sábado, 26 de setembro de 2020

m direito indiscutível de monitorar todos o tempo todo?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

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O ‘não contrato’ não é um espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas relações desnecessárias.

Por

 Fábio de Oliveira Ribeiro

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26/05/2020

 

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Um direito indiscutível de monitorar todos o tempo todo?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No texto anterior desta série https://jornalggn.com.br/artigos/dark-data-e-a-ilusao-da-eliminacao-total-de-todas-as-incertezas/, vimos como o capitalismo de vigilância começou a migrar para o mundo real através da adesão da indústria automobilística e das seguradoras. Convém agora explorar as estratégias que, segundo Shoshana Zuboff, estão sendo utilizadas para impor o novo modelo aos cidadãos e algumas consequências jurídicas da submissão contratual aos imperativos de predição impostos à economia pelos capitalistas da vigilância.

“Deloitte acknoledges that according to its survey data, most consumers reject telematics on the basis of privacy concerns ad mistrust companies that want monitor their behavior. This relutance can be overcome, the consultants advise, by offering cost savings ‘significant enough’ that people are willing ‘to make the [privacy] trade-off’ in spite of ‘lingering concerns…’ If price inducements don’t work, insurers are counseled to present behavioral monitoring as ‘fun’, ‘interative’, ‘competitive’ and ‘ gratifying’ rewarding drivers for improvements on their past record and ‘relative to the broader policy holder pool’. In this approach, known as ‘gamification’, drivers can be engaged to participate in ‘performance base contests’ and ‘incentive based challenges’.

If all eles fails, insurers are advised to induce a sense of inevitability and helplesness in their customers. Deloitte counsels companies to emphasize ‘the multitude of other technologies already in play to monitor driving’ and that ‘enhanced surveillance and/or geo-location capabilities are part of the world we live in now, for better or worse.”

Behavioral underwriting offers auto insurers cost savings and efficiencies, but it is not the endgame for a revitalized insurance industry. The analytics thar produce targeted advertesing in the online word are repurposed for the real world, laying the foundation for new behavioral future markets that trade in predictions of customer behavior.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 216/217)

Tradução:

“A Deloitte reconhece que, de acordo com os dados da pesquisa, a maioria dos consumidores rejeita a telemática com base em questões de privacidade e desconfia de empresas que desejam monitorar seu comportamento. Essa relutância pode ser superada, aconselham os consultores, oferecendo uma economia de custos “suficientemente significativa” para que as pessoas estejam dispostas a ‘renunciar [á privacidade]’, apesar de ‘preocupações persistentes …’. Se os incentivos de preços não funcionarem, as seguradoras são aconselhadas a apresentar o monitoramento comportamental como ‘motivadores’, ‘gratificantes’, ‘divertidos’, ‘interativos’, ‘competitivos’, premiando os consumidores por melhorias em relação seus registros anteriores e ‘em relação ao conjunto mais amplo de segurados’. Nessa abordagem, conhecida como ‘gamificação’, os motoristas podem ser envolvidos a participar de ‘concursos baseados em desempenho’ e ‘desafios baseados em incentivos’.

Se todas as estratégias falharem, as seguradoras são aconselhadas a induzir uma sensação de inevitabilidade e dificuldade em seus clientes. Deloitte aconselha as empresas a enfatizar ‘a infinidade de outras tecnologias já em jogo para monitorar a direção’ e que ‘recursos aprimorados de vigilância e/ou localização geográfica fazem parte do mundo em que vivemos agora, para melhor ou para pior’.

A subscrição comportamental oferece economia e eficiência aos custos das seguradoras, mas não é o fim do jogo para um setor de seguros revitalizado. As análises que produzem anúncios direcionados na palavra on-line são reaproveitadas para o mundo real, estabelecendo as bases para novos mercados comportamentais futuros que negociam previsões de comportamento do cliente.”

