O instrumentarianismo
(conceito criado por Shoshana Zuboff) não é apenas um poder que deriva da
assimetria entre o capitalista de vigilância e o usuário de internet.
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
-08/06/2020
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O instrumentarianismo como
poder e como auctoritas, por Fábio de Oliveira Ribeiro
No primeiro capítulo da
terceira parte do livro, Shoshana Zuboff faz uma distinção entre totalitarismo
e a nova modalidade de poder que está sendo construída pelo capitalismo de
vigilância. Depois ela retoma a discussão sobre o behaviorismo para diferenciar
a distopia de George Orwell (1984) da de Skinner (Waden Two), demonstrando como
os capitalistas da vigilância conseguiram ultrapassar os devaneios do psicólogo
norte-americano.
A autora denominou a nova
espécie de poder instrumentarianismo.
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“As to this species of power, I name it instrumentarianism, define as
the instrumentation and instrumentalization of behavior for the purposes of
modification, prediction, monetization, and control. In this formulationm
‘instrumentation’ refers to the puppet: the ubiquitous connected material
architecture of sensate computation that renders, interprets, and actuates
human experience. ‘Intrumentalization’ denotes the social relations that orient
the puppet masters to human experience as surveillance capital wields the
machines to transform us into means to other’s market endes. Surveillance
capitalism forced us to reckon with an unprecedented form of capitalism. Now
the instrumentarian power that susteins and enlarges the surveillance
capitalist project compels a second confrontation with the unprecedented.” (The
Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019,
p. 352)
Tradução:
“Quanto a essa espécie de
poder, que chamo de instrumentarismo, defino como a instrumentação e
instrumentalização do comportamento para fins de modificação, previsão,
monetização e controle. Nesta formulação, ‘instrumentação’ refere-se ao
fantoche: a arquitetura onipresente de materiais conectados da computação sensível
que processa, interpreta e atua a experiência humana. ‘Intrumentalização’
denota as relações sociais que orientam os mestres de marionetes para a
experiência humana, à medida que o capital de vigilância utiliza as máquinas
para nos transformar em meios para os fins do mercado de outros. O capitalismo
de vigilância nos forçou a contar com uma forma sem precedentes de capitalismo.
Agora, o poder instrumentista que sustenta e amplia o projeto capitalista de
vigilância compele um segundo confronto com o inédito.”
Um pouco adiante Soshana
Zuboff delineia algumas características desse novo tipo de poder:
“Although it is not murderous, instrumentarianism is a startling,
incomprehensible, and new to the human story as totalitarianism was to its
witnesses and victims. Our encounter with umprecedented power helps to explain
why it has been difficult to name and know this new species of coercion, shaped
in secret, camouflaged by techonogy and techincal complexity, and obfuscated by
endearing rethoric. Totalitarianism was a political project that converged whit
economics to overwhelm society. Instrumentarianism is a market project that
converges with digital to achieve its own unique brand of social domination.
It is not surprising therefore, that instrumentarianism’s specific ‘view
point of observation’ was forged in the controversial intellectual domain know
as ‘radical behaviorism’ and its antecedents in turn-of-the-century theoretical
physics. In the remainder of this chapter, our examination of power in the time
of surveillance capitalism privots to this point of origin far from
totalitarianim’s murder and mayhem. It makes us to laboratories and classrooms
and the realms of thought spun by men who regarded freedon as a synonym for
ignorance and human beings as distante organisms imprisioned in patternss of
behavior beyond their own comprehension or control, such as ants, bees, or
Stuart MacKay’s herds of elk.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana
Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 360/361)
Leia também: Afirmar democracia requer superar nação
fraturada, por Josias Pires Neto
Tradução:
“Embora não seja assassino, o
instrumentarismo é surpreendente, incompreensível e novo na história humana,
assim como o totalitarismo foi para suas testemunhas e vítimas. Nosso encontro
com um poder sem precedentes ajuda a explicar por que tem sido difícil nomear e
conhecer essa nova espécie de coerção, modelada em segredo, camuflada pela
tecnologia e pela complexidade técnica, e ofuscada pela retórica cativante. O
totalitarismo foi um projeto político que convergiu com a economia para
subjugar a sociedade. O instrumentarismo é um projeto de mercado que converge
com o digital para alcançar sua própria marca única de dominação social.
