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O ‘não contrato’ não é um
espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas
relações desnecessárias.
Por
Fábio de Oliveira Ribeiro
-
26/05/2020
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Um direito indiscutível de
monitorar todos o tempo todo?
por Fábio de Oliveira Ribeiro
No texto anterior desta série
https://jornalggn.com.br/artigos/dark-data-e-a-ilusao-da-eliminacao-total-de-todas-as-incertezas/,
vimos como o capitalismo de vigilância começou a migrar para o mundo real
através da adesão da indústria automobilística e das seguradoras. Convém agora
explorar as estratégias que, segundo Shoshana Zuboff, estão sendo utilizadas para
impor o novo modelo aos cidadãos e algumas consequências jurídicas da submissão
contratual aos imperativos de predição impostos à economia pelos capitalistas
da vigilância.
“Deloitte acknoledges that according to its survey data, most consumers
reject telematics on the basis of privacy concerns ad mistrust companies that
want monitor their behavior. This relutance can be overcome, the consultants
advise, by offering cost savings ‘significant enough’ that people are willing
‘to make the [privacy] trade-off’ in spite of ‘lingering concerns…’ If price
inducements don’t work, insurers are counseled to present behavioral monitoring
as ‘fun’, ‘interative’, ‘competitive’ and ‘ gratifying’ rewarding drivers for
improvements on their past record and ‘relative to the broader policy holder
pool’. In this approach, known as ‘gamification’, drivers can be engaged to
participate in ‘performance base contests’ and ‘incentive based challenges’.
If all eles fails, insurers are advised to induce a sense of
inevitability and helplesness in their customers. Deloitte counsels companies
to emphasize ‘the multitude of other technologies already in play to monitor
driving’ and that ‘enhanced surveillance and/or geo-location capabilities are
part of the world we live in now, for better or worse.”
Behavioral underwriting offers auto insurers cost savings and
efficiencies, but it is not the endgame for a revitalized insurance industry.
The analytics thar produce targeted advertesing in the online word are
repurposed for the real world, laying the foundation for new behavioral future
markets that trade in predictions of customer behavior.” (The Age of
Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p.
216/217)
Tradução:
“A Deloitte reconhece que, de
acordo com os dados da pesquisa, a maioria dos consumidores rejeita a
telemática com base em questões de privacidade e desconfia de empresas que
desejam monitorar seu comportamento. Essa relutância pode ser superada,
aconselham os consultores, oferecendo uma economia de custos “suficientemente
significativa” para que as pessoas estejam dispostas a ‘renunciar [á
privacidade]’, apesar de ‘preocupações persistentes …’. Se os incentivos de
preços não funcionarem, as seguradoras são aconselhadas a apresentar o
monitoramento comportamental como ‘motivadores’, ‘gratificantes’, ‘divertidos’,
‘interativos’, ‘competitivos’, premiando os consumidores por melhorias em
relação seus registros anteriores e ‘em relação ao conjunto mais amplo de
segurados’. Nessa abordagem, conhecida como ‘gamificação’, os motoristas podem
ser envolvidos a participar de ‘concursos baseados em desempenho’ e ‘desafios
baseados em incentivos’.
Se todas as estratégias
falharem, as seguradoras são aconselhadas a induzir uma sensação de
inevitabilidade e dificuldade em seus clientes. Deloitte aconselha as empresas
a enfatizar ‘a infinidade de outras tecnologias já em jogo para monitorar a
direção’ e que ‘recursos aprimorados de vigilância e/ou localização geográfica
fazem parte do mundo em que vivemos agora, para melhor ou para pior’.
A subscrição comportamental
oferece economia e eficiência aos custos das seguradoras, mas não é o fim do
jogo para um setor de seguros revitalizado. As análises que produzem anúncios
direcionados na palavra on-line são reaproveitadas para o mundo real,
estabelecendo as bases para novos mercados comportamentais futuros que negociam
previsões de comportamento do cliente.”
No Brasil essas duas
estratégias têm sido precedidas pela introdução de câmeras e sensores de
distância nos modelos de carros mais novos. Um amigo meu comprou um carro
equipado com esses dispositivos. Em menos de um ano ele foi obrigado a trocar a
câmera, pois o suporte da original se rompeu. Ele me disse que o preço pago
pela nova câmera foi uma bagatela. A substituição da câmera foi tão fácil que o
carro nem precisou ser levado à assistência técnica.