No Brasil essas duas estratégias têm sido precedidas pela introdução de câmeras e sensores de distância nos modelos de carros mais novos. Um amigo meu comprou um carro equipado com esses dispositivos. Em menos de um ano ele foi obrigado a trocar a câmera, pois o suporte da original se rompeu. Ele me disse que o preço pago pela nova câmera foi uma bagatela. A substituição da câmera foi tão fácil que o carro nem precisou ser levado à assistência técnica.

Ele já está se acostumado a utilizar os novos recursos do veículo. Em breve eles se tornarão indispensáveis. O próximo carro novo que meu amigo comprar provavelmente virá com sensores mais modernos que poderão ser conectados ao servidor da montadora ou da seguradora. O revendedor dirá a ele que a novidade não acarretou nenhum acréscimo no preço do veículo. Muito pelo contrário, a utilização dos dados coletados em tempo real do veículo dele poderão ser empregados para, levando em conta o histórico dele, reduzir o custo do seguro. Localização por GPS garantida em caso de furto.

 

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Não sei se meu amigo fará objeções ao monitoramento em tempo real. Se ler os textos dessa série ele ficará preocupado com questões relativas à privacidade? Isso é possível, mas não sei exatamente como ele reagirá. Ele é usuário de internet. Os dois filhos dele tem entre 20 e 30 anos e cresceram num ambiente informatizado gostam de novidades tecnológicas. Se ele não aderir às novidades pode sofrer algum tipo de constrangimento familiar.

Após narrar as estratégias utilizadas para obrigar os consumidores a fornecer cada vez mais excedente comportamental, a Zuboff cita a declaração de um administrador do Google:

“… ‘Because transactions are now computer-mediated we can observe behavior that was previously unobservable and write contratcs on it. This enables transactions that were simply not feasible before’; Varian’s ‘we’ refers to those with privileged access to the shadow text into which behavioral data flow. Our behavior, once unobservable, is declared as free for the taking, theirs to own, and theirs to decide how to use and how to profit from. This includes the production of ‘new contratual forms’ that compel us in ways that would not have been possible but for surveillance capitalist’s original declarations of dispossession.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 218/219)

Tradução:

“…‘Como as transações agora são mediadas por computador, podemos observar um comportamento anteriormente inobservável e escrever contratos com base neles. Isso permite transações que antes não eram possíveis’; O ‘nós’ a que Varian refere-se obviamente àqueles com acesso privilegiado ao texto sombra para o qual os dados comportamentais fluem. Nosso comportamento, que já foi inobservável, é declarado livre para expropriação, a propriedade é deles, o direito de decidir como usar e como lucrar também é deles. Isso inclui a produção de ‘novas formas contratuais’ que nos obrigam de maneiras que não seriam possíveis, mas apenas para reforçar as declarações originais de expropriação feitas pelo capitalista de vigilância.”

Um pouco adiante Shoshana Zuboff faz uma reflexão sobre esses novos contratos:

“…What Varian celebrates here is not a new form of contract but rather a final solution to the enduring uncertainty that is the raison d’être of ‘contract’ as means of ‘private ordering’. In fact, the use of the word contract in Varian’s formulation is a perfect example of the horseless-carriage syndrome. Varian’s formulation is unprecedented and cannot be understood as simply another kind of contract. It is, in fact the annihilation of contract; this invention is better understood as the uncontract.

The uncontract is a feature of the larger complex that is the means of behavioral modification, and it is therefore an essential modality of surveillance capitalism. It contributes to economies of action by leveraging proprietary behavioral surplus to preempt and foreclose action alternatives, thus replacing the indeterminacy of social processes with the determininsm of programmed machine processes. This is not the automation of society, as some might think, but rather the replacement of society with machine action directated by economic imperatives.

