terça-feira, 19 de abril de 2011

Mídia comercial: a lógica implacável da mercadoria - Venício Lima

Depois do acidente de ônibus com a delegação do Vôlei Futuro, que seguia para o primeiro jogo da fase semifinal da Superliga Feminina contra o Sollys/Osasco, iniciou-se uma imensa pressão da TV Globo e da Confederação Brasileira de Vôlei para o cumprimento do calendário e a realização das partidas.
Venício Lima

Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Não há qualquer novidade, mas o registro em certas ocasiões – quase um desabafo indignado – se torna obrigatório: a lógica dentro da qual opera a mídia comercial coloca seus interesses empresariais acima de literalmente tudo, ignorando os valores fundamentais da convivência humana em busca de suas metas de lucro.

Não é necessário refazer análises sobre a comprovada relação entre o entretenimento violento, as coberturas jornalísticas da violência e o aumento da própria violência na sociedade (ver, por exemplo, neste Observatório, "A violência urbana e os donos da mídia" e "A mídia e a banalização da violência").

Alguns fatos recentes apenas comprovam o que já se sabe. Confirma-se a hipocrisia ilimitada da grande mídia comercial que, apesar de conhecer perfeitamente as consequências de seus atos, finge não ter nada a ver com o que acontece. Afinal, o Ibope confirma que os índices de audiência das redes Globo e Record cresceram significativamente com a cobertura da tragédia em Realengo (ver aqui).

A lógica do esporte na TV
Há, todavia, um outro lado da lógica do entretenimento associado às transmissões esportivas que nem sempre transparece para o grande público.

Depois do acidente de ônibus com a delegação do Vôlei Futuro, que seguia para o primeiro jogo da fase semifinal da Superliga Feminina contra o Sollys/Osasco, na terça-feira (12/4), iniciou-se uma imensa pressão da TV Globo e da Confederação Brasileira de Vôlei para o cumprimento do calendário e a realização das partidas.

O Twitter de uma das jogadoras foi reproduzido em post no blog do comentarista Bruno Voloch, na quinta-feira (14), e revela a verdadeira dimensão da perversidade desumanizada que opera nessas circunstâncias. Transcrevo:

"Indignada com a CBV, Joycinha desabafa: ‘A TV está pressionando, mas somos seres humanos’

"A pressão da TV Globo e da CBV pela realização da primeira partida semifinal entre Osasco e Vôlei Futuro até o próximo dia 19, deixou revoltada a oposta Joycinha do time de Araçatuba.

"Através do Twitter, a jogadora reclamou e se mostrou indignada:

"‘Nesse momento não tem que pensar em televisão. A televisão está pressionando, mas tem que lembrar que somos seres humanos’.

"Joycinha não economizou críticas aos responsáveis pela superliga:

"‘Psicologicamente estamos muito abaladas. Fisicamente, também não estamos legal. Estamos bem, mas para jogar vôlei, cair na quadra e saltar, não. É preciso ter o mínimo de bom senso’.

"Joycinha está com vários hematomas no rosto e com dores no pescoço.

"Conforme o blog informou, a CBV colocou à disposição do Vôlei Futuro as datas entre 15 e 19 de abril para a realização da primeira partida. A TV Globo não admite a idéia de fazer a decisão da superliga em maio e a data para a decisão está marcada para 30 de abril no Mineirinho em Belo Horizonte."

O que se pode fazer?
A saída para escapar à lógica comercial prevalente na grande mídia é o fortalecimento do sistema público que, pelo menos em tese, coloca o interesse público em primeiro lugar.

Quem sabe, viveremos para ver um marco regulatório que coloque efetivamente em funcionamento o princípio da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de radiodifusão que adormece há mais de 22 anos no artigo 223 da Constituição?

A ver.


A violência urbana e os donos da mídia

Por Venício A. de Lima em 22/8/2006


Há cerca de 10 anos, em palestra que fez na Universidade de Brasília, Jo Groebel – professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, e representante da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre Agressão nas Nações Unidas – não deixou dúvidas sobre a existência de uma relação entre a predominância da violência na programação da televisão e a tendência para a agressividade de jovens e adultos. Nunca esqueci da veemência com que ele afirmava, baseado em seus mais de 20 anos de pesquisa, que a televisão "faz com que as pessoas pensem que a violência é normal" e que "quanto mais desigual a estrutura da sociedade maior o impacto da violência mostrada na TV".