Ele já está se acostumado a
utilizar os novos recursos do veículo. Em breve eles se tornarão
indispensáveis. O próximo carro novo que meu amigo comprar provavelmente virá
com sensores mais modernos que poderão ser conectados ao servidor da montadora
ou da seguradora. O revendedor dirá a ele que a novidade não acarretou nenhum
acréscimo no preço do veículo. Muito pelo contrário, a utilização dos dados
coletados em tempo real do veículo dele poderão ser empregados para, levando em
conta o histórico dele, reduzir o custo do seguro. Localização por GPS
garantida em caso de furto.
Leia também: Negros peruanos: das cantigas escravas à
Susana Baca, por Luis Gustavo Reis e Eduardo Bonzatto
Não sei se meu amigo fará
objeções ao monitoramento em tempo real. Se ler os textos dessa série ele
ficará preocupado com questões relativas à privacidade? Isso é possível, mas
não sei exatamente como ele reagirá. Ele é usuário de internet. Os dois filhos
dele tem entre 20 e 30 anos e cresceram num ambiente informatizado gostam de
novidades tecnológicas. Se ele não aderir às novidades pode sofrer algum tipo
de constrangimento familiar.
Após narrar as estratégias
utilizadas para obrigar os consumidores a fornecer cada vez mais excedente
comportamental, a Zuboff cita a declaração de um administrador do Google:
“… ‘Because transactions are now computer-mediated we can observe
behavior that was previously unobservable and write contratcs on it. This enables
transactions that were simply not feasible before’; Varian’s ‘we’ refers to
those with privileged access to the shadow text into which behavioral data
flow. Our behavior, once unobservable, is declared as free for the taking,
theirs to own, and theirs to decide how to use and how to profit from. This
includes the production of ‘new contratual forms’ that compel us in ways that
would not have been possible but for surveillance capitalist’s original
declarations of dispossession.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana
Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 218/219)
Tradução:
“…‘Como as transações agora
são mediadas por computador, podemos observar um comportamento anteriormente
inobservável e escrever contratos com base neles. Isso permite transações que
antes não eram possíveis’; O ‘nós’ a que Varian refere-se obviamente àqueles
com acesso privilegiado ao texto sombra para o qual os dados comportamentais
fluem. Nosso comportamento, que já foi inobservável, é declarado livre para
expropriação, a propriedade é deles, o direito de decidir como usar e como
lucrar também é deles. Isso inclui a produção de ‘novas formas contratuais’ que
nos obrigam de maneiras que não seriam possíveis, mas apenas para reforçar as
declarações originais de expropriação feitas pelo capitalista de vigilância.”
Um pouco adiante Shoshana
Zuboff faz uma reflexão sobre esses novos contratos:
“…What Varian celebrates here is not a new form of contract but rather a
final solution to the enduring uncertainty that is the raison d’être of
‘contract’ as means of ‘private ordering’. In fact, the use of the word
contract in Varian’s formulation is a perfect example of the horseless-carriage
syndrome. Varian’s formulation is unprecedented and cannot be understood as
simply another kind of contract. It is, in fact the annihilation of contract;
this invention is better understood as the uncontract.
The uncontract is a feature of the larger complex that is the means of
behavioral modification, and it is therefore an essential modality of
surveillance capitalism. It contributes to economies of action by leveraging
proprietary behavioral surplus to preempt and foreclose action alternatives,
thus replacing the indeterminacy of social processes with the determininsm of
programmed machine processes. This is not the automation of society, as some
might think, but rather the replacement of society with machine action
directated by economic imperatives.
The uncontract is not a space of contractual relations but rather a
unilateral execution that makes those relations unnecessary. The uncontract
desocializes the contract, manufacturing certainty through the substitution of
automated procedures for promises, dialogue, shared meaning, problem solving,
disput resolution, and trust: the expressions of solidarity and human agency
that habe been gradually institutionalized in the notion of ‘contract’ over the
course of millennia. The uncontract bypasses all that social work in favor of
compulsion, and it does só for the sake of more-lucrative prediction products
that approximate observation and therefore guarantee autcomes.” (The Age of
Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p.
220/221)
Tradução:
“… O que a Varian celebra aqui
não é uma nova forma de contrato, mas uma solução final para a incerteza
duradoura que é a razão de ser do ‘contrato’ como meio de ‘interação privada’.
De fato, o uso da palavra contrato na formulação de Varian é um exemplo
perfeito da síndrome da carruagem sem cavalos. A formulação da Varian é sem precedentes
e não pode ser entendida como simplesmente outro tipo de contrato. É, de fato,
a aniquilação de contrato; esta invenção é melhor entendida como o ‘não
contrato’.