The uncontract is not a space of contractual relations but rather a unilateral execution that makes those relations unnecessary. The uncontract desocializes the contract, manufacturing certainty through the substitution of automated procedures for promises, dialogue, shared meaning, problem solving, disput resolution, and trust: the expressions of solidarity and human agency that habe been gradually institutionalized in the notion of ‘contract’ over the course of millennia. The uncontract bypasses all that social work in favor of compulsion, and it does só for the sake of more-lucrative prediction products that approximate observation and therefore guarantee autcomes.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 220/221)

Tradução:

“… O que a Varian celebra aqui não é uma nova forma de contrato, mas uma solução final para a incerteza duradoura que é a razão de ser do ‘contrato’ como meio de ‘interação privada’. De fato, o uso da palavra contrato na formulação de Varian é um exemplo perfeito da síndrome da carruagem sem cavalos. A formulação da Varian é sem precedentes e não pode ser entendida como simplesmente outro tipo de contrato. É, de fato, a aniquilação de contrato; esta invenção é melhor entendida como o ‘não contrato’.

O ‘não contrato’ é uma característica do complexo maior que é o meio de modificação comportamental e, portanto, é uma modalidade essencial do capitalismo de vigilância. Contribui para as economias de ação, alavancando o excedente comportamental de seu proprietário para antecipar e excluir alternativas de ação, substituindo assim a indeterminação dos processos sociais pelo determinismo dos processos da máquina que foram programados. Esta não é a automação da sociedade, como alguns podem pensar, mas a substituição da sociedade pela ação da máquina dirigida por imperativos econômicos.

 

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O ‘não contrato’ não é um espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas relações desnecessárias. O ‘não contrato’ dessocializa o contrato, fabricando certezas através da substituição de procedimentos automatizados por promessas, diálogo, significado compartilhado, resolução de problemas, resolução de disputas e confiança: as expressões de solidariedade e autonomia humana que foram gradualmente institucionalizadas na noção de ‘contrato’ ao longo de milênios. O ‘não contrato’ ignora todo esse trabalho social em favor da compulsão, e o faz pelo bem de produtos de previsão mais lucrativos que aproximam a observação e, portanto, garantem resultados.”

A perspectiva levantada por Shoshana Zuboff fica mais interessante se compararmos um contrato de seguro tradicional com o “não contrato” que possibilita a expropriação gratuita de excedente comportamental que poderá ser utilizado para moldar as ações futuras do consumidor.

Mesmo que seja um contrato padrão de adesão, o contrato de seguro tradicional impõe direitos e deveres mútuos. Isso significa que tanto o segurado quanto a seguradora podem ser punidos se não cumprirem suas obrigações. As obrigações contratuais que extrapolem determinados limites impostos pela legislação podem ser consideradas nulas pelo Judiciário.

O “não contrato” referido pela autora do livro cria direitos para o capitalista de vigilância. Ele poderá extrair todos os dados que forem possíveis, empregá-los da maneira que bem entender e, eventualmente, comercializá-los no mercado de predições com outras empresas que exploram o capitalismo de vigilância.

O consumidor por sua vez, receberá em troca apenas três coisas: a obrigação de agir dentro dos parâmetros estabelecidos, sob pena de punição: desligamento remoto do veículo em caso de falta de pagamento da parcela; rejeição do pagamento do prêmio do seguro caso os dados revelem que ele violou os parâmetros contratuais ou legais

Os supostos incentivos recebidos (como por exemplo a redução do preço do seguro) se tornam irrelevantes quando levamos em consideração as consequências em caso de acidente. Sinto muito, senhor, mas os dados provam inequivocamente que o senhor estava à 90 Km/hora por hora na rua Fulana de Tal e naquela rua a velocidade máxima é 50 Km/h conforme a legislação municipal.

Em caso de disputa judicial com a seguradora, a legislação não obriga o segurado a fazer prova contra sua própria pretensão. No caso do “não contrato” mencionado por Shoshana Zuboff a prova contra a pretensão do segurado terá sido pré-constituída. A exatidão dos dados não deixa qualquer margem para discussão judicial.