Nos Estados Unidos, os "National Television Violence Studies", financiados pela National Cable Television Association (NCTA), realizados durante os anos 1990 por um pool de grandes universidades – Califórnia, Carolina do Norte, Texas e Wisconsin –, confirmaram as conclusões de Groebel e geraram uma série de recomendações sobre o conteúdo da programação para a indústria de entretenimento.

Certamente essas pesquisas e esses resultados são do conhecimento dos executivos dos nossos principais grupos de mídia.

O tema vem a propósito do novo patamar alcançado entre nós pela violência urbana, simbolizado pelo seqüestro de um jornalista e um técnico da TV Globo-SP por criminosos que, em troca, exigiram a exibição de um vídeo na emissora.

Índices do crime

O crime organizado sabe muito bem que na sociedade contemporânea, como disse Ignácio Ramonet, a mídia é o segundo poder (imbricado com o primeiro, que é exercido pela economia), "instrumento de influência, de ação e de decisão incontestável", muito além do poder político. Sabe também que, no Brasil, o que não sai no Jornal Nacional raramente alcança o espaço de discussão pública. Por isso, ao chantagear os jornalistas da Globo, os bandidos estão atingindo o núcleo do poder na sociedade e mostrando até onde sua determinação criminosa pode chegar.

O que surpreende neste triste episódio é a recusa dos donos da mídia no Brasil em reconhecer que ela própria é também parte do problema – e da solução –, e não apenas uma instituição que assiste à escalada da violência e reclama providências das autoridades.

O indignado documento divulgado pelas entidades patronais ANJ, ANER, ABERT, ABRA e ABRATEL – com a dissidência da Rede Bandeirantes, registre-se – não faz qualquer referência a uma reflexão da mídia sobre qual é a sua parte de responsabilidade em relação ao nível de violência alcançado pela sociedade brasileira.

** Será que não há nada que os donos da mídia possam fazer além de cobrar coordenação entre as autoridades federais e estaduais de segurança pública?

** Será que a programação das concessionárias de televisão não tem qualquer influência sobre a agressividade dos nossos jovens e adultos?

** Será que o segundo poder (de fato) nada tem a ver com os altos índices de criminalidade, ao contrário do que indicam unanimemente as pesquisas realizadas em outros países?

Serviço público

Diante da gravidade da situação, é imprescindível que as mesmas entidades que assinaram o documento pedindo providências às autoridades também tomem algumas providências no seu próprio âmbito de ação.

A exemplo de seus pares em outras partes do mundo, ANJ, ANER, ABERT, ABRA e ABRATEL poderiam destinar parte de seus lucros para a pesquisa das causas da violência no Brasil. Talvez os resultados indiquem que – além das autoridades politicamente constituídas – existem várias iniciativas que os donos da mídia podem e devem tomar, e não só em relação ao conteúdo das programações de seus veículos.

É isso que a sociedade brasileira espera, sobretudo daqueles que são concessionários de um serviço público – o rádio e a televisão – no sentido de conter a insuportável escalada da violência que agora vitimiza também, e diretamente, os jornalistas.

BARBÁRIE ELETRÔNICA
A mídia e a banalização da violência

Por Venício A. de Lima em 7/4/2009


Atos seguidos de violência, provocando a morte de dezenas de vítimas indefesas, praticados por pessoas aparentemente normais, estão se tornando tristemente rotineiros. Nos EUA, de fevereiro de 2008 até aqui, foram seis massacres, com a morte de cerca de 50 pessoas, incluindo a chacina de Binghamton, NY, na sexta-feira (3/4).

Entre nós, as notícias desses episódios se misturam à insegurança pública crescente, sobretudo nos grandes centros urbanos, e se perdem, muitas vezes, sem que aqueles com responsabilidade pela condução da coisa pública se debrucem sobre suas causas e conseqüências.

Há episódios de violência, no entanto, que não podem ser ignorados, em particular, por quem estuda a mídia e busca compreender seu papel e suas responsabilidades na sociedade contemporânea.

Inspirado na TV

Foi preso na semana passada em Brasília um aparentemente pacato vendedor de carros usados, residente no aglomerado urbano de Vicente Pires, que fica entre a cidade-satélite de Taguatinga e o Plano Piloto, seqüestrador e assassino agora confesso de três pessoas e suspeito da morte de até outras duas, no curto período de pouco mais de 4 meses.