O ‘não contrato’ é uma
característica do complexo maior que é o meio de modificação comportamental e,
portanto, é uma modalidade essencial do capitalismo de vigilância. Contribui
para as economias de ação, alavancando o excedente comportamental de seu
proprietário para antecipar e excluir alternativas de ação, substituindo assim
a indeterminação dos processos sociais pelo determinismo dos processos da
máquina que foram programados. Esta não é a automação da sociedade, como alguns
podem pensar, mas a substituição da sociedade pela ação da máquina dirigida por
imperativos econômicos.
Leia também: Qual a função do ensino religioso na
perspectiva da laicidade?, por Marcos Vinicius de Freitas Reis
O ‘não contrato’ não é um
espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas
relações desnecessárias. O ‘não contrato’ dessocializa o contrato, fabricando
certezas através da substituição de procedimentos automatizados por promessas,
diálogo, significado compartilhado, resolução de problemas, resolução de
disputas e confiança: as expressões de solidariedade e autonomia humana que
foram gradualmente institucionalizadas na noção de ‘contrato’ ao longo de
milênios. O ‘não contrato’ ignora todo esse trabalho social em favor da
compulsão, e o faz pelo bem de produtos de previsão mais lucrativos que
aproximam a observação e, portanto, garantem resultados.”
A perspectiva levantada por
Shoshana Zuboff fica mais interessante se compararmos um contrato de seguro
tradicional com o “não contrato” que possibilita a expropriação gratuita de
excedente comportamental que poderá ser utilizado para moldar as ações futuras
do consumidor.
Mesmo que seja um contrato
padrão de adesão, o contrato de seguro tradicional impõe direitos e deveres
mútuos. Isso significa que tanto o segurado quanto a seguradora podem ser
punidos se não cumprirem suas obrigações. As obrigações contratuais que
extrapolem determinados limites impostos pela legislação podem ser consideradas
nulas pelo Judiciário.
O “não contrato” referido pela
autora do livro cria direitos para o capitalista de vigilância. Ele poderá
extrair todos os dados que forem possíveis, empregá-los da maneira que bem
entender e, eventualmente, comercializá-los no mercado de predições com outras
empresas que exploram o capitalismo de vigilância.
O consumidor por sua vez,
receberá em troca apenas três coisas: a obrigação de agir dentro dos parâmetros
estabelecidos, sob pena de punição: desligamento remoto do veículo em caso de
falta de pagamento da parcela; rejeição do pagamento do prêmio do seguro caso
os dados revelem que ele violou os parâmetros contratuais ou legais
Os supostos incentivos
recebidos (como por exemplo a redução do preço do seguro) se tornam
irrelevantes quando levamos em consideração as consequências em caso de
acidente. Sinto muito, senhor, mas os dados provam inequivocamente que o senhor
estava à 90 Km/hora por hora na rua Fulana de Tal e naquela rua a velocidade
máxima é 50 Km/h conforme a legislação municipal.
Em caso de disputa judicial
com a seguradora, a legislação não obriga o segurado a fazer prova contra sua
própria pretensão. No caso do “não contrato” mencionado por Shoshana Zuboff a
prova contra a pretensão do segurado terá sido pré-constituída. A exatidão dos
dados não deixa qualquer margem para discussão judicial.
O motorista violou o limite de
velocidade porque precisava levar urgentemente a esposa grávida ao Hospital?
Isso é irrelevante. Do ponto de vista jurídico sua obrigação era inexcusável e
não foi a seguradora que engravidou a esposa dele. O outro motorista que causou
a colisão vinha na contramão numa rua de mão única? Desculpe-me senhor
segurado, mas o comportamento do terceiro não é suficiente para eliminar a
conclusão de que o senhor mesmo infringiu a legislação. A seguradora não pode
ser obrigada a indenizar o dano causado pelo terceiro nesse caso.
Se o acidente resultar em
lesão corporal ou em morte, o problema jurídico será ainda maior. A
Constituição da República garante diversos princípios que funcionam como
limites do poder estatal de impor punições. Um deles é o princípio da presunção
de inocência, outro é o do réu não ser obrigado a produzir prova contra si
mesmo.
Suponhamos que no dia do
acidente o veículo do réu estava sendo remotamente monitorado por múltiplos
sensores que enviaram informações ao servidor da montadora, da seguradora ou de
uma empresa qualquer. O excedente comportamental do motorista poderia ser
utilizado como meio de prova? Qual seria o alcance dessa prova? As informações
do GPS e de outros sensores podem, por exemplo, colocar o carro no local do
acidente sendo conduzido na contramão ou sendo conduzido na mão certa em
velocidade inadequada. Mas nada disso colocaria necessariamente o réu na
direção do veículo.