O motorista violou o limite de velocidade porque precisava levar urgentemente a esposa grávida ao Hospital? Isso é irrelevante. Do ponto de vista jurídico sua obrigação era inexcusável e não foi a seguradora que engravidou a esposa dele. O outro motorista que causou a colisão vinha na contramão numa rua de mão única? Desculpe-me senhor segurado, mas o comportamento do terceiro não é suficiente para eliminar a conclusão de que o senhor mesmo infringiu a legislação. A seguradora não pode ser obrigada a indenizar o dano causado pelo terceiro nesse caso.

Se o acidente resultar em lesão corporal ou em morte, o problema jurídico será ainda maior. A Constituição da República garante diversos princípios que funcionam como limites do poder estatal de impor punições. Um deles é o princípio da presunção de inocência, outro é o do réu não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Suponhamos que no dia do acidente o veículo do réu estava sendo remotamente monitorado por múltiplos sensores que enviaram informações ao servidor da montadora, da seguradora ou de uma empresa qualquer. O excedente comportamental do motorista poderia ser utilizado como meio de prova? Qual seria o alcance dessa prova? As informações do GPS e de outros sensores podem, por exemplo, colocar o carro no local do acidente sendo conduzido na contramão ou sendo conduzido na mão certa em velocidade inadequada. Mas nada disso colocaria necessariamente o réu na direção do veículo.

Vamos agora complicar um pouco a situação. Suponha que entre os dados expropriados por sensores do carro estão as imagens e/ou as conversas dos ocupantes mas a empresa não tenha autorização para fazer capturar e armazenar essas informações. Elas poderiam ser relevantes para a solução do processo. Todavia, como elas poderiam ser consideradas provas lícitas se foram as informações foram obtidas de maneira ilícita por um capitalista da vigilância que abusou do poder que tinha em relação ao usuário do seu produto? Se tivesse autorização para expropriar as informações e elas confirmarem que o réu realmente estava dirigindo o veículo cometendo uma grave infração de trânsito isso equivaleria a uma confissão do crime?

Os limites da confissão no processo penal brasileiro são bem conhecidos:

 

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“…Se o réu confessa o fato, isso é suficiente no processo civil para tornar incontroversa a afirmação de que ele existe na forma como alegada pela parte contrária (CPC, art. 374, II). No processo penal, se o réu confessa o fato, isso não é suficiente para afirmar sua existência e, assim, fundar uma condenação, em face do princípio da presunção de inocência, que tem que ser preservado como interesse público pelo Estado.” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant lo Blanch, São Paulo, p. 24)

“… uma confissão proferida fora dos autos não é válida, a não ser que for confirmada em juízo em todos os seus termos…” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant lo Blanch, São Paulo, p. 27)

De qualquer maneira, essas são tecnicalidades que dizem respeito apenas às consequências derivadas do próprio uso do carro e do excedente comportamental expropriado de seu proprietário. Existem outras questões que merecem ser consideradas.

Como enquadrar juridicamente a ação furtiva dos capitalistas de vigilância que instalam múltiplos sensores ocultos para, por exemplo, capturar as imagens e as conversas dos usuários do veículo ou para expropriar dados dos Smartphones das pessoas que entram nele? O Código de Defesa do Consumidor poderá ser aplicado à lide se o consumidor tiver inadvertidamente dado autorização para a violação de sua intimidade?

As relações entre terceiros e o proprietário do carro podem ser facilmente resolvidas recorrendo-se ao Código Civil. Mas aquelas que derivam da ação furtiva do capitalista de vigilância em relação ao passageiro, autorizada pelo dono do veículo, pode gerar muita discussão jurídica. Não teria a vítima renunciado à privacidade ao entrar num veículo sabendo que ele estava equipado com recursos tecnológicos potencialmente invasivos?