Portanto, não surpreende que o
‘ponto de vista’ específico do instrumentarismo tenha sido forjado no
controverso domínio intelectual conhecido como ‘behaviorismo radical’ e seus
antecedentes na física teórica da virada do século. No restante deste capítulo,
nosso exame do poder na época em que o capitalismo de vigilância se apropriou
até esse ponto de origem longe do assassinato e do caos dos totalitários. Isso
nos leva a laboratórios e salas de aula e aos campos de pensamento gerados por
homens que consideravam a liberdade como sinônimo de ignorância e seres humanos
como organismos distantes aprisionados em padrões de comportamento além de sua
própria compreensão ou controle, como formigas, abelhas ou Stuart MacKay.
rebanhos de alces.”
Dentro dos parâmetros
escolhidos pela autora, a tese dela é absolutamente coerente e irrepreensível.
Mas há algo mais que poderia ser dito se levarmos em conta as palavras dela
sobre a obra de Skinner num dos capítulos anteriores da obra.
“Another factor was the 1971 publication of B. F. Skinner’s incendiary
social meditation Beyond Freedon & Dignity. Skinner prescribed a future
based on behavioral control, rejecting the very idea of freedom (as well as
every tenet of a liberal society) and cast the notion of human dignity as an
accident of self-serving narcissism. Skinner imagined a pervasive ‘techonology
of behavior’ that would one day enable the application of behavior-modification
methods across entire human populations.” (The Age of Surveillance Capitalism,
Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 322/323)
Tradução:
“Outro fator foi a publicação
de 1971 da meditação social incendiária de B. F. Skinner, Beyond Freedon &
Dignity. Skinner prescreveu um futuro baseado no controle comportamental,
rejeitando a própria ideia de liberdade (assim como todos os princípios de uma
sociedade liberal) e lançou a noção de dignidade humana como um acidente de
narcisismo egoísta. Skinner imaginou uma ‘tecnologia do comportamento’
penetrante que um dia permitiria a aplicação de métodos de modificação de comportamento
em populações humanas inteiras.”
Nós podemos concordar ou
discordar das ideias de Skinner, mas não podemos esquecer uma coisa importante.
As duas coisas que ele considerou irrelevantes (liberdade e dignidade humana)
foram criadas recentemente. Elas não existiam na Antiguidade.
“A pátria não nos gerou nem
educou sem esperança de recompensa de nossa parte, e só para nossa comodidade e
para procurar retiro pacífico para a nossa incúria e lugar tranquilo para o
nosso ócio, mas para aproveitar, em sua própria utilidade, as mais numerosas e
melhores faculdades das nossas almas, do nosso engenho, deixando somente o que
a ela possa sobrar para nosso uso privado.” (Cícero e Dante, Biblioteca
Clássica, volume X, Da República, Marco Túlio Cícero, Atena Editora, São Paulo,
1957, p, 19)
Leia também: O nascimento da indústria inteligente e do
sindicalismo 2.0, por Fábio de Oliveira Ribeiro
No mundo antigo, o homem
pertencia a cidade. A dignidade dele só existia enquanto ele desejasse fazer
parte da comunidade que possibilitava aos homens viver e morrer como cidadãos
entre iguais e distintos de seus desiguais (os escravos, bárbaros, etc). O
desenvolvimento da própria individualidade não era um objetivo da vida social e
sim subproduto dela.
Aquilo que realmente importava
deveria ser voluntariamente entregue à cidade. Somente o que restava, como diz
Marco Túlio Cícero, poderia ser desfrutado na vida privada. Os sacrifícios
feitos em prol da cidade eram dignificantes. Sofrer e morrer numa guerra era
algo considerado glorioso. Desprezível o recolhimento, detestável a comodidade
de uma vida pacífica e ociosa.
Durante toda a Idade Média,
período em que as pessoas podiam ser torturadas para confessar crimes
impossíveis e condenadas a morte em virtude de confissões obtidas pelo
carrasco, também não existiu qualquer espaço para liberdade pessoal. A
dignidade do homem não existia se ele fosse considerado um infiel. Os seres
humanos só eram dignos se cumprissem suas obrigações para com a divindade.
Todos eram obrigados a se submeter aos caprichos e sevícias daqueles que
detinham o poder espiritual e temporal.
A liberdade e a dignidade
humana entram em cena justamente quando o poder público deixou de aurir sua
autoridade da devoção à cidade (Antiguidade clássica) ou à divindade e sua
representação terrena (Idade Média). Os regimes políticos criados após a
Revolução Francesa se caracterizaram tanto pela valorização dessas duas coisas
quanto pela instabilidade política que elas são capazes de produzir.
Dito isso, voltemos à obra de
Skinner mencionada por Shoshana Zuboff.