Vamos agora complicar um pouco
a situação. Suponha que entre os dados expropriados por sensores do carro estão
as imagens e/ou as conversas dos ocupantes mas a empresa não tenha autorização
para fazer capturar e armazenar essas informações. Elas poderiam ser relevantes
para a solução do processo. Todavia, como elas poderiam ser consideradas provas
lícitas se foram as informações foram obtidas de maneira ilícita por um
capitalista da vigilância que abusou do poder que tinha em relação ao usuário
do seu produto? Se tivesse autorização para expropriar as informações e elas
confirmarem que o réu realmente estava dirigindo o veículo cometendo uma grave
infração de trânsito isso equivaleria a uma confissão do crime?
Os limites da confissão no
processo penal brasileiro são bem conhecidos:
Leia também: O capitalismo de vigilância no paraíso da
ausência de Lei, por Fábio de Oliveira Ribeiro
“…Se o réu confessa o fato,
isso é suficiente no processo civil para tornar incontroversa a afirmação de
que ele existe na forma como alegada pela parte contrária (CPC, art. 374, II).
No processo penal, se o réu confessa o fato, isso não é suficiente para afirmar
sua existência e, assim, fundar uma condenação, em face do princípio da
presunção de inocência, que tem que ser preservado como interesse público pelo
Estado.” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant lo
Blanch, São Paulo, p. 24)
“… uma confissão proferida
fora dos autos não é válida, a não ser que for confirmada em juízo em todos os
seus termos…” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant
lo Blanch, São Paulo, p. 27)
De qualquer maneira, essas são
tecnicalidades que dizem respeito apenas às consequências derivadas do próprio
uso do carro e do excedente comportamental expropriado de seu proprietário.
Existem outras questões que merecem ser consideradas.
Como enquadrar juridicamente a
ação furtiva dos capitalistas de vigilância que instalam múltiplos sensores
ocultos para, por exemplo, capturar as imagens e as conversas dos usuários do
veículo ou para expropriar dados dos Smartphones das pessoas que entram nele? O
Código de Defesa do Consumidor poderá ser aplicado à lide se o consumidor tiver
inadvertidamente dado autorização para a violação de sua intimidade?
As relações entre terceiros e
o proprietário do carro podem ser facilmente resolvidas recorrendo-se ao Código
Civil. Mas aquelas que derivam da ação furtiva do capitalista de vigilância em
relação ao passageiro, autorizada pelo dono do veículo, pode gerar muita
discussão jurídica. Não teria a vítima renunciado à privacidade ao entrar num
veículo sabendo que ele estava equipado com recursos tecnológicos potencialmente
invasivos?
A assimetria que existe entre
os capitalistas da vigilância e os consumidores dos novos produtos que eles
fabricam e/ou utilizam para expropriar excedente comportamental realmente
possibilita discussões desta natureza no Poder Judiciário? No próximo texto
desta série essa questão será objeto de discussão.
A modernidade é muito
sedutora, mas nem sempre foi capaz de seduzir todo mundo. Em meados de 1992 ou
1993, por causa de minha profissão, tive a oportunidade de conhecer dois
sindicalistas alemães. Eles vieram ao Brasil para uma série de atividades e
ficaram hospedados na casa de um diretor do Sindicato que eu trabalhava.
Durante a estadia deles em Osasco SP, tive a oportunidade de conversar com
ambos várias vezes através de um intérprete.
Os dois utilizavam
computadores. Um deles estranhou o fato do Sindicato ter apenas uma máquina de
escrever eletrônica à sua disposição. Contei a ele que meu escritório
particular já era informatizado. Isso é muito bom, disse ele.
O mais velho, na faixa etária
de uns 50 anos, era adepto de novas tecnologias veiculares. O carro dele na
época já tinha equipamentos que ainda não existiam no Brasil. O mais novo, na
faixa etária de 40 anos, preferia carros antigos sem qualquer tipo de inovação
tecnológica. A internet estava engatinhando no Brasil no início dos anos 1990.
Na Alemanha ela já era uma realidade.
Não sei dizer como ambos estão
reagindo às novidades automotivas impostas pelo capitalismo de vigilância. Mas
tenho certeza de que preocupação com privacidade é maior na Europa do que no
Brasil. Nossa vulnerabilidade cultural às novidades impostas pelo capitalismo
de vigilância é muito grande. É por isso que comecei esta série de textos sobre
o livro de Shoshana Zuboff.