A assimetria que existe entre os capitalistas da vigilância e os consumidores dos novos produtos que eles fabricam e/ou utilizam para expropriar excedente comportamental realmente possibilita discussões desta natureza no Poder Judiciário? No próximo texto desta série essa questão será objeto de discussão.

A modernidade é muito sedutora, mas nem sempre foi capaz de seduzir todo mundo. Em meados de 1992 ou 1993, por causa de minha profissão, tive a oportunidade de conhecer dois sindicalistas alemães. Eles vieram ao Brasil para uma série de atividades e ficaram hospedados na casa de um diretor do Sindicato que eu trabalhava. Durante a estadia deles em Osasco SP, tive a oportunidade de conversar com ambos várias vezes através de um intérprete.

Os dois utilizavam computadores. Um deles estranhou o fato do Sindicato ter apenas uma máquina de escrever eletrônica à sua disposição. Contei a ele que meu escritório particular já era informatizado. Isso é muito bom, disse ele.

O mais velho, na faixa etária de uns 50 anos, era adepto de novas tecnologias veiculares. O carro dele na época já tinha equipamentos que ainda não existiam no Brasil. O mais novo, na faixa etária de 40 anos, preferia carros antigos sem qualquer tipo de inovação tecnológica. A internet estava engatinhando no Brasil no início dos anos 1990. Na Alemanha ela já era uma realidade.

Não sei dizer como ambos estão reagindo às novidades automotivas impostas pelo capitalismo de vigilância. Mas tenho certeza de que preocupação com privacidade é maior na Europa do que no Brasil. Nossa vulnerabilidade cultural às novidades impostas pelo capitalismo de vigilância é muito grande. É por isso que comecei esta série de textos sobre o livro de Shoshana Zuboff.

 

 

As novas armadilhas criadas pelo capitalismo de vigilância

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Antes de discutir os detalhes da invasão que o capitalismo de vigilância promove nas casas e nos corpos das pessoas, precisamos falar sobre dois conceitos importantes debatidos por Shoshana Zuvoff: inevitabilidade e capitulação.

“A senior systems architect laid out the imperative in the clearest terms: ‘The IoT [Internet of Things] is inevitable like getting to the Pacif Ocean was inevitable. It’s manifest destiny. Ninety-eitgt percent of the things in the world are not conected. So we’re gonna connect them. It could be a moisture temperature that sits in the ground. It coud be your liver. That’s your IoT. The next step is what we do with the data. We’ll visualize it, make sense of it, and monetize it. That’s our IoT.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 225)

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Tradução:

“Um arquiteto de sistemas sênior estabeleceu o imperativo [da inevitabilidade] nos termos mais claros: ‘A IoT [Internet das Coisas] é inevitável, como era inevitável chegar ao Oceano Pacífico. É um destino manifesto. Noventa e oito por cento das coisas no mundo não estão conectadas. Então, nós vamos conectá-los. Pode ser uma temperatura de umidade que fica no chão. Poderia ser o seu fígado. Essa é a sua IoT. O próximo passo é o que fazemos com os dados. Vamos visualizá-lo, entendê-lo e gerar receita. Essa é a nossa IoT.”

Em razão do poder tecnológico, comercial e politico que conquistaram, os capitalistas de vigilância estão em condição de transformar o imperativo de extração numa dinâmica social que não pode ser freada. A expropriação de excedente comportamental avança em todas as direções, quer porque inexiste regulamentação legal, quer porque os capitalistas da vigilância tem condições econômicas de combater inovações legislativas que visem garantir a privacidade ou obrigá-los a pagar pelas novas informações que eles desejam obter gratuitamente.

