Vige, na mídia, a ignorância linguística
Enviado por luisnassif, dom, 15/05/2011 - 13:45
Por Weden
O caso da condenação do livro didático (col. Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, de Heloísa Ramos et alii) pelo populismo midiático não é expressão somente de tomada de partido numa suposta querela entre linguistas e gramáticos.
Para esclarecer, chamo de "populismo jornalístico" o hábito próprio a alguns veículos e jornalistas de se acreditarem "justiceiros do povo", autorizando-se a cometerem assassinatos de reputação, a partir de condenações precipitadas sem base legal e/ou científica.
O caso é, sim, a expressão da ignorância linguística em sua versão mais perigosa: a de defesa consciente do preconceito.
Reverberada, acriticamente, por diversos veículos impressos, meios eletrônicos, e mídias de rede – entre portais, e blogs agressivos e leigos – a condenação ao livro, aos autores e ao próprio MEC, partiu de uma leitura pouco atenta e informada do texto da obra, chegando à prática perversa da boataria de difamação.
No Brasil, lidamos com a resistência de uma "prática tradicional e normativa" em ceder, na escola, espaço para a ciência. O que é gravíssimo.
Entre todas as disciplinas escolares com base científica (biologia, física, matemática, história etc.), os estudos de língua materna são os mais atrasados no país. Contribui para isso o fato de que a base científica destes estudos constantemente é alvo de ataques não somente de normativistas, como também e muitas vezes de personagens da mídia. Isso quando não se confundem.
À linguística, cabe trazer conhecimentos sobre a língua.
A gramática não é científica e não tem condições de trazer conhecimentos sobre a língua. Ela traz apenas normas, ou "etiquetas", como já designou o linguista Sírio Possenti.
Ora, não se pode esperar de especialistas em etiqueta social que tragam esclarecimentos sobre fenômenos antropológicos. Seria como esperar um debate sério entre Glória Kalil e Clifford Geertz.
Emparelhar gramática e linguística numa mesma discussão sobre a língua é tão absurdo quanto construir críticas a "teorias antropológicas" a partir de "dicas de etiqueta social".
A gramática deve cumprir seu papel: informar os alunos sobre "aquilo que é norma gramatical". Só isso. Nada a dizer sobre a língua em sua complexidade. Mas a gramática é parte (com alguma importância) e não o todo do saber sobre a língua.
Assim como antropólogos costumam dar algum valor à etiqueta social quando estão em jantares ou apresentações acadêmicas, mas sabem que a cultura não é somente isso; linguistas não desprezam a gramática, mas sua função, entre tantas outras, é alertar que a língua também não é somente isso.
Tudo bem: há quem acredite que indígenas são mal educados por andarem seminus. Mas não podemos levar estes juízos a sério.
O que linguistas tentam esclarecer à sociedade, com base em estudos científicos, aliás, bastante antigos, é que a língua é maior que uma lista de "acertos/erros". Ela é um sistema complexo, atravessado pela história, e por práticas extremamente complexas no corpo social.
Em pleno século XXI, o que alguns gramáticos e alguma mídia tentam dizer é que a língua não é um sistema complexo, não é atravessada pela história, e não é múltipla e maior que regras gramaticais. Convicções do século XVII, diga-se de passagem. Ou, de forma análoga, é como se tentassem convencer-nos de que indígenas são "mal educados" por andarem seminus, condenando e difamando os antropólogos por não concordarem com esta estupidez.
Em síntese: o que os autores do livro fizeram foi alertar aos alunos que o modo como alguns deles falam não é "incorreto linguisticamente", mas apenas "não autorizado gramaticalmente", pois que não existe propriamente língua portuguesa (francesa, espanhola, alemã etc.) certa ou errada.
O que a mídia está fazendo neste momento, em contrapartida, é defender "ardentemente" o preconceito - ato tão grave quanto alguém defender o racismo e o sexismo em nome de "normas de etiqueta
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