As novas armadilhas criadas
pelo capitalismo de vigilância
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Antes de discutir os detalhes
da invasão que o capitalismo de vigilância promove nas casas e nos corpos das
pessoas, precisamos falar sobre dois conceitos importantes debatidos por
Shoshana Zuvoff: inevitabilidade e capitulação.
“A senior systems architect laid out the imperative in the clearest
terms: ‘The IoT [Internet of Things] is inevitable like getting to the Pacif
Ocean was inevitable. It’s manifest destiny. Ninety-eitgt percent of the things
in the world are not conected. So we’re gonna connect them. It could be a
moisture temperature that sits in the ground. It coud be your liver. That’s
your IoT. The next step is what we do with the data. We’ll visualize it, make
sense of it, and monetize it. That’s our IoT.” (The Age of Surveillance
Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 225)
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Tradução:
“Um arquiteto de sistemas
sênior estabeleceu o imperativo [da inevitabilidade] nos termos mais claros: ‘A
IoT [Internet das Coisas] é inevitável, como era inevitável chegar ao Oceano
Pacífico. É um destino manifesto. Noventa e oito por cento das coisas no mundo
não estão conectadas. Então, nós vamos conectá-los. Pode ser uma temperatura de
umidade que fica no chão. Poderia ser o seu fígado. Essa é a sua IoT. O próximo
passo é o que fazemos com os dados. Vamos visualizá-lo, entendê-lo e gerar
receita. Essa é a nossa IoT.”
Em razão do poder tecnológico,
comercial e politico que conquistaram, os capitalistas de vigilância estão em
condição de transformar o imperativo de extração numa dinâmica social que não
pode ser freada. A expropriação de excedente comportamental avança em todas as
direções, quer porque inexiste regulamentação legal, quer porque os
capitalistas da vigilância tem condições econômicas de combater inovações
legislativas que visem garantir a privacidade ou obrigá-los a pagar pelas novas
informações que eles desejam obter gratuitamente.
Os novos produtos colocados no
mercado (camas, brinquedos, geladeiras, aspiradores de pó robotizados, escovas
de dente, garrafas de bebidas alcoólicas etc…) contém sensores, câmeras e
dispositivos capazes de coletar informações e enviá-los ao fabricante. Alguns
desses produtos fazem isso sem autorização do comprador. Outros agem
furtivamente apesar do comprador não ter autorizado. Equipamentos eletrônicos
mais sofisticados (termostatos e centrais de segurança caseiros, assistentes
virtuais, etc…) não funcionam adequadamente se o comprador não autorizar a
expropriação de dados.
Em virtude de disposições
contratuais raramente lidas pelos compradores desses produtos, as informações
obtidas podem ser utilizadas livremente por quem adquirir a custódia delas. De
fato, não raro essas informações podem até mesmo ser vendidas para terceiros
interessados em utilizá-las para seus próprios propósitos lucrativos. Não há
escapatória, a nova modalidade econômica se impõe obrigando os cidadãos a
capitular de uma maneira ou de outra ao ‘inevitável’ imperativo de expropriação
gratuita de excedente comportamental.
O sucesso do conceito de
capitulação está intimamente ligado ao de ausência de regulamentação e ao de
inevitabilidade.
“Surveillance capitalism’s rendition practices overwhelm any sensible
discussion of ‘opt in’ and ‘opt out’. There are no more leaves. The euphemism
of consent can no longer divert attention from the bare facts: under
surveillance capitalism, rendition is typically unauthorized, unilateral,
gluttonous, secret, and blazen. These characteristics summarize the asymmetries
of power that put the ‘surveillance’ in surveillance capitalism. They also
highlight a harsh truth: it is difficult to be where rendition is not. As
industries far beyond the technology sector are lured by surveillance profits,
the ferocity of the race to find and render experiencie as data has turned
rendition into a global projetct of surveillance capital.” (The Age of
Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p.
241)
Tradução:
“As práticas de capitulação do
capitalismo de vigilância superam qualquer discussão sensata sobre ‘optar por
participar’ e ‘optar por não participar’. Não há mais saídas. O eufemismo do
consentimento não pode mais desviar a atenção dos fatos: sob o capitalismo de
vigilância, a entrega é tipicamente não autorizada, unilateral, gulosa, secreta
e ardente. Essas características resumem as assimetrias de poder que colocam a
‘vigilância’ no capitalismo de vigilância. Eles também destacam uma verdade
dura: é difícil estar onde a capitulação não existe. À medida que indústrias
muito além do setor de tecnologia são atraídas pelos lucros da vigilância, a
ferocidade da corrida em encontrar e tornar a experiência à medida que os dados
transformaram a renderização em um projeto global de capital de vigilância. ”
Leia também: A denúncia de Paulo Marinho e a anulação das
eleições, por Wilton Cardoso
O que os capitalistas de
vigilância querem? Eles querem absolutamente tudo que diz respeito a você.