Os novos produtos colocados no mercado (camas, brinquedos, geladeiras, aspiradores de pó robotizados, escovas de dente, garrafas de bebidas alcoólicas etc…) contém sensores, câmeras e dispositivos capazes de coletar informações e enviá-los ao fabricante. Alguns desses produtos fazem isso sem autorização do comprador. Outros agem furtivamente apesar do comprador não ter autorizado. Equipamentos eletrônicos mais sofisticados (termostatos e centrais de segurança caseiros, assistentes virtuais, etc…) não funcionam adequadamente se o comprador não autorizar a expropriação de dados.

Em virtude de disposições contratuais raramente lidas pelos compradores desses produtos, as informações obtidas podem ser utilizadas livremente por quem adquirir a custódia delas. De fato, não raro essas informações podem até mesmo ser vendidas para terceiros interessados em utilizá-las para seus próprios propósitos lucrativos. Não há escapatória, a nova modalidade econômica se impõe obrigando os cidadãos a capitular de uma maneira ou de outra ao ‘inevitável’ imperativo de expropriação gratuita de excedente comportamental.

O sucesso do conceito de capitulação está intimamente ligado ao de ausência de regulamentação e ao de inevitabilidade.

“Surveillance capitalism’s rendition practices overwhelm any sensible discussion of ‘opt in’ and ‘opt out’. There are no more leaves. The euphemism of consent can no longer divert attention from the bare facts: under surveillance capitalism, rendition is typically unauthorized, unilateral, gluttonous, secret, and blazen. These characteristics summarize the asymmetries of power that put the ‘surveillance’ in surveillance capitalism. They also highlight a harsh truth: it is difficult to be where rendition is not. As industries far beyond the technology sector are lured by surveillance profits, the ferocity of the race to find and render experiencie as data has turned rendition into a global projetct of surveillance capital.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 241)

Tradução:

“As práticas de capitulação do capitalismo de vigilância superam qualquer discussão sensata sobre ‘optar por participar’ e ‘optar por não participar’. Não há mais saídas. O eufemismo do consentimento não pode mais desviar a atenção dos fatos: sob o capitalismo de vigilância, a entrega é tipicamente não autorizada, unilateral, gulosa, secreta e ardente. Essas características resumem as assimetrias de poder que colocam a ‘vigilância’ no capitalismo de vigilância. Eles também destacam uma verdade dura: é difícil estar onde a capitulação não existe. À medida que indústrias muito além do setor de tecnologia são atraídas pelos lucros da vigilância, a ferocidade da corrida em encontrar e tornar a experiência à medida que os dados transformaram a renderização em um projeto global de capital de vigilância. ”

 

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O que os capitalistas de vigilância querem? Eles querem absolutamente tudo que diz respeito a você.

“Today our homes are in surveillance capitalism’s crosshairs, as competitors chased a $ 14,7 billion market for smart-home devices in 2017, up from $6,8 billion just a year earlier and expected o reach more than $101 billion by 2021. You may have already encontered some of the early absurdities: smart toothbrushes, smart lighbulbs, smart coffee mugs, smart ovens, smart juicers, and smart utensils said to improve your digestion. Others are often more grim: a home security camera with facial recognition; an alarm system thar monitors unusual vibrations before a break-in occurs; indoor GPS locators; sensors that attach to any objetct to analyze movement, temperature, and other variables; every kind of connected applience; cyborg cockroaches designed to detect sound. Even the baby’s nursery is reconceived as a source of fresh behavioral surplus.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 239)

Tradução:

“Hoje, nossas casas estão na mira do capitalismo de vigilância, pois os concorrentes perseguiram um mercado de US $ 14,7 bilhões em dispositivos de casa inteligente em 2017, acima dos US $ 6,8 bilhões do ano anterior e esperaram atingir mais de US $ 101 bilhões até 2021. Você pode já ter encontrado alguns dos primeiros absurdos: escovas de dentes inteligentes, lâmpadas inteligentes, canecas de café inteligentes, fornos inteligentes, espremedores de suco inteligentes e utensílios inteligentes que melhoram sua digestão. Outros costumam ser mais sombrios: uma câmera de segurança doméstica com reconhecimento facial; um sistema de alarme que monitora vibrações incomuns antes que ocorra uma invasão; localizadores GPS internos; sensores acoplados a qualquer objeto para analisar movimento, temperatura e outras variáveis; todo tipo de utilidade conectada; baratas ciborgues projetadas para detectar som. Até o berçário do bebê é reconcebido como uma nova fonte de excedente comportamental.”