Em pelo menos um dos crimes que cometeu, o vendedor de carros teve como cúmplice um policial da Rotam – Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas do Distrito Federal – que mantém perfil no site de relacionamento Orkut com o nome de "Iceman".

O que há de diferente em relação a esses crimes e a essas prisões?

Segundo noticia o Correio Braziliense em sua edição de quarta-feira (1/4 – "Horror pautado na ficção", caderno Cidades, pág. 22), o vendedor de carros "teria confessado em depoimento (prestado na Divisão de Repressão a Seqüestro) ter se inspirado em dois seriados de TV exibidos por canais pagos para matar e ocultar as provas dos crimes: o CSI – Investigação Criminal e Dexter". Além disso, dezenas de DVDs das duas séries foram apreendidas no seu apartamento.

Violência em série

Qual o conteúdo dessas séries, originalmente disponíveis apenas na TV fechada (AXN e FOX), mas que podem ser vistas também nos DVDs – piratas ou não – vendidos a preços acessíveis em todo o país?

No site sobre a série Dexter encontra-se a seguinte descrição:

Como um homem cujo trabalho é ajudar a solucionar os piores crimes de Miami durante o dia comete os mesmos atos brutais durante à noite? O que acontece numa cidade onde serial killers são perseguidos por um deles? Onde começa e termina a linha que separa um serial killer de um herói incomum?

"DEXTER" é uma história cheia de reviravoltas sobre um especialista em medicina forense da polícia que passa parte de seu tempo perseguindo assassinos que ultrapassaram os limites da justiça. Mas será esse um caminho possível para um serial killer?

(...) Dexter é um personagem complexo cujo código moral e ações talvez sejam chocantes para alguns — e totalmente injustificáveis para outros. Na superfície, Dexter é um homem bom e charmoso. Durante o dia, ele é um especialista em sangue que trabalha ao lado da equipe da divisão de homicídios do departamento de polícia de Miami e vai além do seu trabalho para solucionar os assassinatos. Seu trabalho na verdade serve para ocultar sua verdadeira ocupação, a de serial killer, que consiste em matar aqueles que conseguiram escapar da polícia.

Logo se descobre as origens do seu comportamento: após ficar órfão aos 4 anos e guardar um traumático segredo, Dexter é adotado por Harry Morgan, um policial que reconhece as tendências homicidas dele e guia seu filho para mudar sua terrível paixão em dissecar humanos para algo mais construtivo.

Como todos os serial killers, o lado obscuro de Dexter é escondido das pessoas com quem ele passa mais tempo, principalmente daqueles que ele ama. (...)

Já o site da série CSI informa:

Eles estão 24 horas nos casos, investigando a cena do crime, coletando evidências irrefutáveis e encontrando peças desaparecidas que solucionarão o mistério. Gil Grissom, o supervisor do turno noturno, lidera a equipe de investigadores do laboratório de criminalística de Las Vegas.

A equipe é formada por Catherine Willows, uma batalhadora mãe solteira com um passado comprometedor e uma filha adolescente que ela tem que criar sozinha; Nick Stokes, um jovem homem que simpatiza com as vítimas através de suas próprias experiências; Greg Sanders, o estranho técnico do laboratório que se tornou um investigador de campo; e Riley Adams, a nova membro da equipe que é fascinada pelas pessoas desprotegidas da sociedade e não se choca ou é intimidada por nada.

A equipe do CSI também trabalha com o Capitão Jim Brass, o ex-chefe, agora designado para o departamento de homicídios; o Dr. Albert Robbins , o sempre profissional médico legista, e o assistente dele, David Phillips; e David Hodges, um técnico do laboratório especializado na análise de marcas e substâncias desconhecidas.

Sem simplificações

Não se pretende aqui, simplificar as complexas razões que produzem uma mente criminosa e levam alguém a cometer um crime. Os fatos relativos ao recente episódio do seqüestro de Santo André e a cobertura que dele fez a grande mídia ainda estão vivos em nossa memória (ver "As lições do caso Santo André" e "A liberdade de comunicação não é absoluta"). Não se pode, no entanto, ignorar que a assustadora presença de conteúdo violento nas séries de televisão – e nos filmes, DVDs, videogames – tenha também alguma responsabilidade na criminalidade urbana.

Na mesma semana em que a "responsabilidade" da grande mídia brasileira e da televisão, em particular, foi louvada em voto no Supremo Tribunal Federal, é preocupante que um assassino declare ter se inspirado nela para cometer seus crimes. Será que estamos falando da mesma televisão?

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