“Today our homes are in surveillance capitalism’s crosshairs, as
competitors chased a $ 14,7 billion market for smart-home devices in 2017, up
from $6,8 billion just a year earlier and expected o reach more than $101
billion by 2021. You may have already encontered some of the early absurdities:
smart toothbrushes, smart lighbulbs, smart coffee mugs, smart ovens, smart
juicers, and smart utensils said to improve your digestion. Others are often
more grim: a home security camera with facial recognition; an alarm system thar
monitors unusual vibrations before a break-in occurs; indoor GPS locators; sensors
that attach to any objetct to analyze movement, temperature, and other
variables; every kind of connected applience; cyborg cockroaches designed to
detect sound. Even the baby’s nursery is reconceived as a source of fresh
behavioral surplus.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff,
PublicAffairs, New York, 2019, p. 239)
Tradução:
“Hoje, nossas casas estão na
mira do capitalismo de vigilância, pois os concorrentes perseguiram um mercado
de US $ 14,7 bilhões em dispositivos de casa inteligente em 2017, acima dos US
$ 6,8 bilhões do ano anterior e esperaram atingir mais de US $ 101 bilhões até
2021. Você pode já ter encontrado alguns dos primeiros absurdos: escovas de
dentes inteligentes, lâmpadas inteligentes, canecas de café inteligentes, fornos
inteligentes, espremedores de suco inteligentes e utensílios inteligentes que
melhoram sua digestão. Outros costumam ser mais sombrios: uma câmera de
segurança doméstica com reconhecimento facial; um sistema de alarme que
monitora vibrações incomuns antes que ocorra uma invasão; localizadores GPS
internos; sensores acoplados a qualquer objeto para analisar movimento,
temperatura e outras variáveis; todo tipo de utilidade conectada; baratas
ciborgues projetadas para detectar som. Até o berçário do bebê é reconcebido
como uma nova fonte de excedente comportamental.”
Segundo Shoshana Zuboff os
capitalistas da vigilância não querem apenas reduzir todas as suas atividades
diárias em informações que podem ser expropriadas para fins lucrativos. Na
verdade eles querem inclusive e principalmente o seu próprio corpo. O GPS do
seu celular que usa Android, acionado ou não, fornece ao Google todas as
informações acerca dos seus hábitos de deslocamento. Aplicativos que
supostamente visam melhorar sua performance ao fazer exercícios podem
expropriar e enviar aos criadores deles (ou a terceiros com quem eles mantém
negócios) informações pessoais do seu Smartphone que não tem absolutamente nada
a ver com suas atividades esportivas. Isso é feito sem o seu conhecimento ou autorização
ou apesar de você ter optado pelo não compartilhamento de dados. Algo
semelhante já ocorreu caso de alguns aplicativos médicos.
“There are many new
territories of body rendition: organs, blood, eyes, brain waves, faces, gait,
posure. Each
of these expresses the same patterns and purpose that we have seen here. The
surveillance capitalists relentlessly fight any attempts to constrain
rendition. The ferocity with which they claim ther ‘right to rendition’ out of
thin air is ample evidence of its foundational importance in the pursuit of
surveillance revenues.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff,
PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)
Tradução:
“Existem muitos novos
territórios de representação corporal: órgãos, sangue, olhos, ondas cerebrais,
rostos, marcha, postura. Cada um deles expressa os mesmos padrões e propósitos
que vimos aqui. Os capitalistas da vigilância combatem incansavelmente qualquer
tentativa de restringir a capitulação [em relação aos dados biométricos]. A
ferocidade com que afirmam ter o direito de renderizar do nada é uma evidência
ampla de sua importância fundamental na busca de receitas de vigilância.”
Leia também: À TV Globo. O azar do Moro é que o juiz do
XVIDEO não será ele, por Armando Coelho Neto
Especialistas que pesquisaram
esses produtos inovadores descobriram que as informações coletadas através
deles podem ser hackeadas. Os fabricantes não dão garantia de sigilo, quando
fazem isso a garantia é irrelevante. As únicas coisas que os capitalistas da vigilância
guardam a sete chaves são os segredos tecnológicos que garantem os lucros deles
mediante a expropriação de excedente comportamental.