“… The Walden Two community equaly disdains the practices of democratic
politics and representative government. Its laws are derived from science of
human behavior, specifically Skinner’s own radical behaviorism, founded on the
physicist’s ideal of the Other-One. His utopia was a vehicle for other
ambitions as well, intended to illustrate the behavioral solutions that are
essencial for improvement in every domain of modern life: the nuclear threat,
pollution, population control, urban growth, economic equality, crime,
education, health care, the development of the individual, effective leisure.
It aimed to cultivate ‘the good life’ for which all the idels of a liberal
society – freedom, autonomy, privacy, a people’s right to self-rule – muste be
forfeit.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs,
New York, 2019, p. 374)
Tradução:
“… A comunidade Walden Two
desmente as práticas da política democrática e do governo representativo. Seus
leis são derivados da ciência do comportamento humano, especificamente o
behaviorismo radical do próprio Skinner, fundado no ideal do outro para a
física.. Sua utopia também foi um veículo para outras ambições, com o objetivo
de ilustrar as soluções comportamentais essenciais para a melhoria em todos os
domínios da vida moderna: ameaça nuclear, poluição, controle populacional,
crescimento urbano, igualdade econômica, crime, educação, saúde, o
desenvolvimento do indivíduo, lazer efetivo. O objetivo era cultivar a ‘vida
boa’ pela qual todos os ídolos de uma sociedade liberal – liberdade, autonomia,
privacidade, direito do povo de se autogovernar – devem ser perdidos.”
Leia também: O medo como arma do fascismo, por Wilson Luiz
Müller
As palavras de Shoshana Zuboff
sugerem que no centro do projeto de Skinner não está apenas a construção de uma
sociedade sem classes em que a política deixa de ocupar um papel relevante. Na
verdade o autor de Waden Two colocou sua ciência comportamental no pedestal
anteriormente ocupado pelo patriotismo e pela divindade para supostamente
construir sociedade estável baseada numa autoridade inquestionável.
O instrumentarianismo
(conceito criado por Shoshana Zuboff) não é apenas um poder que deriva da
assimetria entre o capitalista de vigilância e o usuário de internet. Ele é uma
nova espécie de “auctoritas”, que se propaga do novo modelo econômico (a
expropriação de excedente comportamental que gera lucros fabulosos) para a
arena política (em que, como disse a autora, quem tem mais dinheiro está em
condições de definir as regras do jogo).
A autoridade do capitalismo de
vigilância é tanto científica quanto tecnológica. Ela existe com, sem ou apesar
da resistência dos usuários de internet. Em virtude da própria arquitetura dos
sistemas que foram criados para expropriar excedente comportamental, os
capitalistas da vigilância podem utilizá-la para obter lucro e modelar
comportamentos.
O que os cidadãos ganhavam em
troca da sua devoção à cidade na Antiguidade? Proteção contras as feras e
inimigos dentro das muralhas, a possibilidade de participar das atividades
públicas, de se destacar de acordo com suas habilidades e de conquistar a
estima e o reconhecimento dos seus iguais. O que os fiéis podiam esperar em
razão de sua devoção a Deus na Idade Média? A possibilidade de comungar na
igreja, a tranquilidade espiritual decorrente dos sacramentos ministrados pelo
padre, o conforto emocional em caso de tragédia pessoal, um enterro no local
consagrado, e, é claro, a certeza de um lugar no reino do céu.
O que os usuários da internet
ganham em troca dos excedentes comportamentais que são expropriados pelos
capitalistas de vigilância? Essa é uma pergunta que tem sido respondida por
Shoshana Zuboff ao longo de toda sua obra: a perda da privacidade; o
rebaixamento à condição de objeto observável e modificável e; a total
impossibilidade de questionar uma autoridade construída com ajuda de uma
tecnologia dominada por poucos e, até a presente data, não sujeita a qualquer
controle estatal.
No entanto, as pessoas
continuam a usar a internet e a reforçar o capitalismo de vigilância. Elas
fazem isso não porque são constrangidas e sim porque consideram indispensável
participar desse admirável mundo novo.
Nós renunciamos à privacidade
para ganhar visibilidade. Aceitamos ser expropriados porque consideramos a vida
“on line” gratificante. E nos submetemos às manipulações comportamentais porque
somente assim o mundo poderá “…aproveitar, em sua própria utilidade, as mais
numerosas e melhores faculdades das nossas almas, do nosso engenho, deixando
somente o que a ela possa sobrar para nosso uso privado.”
No próximo texto desta série
veremos de uma maneira ainda mais detalhada como o que Shoshana Zuboff chamou
de um poder sem precedentes pode ser considerado semelhante à “auctoritas”.
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