e letras pela Universidade de Buenos Aires.
Da edição também fazem parte ensaios que contextualizam o escritor e sua trajetória pública no panorama cultural e intelectual argentino, como o que discorre sobre o posicionamento político do autor de "O Túnel" (trad. Sérgio Molina, Companhia das Letras) ou o que estabelece vínculos entre sua obra e a de Jorge Luis Borges (1899-1986).
Para Sábato, porém, já nada disso importa. "Gostaria de ser lembrado como um vizinho por vezes rabugento, mas boa gente", diz singelamente no documentário do filho. "Aí está um homem terno, divertido, inseguro, com menos certezas do que parece ter", pondera o diretor. "Mais comum e mais profundo."


DE BUENOS AIRES
O MAPA DA CULTURA
Política na biblioteca
Erudição e conservadorismo

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução SÉRGIO MOLINA

Horacio González é um dos intelectuais de maior prestígio da Argentina; não há nada de estranho nisso, todos os países têm seus intelectuais de prestígio. Mas ele também é, faz vários anos, o diretor da Biblioteca Nacional. Situação bem curiosa: a Argentina não é o México, e aqui raramente os intelectuais ocupam posições de destaque no Estado (e também não é o Brasil, onde um de seus mais importantes sociólogos chegou à Presidência).
González também é uma das principais figuras do grupo Carta Abierta, que reúne intelectuais relativamente próximos ao governo; fato duplamente curioso, pois ao longo da história não são muitos os intelectuais afins ao peronismo. E finalmente, agora sim na excentricidade total, em todos esses anos ele não parou de publicar livros e artigos sobre os mais variados assuntos (desde Perón até a crônica de suas viagens de táxi), escritos na melhor tradição do ensaio de ideias, cheios de erudição e com um estilo que conjuga barroquismo e agudeza.
O mais recente deles, publicado há menos de dois meses, é o extraordinário "Historia de la Biblioteca Nacional - Estado de una Polémica". E o que esse livro tem de extraordinário é que em suas mais de 300 páginas, González pensa - ou melhor, imagina- a Biblioteca Nacional como um "aleph", um ponto em que podem ser vistas todas as tensões da história cultural argentina, todas as contradições, todos os combates e todas as utopias.
Fundada por Mariano Moreno, o grande intelectual e político jacobino da Revolução de Maio de 1810, que prenuncia a independência, a biblioteca, para González, surge "de uma noção de perigo, talvez de catástrofe".
Guiado por essa ideia de catástrofe iminente (um pouco à maneira de Walter Benjamin), o livro se debruça nos três diretores que marcaram a biblioteca. Três diretores que, de tão opostos uns dos outros, também dizem muito sobre os caminhos erráticos da cultura argentina, as polêmicas não resolvidas, os riscos latentes.
O primeiro desses grandes diretores foi Paul Groussac, francês de nascimento, que dirigiu a biblioteca de 1895 a 1929. Ilustrado e conservador, foi também escritor (suas crônicas de costumes portenhos são insuperáveis).
O segundo diretor, não em importância, mas em duração, foi Hugo Wast (pseudônimo de Gustavo Martínez Zuviría), entre 1931 e 1955. Escritor, foi um abominável antissemita, seus romances exalam racismo e mediocridade. Só não foi vertido ao alemão pelos nazistas porque o projeto de tradução acabou malogrando.
Reacionário e clerical, seu mandato atravessou oito presidentes argentinos, civis e militares (incluídos os dez anos de Perón, de 1946 a 1955). A presença de Wast durante tantos anos à frente da Biblioteca Nacional é bem reveladora do fracasso das ideias progressistas na Argentina.
Entre 1955 e 1973 (a volta do peronismo ao poder), também atravessando governos militares e civis, foi a vez de Jorge Luis Borges ocupar a direção. Também ele escritor, e dizem que bem razoável. Conservador, erudito e irônico, sem Borges a Biblioteca Nacional não seria o que é.
Três diretores, três versões de uma biblioteca -ou de uma Argentina- possível. Claro que ainda falta uma biblioteca de esquerda. Talvez seja o tempo de Horacio González.

O DEMOLIDOR DO ROCK
O rock argentino nasceu há 40 anos com esta frase profundíssima: "¡Construiré una balsa y me iré a naufragar!" (também não é o caso de pedirmos altas filosofias ao rock). Ao longo de todas essas décadas, o rock foi abrindo caminho a golpes de solenidade, lugares-comuns e estereótipos. Até que, há coisa de três anos, surgiu um programa de TV (a esta altura, um cult) que demole, um por um, os mitos do rock argentino: "Peter Capusotto y sus Videos".
Encarnado pelo ator Diego Capusotto (que começou na cena underground dos 80 e passou por diversos programas, até conseguir seu próprio espaço), é um apanhado de ácidas ironias sobre a bobageira intrínseca ao mundo dos roqueiros. O ciclo conta apenas com dez transmissões por ano, ansiosamente aguardadas por todos seus fãs -entre eles eu, claro.

MAGNETISMO
Todos conhecemos o clássico "Comment New York Vola l'Ideé d'Art Moderne" [Como Nova York roubou a ideia de arte moderna], de Serge Guilbaut. Paris é que foi roubada: desde o expressionismo abstrato, nos anos 50, Nova York passou a ser a capital mundial da arte. A principal referência para quase todos os jovens artistas, incluídos os argentinos (os argentinos sempre querem ser incluídos!).
Na bela Fundación Proa, no bairro portenho de La Boca, há uma exposição muito interessante sobre o tema: "Ímã - Nova York". É um panorama dos artistas argentinos que viajaram a Nova York nos anos 60 e sofreram influências do pop, da crise do expressionismo, do apogeu dos "happenings", dos primórdios da arte conceitual. Além de exibir as obras dos pintores, traz também entrevistas, com suas vozes lembrando aqueles bons e velhos tempos.


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