Como vimos no texto anterior
desta série
https://jornalggn.com.br/artigos/um-direito-indiscutivel-de-monitorar-todos-o-tempo-todo/,
os reflexos dos imperativos de inevitabilidade e capitulação do capitalismo de
vigilância já se fazem sentir na esfera do Direito. A ferocidade com que os
capitalistas da vigilância defendem seu privilégio de conquistar novos
territórios dentro das nossas casas e corpos somente é possível em razão da
inexistência de regulamentação legal ou da existência de leis ambíguas que
permitem a eles fazer o que eles querem quando eles querem da maneira que eles
bem entenderem para expropriar excesso comportamental gratuitamente com fins
lucrativos.
“This ferocity is well illustrated in surveillance capitalist’s
determination to discourage, eliminate, or weaken any laws governing the
rendition of biometric information, especially facial recognition. Because
there is no federal law in the US that regulates facial recognition, these
battles occur ate the state level. Currently, the Illinois Biometric Privacy
Act offers the most comprehensive legal protections, requiring companies to
obtain written consent before collecting biometric information from any
individual and, among other stipulationsm granting individual the right to sue
a company for unauthorized rendition.
The Center for Public Integrity, along with journalists, privacy
advocates, and legal scholars, has documented the active opposition of
surveillance capitalists to the Illinois law and similar legislative proposals
in other states. With its unique competitive advantages in facial recognition,
Facebook is considered the most uncompromising of all tech companies when it
comes to biometric data, described as ‘working feverishly to prevent other
states from enacting a law like the one of Illinois.’” (The Age of Surveillance
Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)
Tradução:
“Essa ferocidade é bem
ilustrada na determinação do capitalista de vigilância em desencorajar,
eliminar ou enfraquecer quaisquer leis que governem a capitulação de
informações biométricas, especialmente o reconhecimento facial. Como não há lei
federal nos EUA que regule o reconhecimento facial, essas batalhas ocorrem no
nível estadual. Atualmente, a Lei de Privacidade Biométrica de Illinois oferece
as proteções legais mais abrangentes, exigindo que as empresas obtenham
consentimento por escrito antes de coletar informações biométricas de qualquer
indivíduo e, entre outras estipulações, concede ao indivíduo o direito de
processar uma empresa por entrega não autorizada.
O Center for Public Integrity,
em conjunto com jornalistas, defensores da privacidade e especialistas em
Direito, documentou a oposição ativa dos capitalistas da vigilância à lei de
Illinois e propostas legislativas similares em outros estados. Com suas
vantagens competitivas únicas no reconhecimento facial, o Facebook é
considerado a mais intransigente de todas as empresas de tecnologia quando se
trata de dados biométricos e descrito como ‘trabalhando febrilmente para
impedir que outros estados decretem uma lei semelhante a de Illinois’”.
Os regimes totalitários dos
anos 1930 também desprezavam a privacidade. Como não tinham capacidade
tecnológica para fazer o que os capitalistas de vigilância tem feito, nazistas
e fascistas construíram um poder absoluto que dependia de uma rede crescente de
informantes. Os objetos produzidos e comercializados com a finalidade de vigiar
os consumidores para garantir a rentabilidade crescente dos capitalistas da
vigilância estão ajudando a criar um pesadelo em que a propaganda pode
perseguir o consumidor onde quer que ele esteja. Shoshana Zuboff nos fornece um
exemplo de como essa tecnologia já está sendo colocada a serviço da polícia.
“… Google represents the vanguard of location-based tracking. A 2016
affidavit from law-enforcement officials seeking a search warrant for a
California bank robber made plain why Google location data are unparalled:
‘Google collects and retains location data from Android-enabled mobile devices.