Segundo Shoshana Zuboff os capitalistas da vigilância não querem apenas reduzir todas as suas atividades diárias em informações que podem ser expropriadas para fins lucrativos. Na verdade eles querem inclusive e principalmente o seu próprio corpo. O GPS do seu celular que usa Android, acionado ou não, fornece ao Google todas as informações acerca dos seus hábitos de deslocamento. Aplicativos que supostamente visam melhorar sua performance ao fazer exercícios podem expropriar e enviar aos criadores deles (ou a terceiros com quem eles mantém negócios) informações pessoais do seu Smartphone que não tem absolutamente nada a ver com suas atividades esportivas. Isso é feito sem o seu conhecimento ou autorização ou apesar de você ter optado pelo não compartilhamento de dados. Algo semelhante já ocorreu caso de alguns aplicativos médicos.

“There are many new territories of body rendition: organs, blood, eyes, brain waves, faces, gait, posure. Each of these expresses the same patterns and purpose that we have seen here. The surveillance capitalists relentlessly fight any attempts to constrain rendition. The ferocity with which they claim ther ‘right to rendition’ out of thin air is ample evidence of its foundational importance in the pursuit of surveillance revenues.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)

Tradução:

“Existem muitos novos territórios de representação corporal: órgãos, sangue, olhos, ondas cerebrais, rostos, marcha, postura. Cada um deles expressa os mesmos padrões e propósitos que vimos aqui. Os capitalistas da vigilância combatem incansavelmente qualquer tentativa de restringir a capitulação [em relação aos dados biométricos]. A ferocidade com que afirmam ter o direito de renderizar do nada é uma evidência ampla de sua importância fundamental na busca de receitas de vigilância.”

 

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Especialistas que pesquisaram esses produtos inovadores descobriram que as informações coletadas através deles podem ser hackeadas. Os fabricantes não dão garantia de sigilo, quando fazem isso a garantia é irrelevante. As únicas coisas que os capitalistas da vigilância guardam a sete chaves são os segredos tecnológicos que garantem os lucros deles mediante a expropriação de excedente comportamental.

Como vimos no texto anterior desta série https://jornalggn.com.br/artigos/um-direito-indiscutivel-de-monitorar-todos-o-tempo-todo/, os reflexos dos imperativos de inevitabilidade e capitulação do capitalismo de vigilância já se fazem sentir na esfera do Direito. A ferocidade com que os capitalistas da vigilância defendem seu privilégio de conquistar novos territórios dentro das nossas casas e corpos somente é possível em razão da inexistência de regulamentação legal ou da existência de leis ambíguas que permitem a eles fazer o que eles querem quando eles querem da maneira que eles bem entenderem para expropriar excesso comportamental gratuitamente com fins lucrativos.

“This ferocity is well illustrated in surveillance capitalist’s determination to discourage, eliminate, or weaken any laws governing the rendition of biometric information, especially facial recognition. Because there is no federal law in the US that regulates facial recognition, these battles occur ate the state level. Currently, the Illinois Biometric Privacy Act offers the most comprehensive legal protections, requiring companies to obtain written consent before collecting biometric information from any individual and, among other stipulationsm granting individual the right to sue a company for unauthorized rendition.