Google collects this data whenever one of their services is activated and/or
whenever there is an event on the mobile device such as a phone call, text
messages, internet access, or e-mail access.’ The officials on the case
requested location information from Google because it offers far more detail
than even the phone companies can provide. The location systems in Android
combine cell-tower data with GPS, Wi-Fi networks, and other information culled
from photos, videos, and oher sources.: ‘That lets Android pinpoint users to a
single building, rather than a city block.’ In November 2017 Quartz
investigative reporters discovered that since early 2017, Android phones had
been collecting location information by triangulating the nearest cell tower,
even when location information services were disable, no apps were running, and
no carriem SIM card was installed in the pohone. The information was used to
manage Google’s ‘push’ notifications and mesages sent to users on their Android
phones, enabling the company to track ‘whether an individual with Android phone
or running Google apps has ser foot in a specific store, and use that to target
the advertising a user subsequently sees.” (The Age of Surveillance Capitalism,
Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 244)
Leia também: Pobre palavra justiça, relegada às felizes
traças, por Maíra Vasconcelos
Tradução:
“… O Google representa a
vanguarda do rastreamento baseado em localização. Um depoimento de 2016 de
autoridades policiais que requisitaram de um Mandado de Busca contra um ladrão
de bancos da Califórnia esclareceu por que os dados de localização do Google
são inigualáveis: ‘O Google coleta e retém dados de localização de dispositivos
móveis habilitados para Android. O Google coleta esses dados sempre que um de
seus serviços é ativado e/ou sempre que houver um evento no dispositivo móvel,
como uma ligação telefônica, mensagens de texto, acesso à Internet ou acesso a
e-mail.’ Os policiais responsáveis pelo caso solicitaram informações de
localização do Google porque oferece muito mais detalhes do que as empresas de
telefonia podem fornecer. Os sistemas de localização no Android combinam dados
da torre de celular com GPS, redes Wi-Fi e outras informações extraídas de
fotos, vídeos e outras fontes: ‘Isso permite que o Android localize os usuários
em um único edifício, em vez de em um quarteirão’. Em novembro de 2017, os
repórteres investigadores da Quartz descobriram que, desde o início de 2017, os
telefones Android coletavam informações de localização triangulando a torre de
celular mais próxima, mesmo quando os serviços de informações de localização
estavam desativados, nenhum aplicativo estava em execução e nenhum cartão SIM
havia sido instalado no telefone. As informações foram usadas para gerenciar as
notificações e mensagens “push” do Google enviadas aos usuários em seus
telefones Android, permitindo à empresa rastrear ‘se um indivíduo com telefone
Android ou executando aplicativos do Google tem suporte em uma loja específica
e usá-lo para segmentar a publicidade que um usuário verá posteriormente’.”
Não existe escapatória. Todos
nós estamos fadados a alimentar de alguma maneira o apetite crescente de
empresas que expropriam gratuitamente excedente comportamental para auferir
lucros. Parte do faturamento delas provavelmente será reinvestido na criação de
sistemas e produtos ainda mais invasivos, bem como para preservar um sistema
legal que reduza ou elimine a privacidade como princípio jurídico. Impossível
dizer o que ocorrerá quanto todas essas informações forem colocadas a serviço
de um Estado realmente totalitário que resolva localizar e eliminar qualquer
dissidência política.
Você sabe exatamente o que os
aplicativos do seu telefone Android estão fazendo nesse momento? Ok. Quando
dirigida especificamente a você essa pergunta é apenas retórica. Afinal, apenas
os capitalistas de vigilância são capazes de respondê-la, mas eles não farão
isso.
Diálise diária digital
Ou o sanguessuga
digital cotidiano
Necrótese sobre a transfusao cotidiana de dados pessoais às
grandes empresas que retornam como peças publicitárias sobre nós e, até que
enfim, para nós, agora compradores benquistos e recompensados
Como o sistema institucional
não funciona direito em decorrência da desregulamentação desvairada do
neonliberalismo e da manipulação da justiça dominada pela maioria endinheirada,
as grandes empresas tecnológicas da rede social implantaram o chamado Capitalismo
de Vigilância. Ocorre mais ou menos como na diálise peritoneal - o sangue é
filtrado e fluidos excedentes removidos através de um dos filtros naturais do
próprio corpo, a membrana peritoneal. Isto é, eu concordo que retirem meus
excedentes comportamentais para que os cientistas e tecnólogos filtrem tudo e
reenviem pra mim novamente em forma de publicidade – outras empresas se
assenhoram dos dados e mandam seu produto conforme meus desejos confessados
antes e agora reestudados e manipulados maquinalmente, com uma certeza quase
absoluta de que eu aprovei tudo, como queria(m), aliás.
A diálise é um processo
artificial, um processo que é necessário quando os rins não estão funcionando
adequadamente (os rins deixam de
realizar sua função).
No caso da Internet, o
processo é virtual. A sociedade democrática deixa de funcionar adequadamente
para atender aos interesses da maioria, golpes são dados na maior cara de pau
sob o argumento repisado a cada segundo de que todo político é corrupto etc e
tal e o escambau.
Conclusão?
Só faltou incluir o real e a
participação das pessoas na transformação política da sociedade.
.
A
comunidade Walden Two
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