The Center for Public Integrity, along with journalists, privacy advocates, and legal scholars, has documented the active opposition of surveillance capitalists to the Illinois law and similar legislative proposals in other states. With its unique competitive advantages in facial recognition, Facebook is considered the most uncompromising of all tech companies when it comes to biometric data, described as ‘working feverishly to prevent other states from enacting a law like the one of Illinois.’” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)

Tradução:

“Essa ferocidade é bem ilustrada na determinação do capitalista de vigilância em desencorajar, eliminar ou enfraquecer quaisquer leis que governem a capitulação de informações biométricas, especialmente o reconhecimento facial. Como não há lei federal nos EUA que regule o reconhecimento facial, essas batalhas ocorrem no nível estadual. Atualmente, a Lei de Privacidade Biométrica de Illinois oferece as proteções legais mais abrangentes, exigindo que as empresas obtenham consentimento por escrito antes de coletar informações biométricas de qualquer indivíduo e, entre outras estipulações, concede ao indivíduo o direito de processar uma empresa por entrega não autorizada.

O Center for Public Integrity, em conjunto com jornalistas, defensores da privacidade e especialistas em Direito, documentou a oposição ativa dos capitalistas da vigilância à lei de Illinois e propostas legislativas similares em outros estados. Com suas vantagens competitivas únicas no reconhecimento facial, o Facebook é considerado a mais intransigente de todas as empresas de tecnologia quando se trata de dados biométricos e descrito como ‘trabalhando febrilmente para impedir que outros estados decretem uma lei semelhante a de Illinois’”.

Os regimes totalitários dos anos 1930 também desprezavam a privacidade. Como não tinham capacidade tecnológica para fazer o que os capitalistas de vigilância tem feito, nazistas e fascistas construíram um poder absoluto que dependia de uma rede crescente de informantes. Os objetos produzidos e comercializados com a finalidade de vigiar os consumidores para garantir a rentabilidade crescente dos capitalistas da vigilância estão ajudando a criar um pesadelo em que a propaganda pode perseguir o consumidor onde quer que ele esteja. Shoshana Zuboff nos fornece um exemplo de como essa tecnologia já está sendo colocada a serviço da polícia.

“… Google represents the vanguard of location-based tracking. A 2016 affidavit from law-enforcement officials seeking a search warrant for a California bank robber made plain why Google location data are unparalled: ‘Google collects and retains location data from Android-enabled mobile devices. Google collects this data whenever one of their services is activated and/or whenever there is an event on the mobile device such as a phone call, text messages, internet access, or e-mail access.’ The officials on the case requested location information from Google because it offers far more detail than even the phone companies can provide. The location systems in Android combine cell-tower data with GPS, Wi-Fi networks, and other information culled from photos, videos, and oher sources.: ‘That lets Android pinpoint users to a single building, rather than a city block.’ In November 2017 Quartz investigative reporters discovered that since early 2017, Android phones had been collecting location information by triangulating the nearest cell tower, even when location information services were disable, no apps were running, and no carriem SIM card was installed in the pohone. The information was used to manage Google’s ‘push’ notifications and mesages sent to users on their Android phones, enabling the company to track ‘whether an individual with Android phone or running Google apps has ser foot in a specific store, and use that to target the advertising a user subsequently sees.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 244)

 

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Tradução:

“… O Google representa a vanguarda do rastreamento baseado em localização. Um depoimento de 2016 de autoridades policiais que requisitaram de um Mandado de Busca contra um ladrão de bancos da Califórnia esclareceu por que os dados de localização do Google são inigualáveis: ‘O Google coleta e retém dados de localização de dispositivos móveis habilitados para Android. O Google coleta esses dados sempre que um de seus serviços é ativado e/ou sempre que houver um evento no dispositivo móvel, como uma ligação telefônica, mensagens de texto, acesso à Internet ou acesso a e-mail.’ Os policiais responsáveis pelo caso solicitaram informações de localização do Google porque oferece muito mais detalhes do que as empresas de telefonia podem fornecer. Os sistemas de localização no Android combinam dados da torre de celular com GPS, redes Wi-Fi e outras informações extraídas de fotos, vídeos e outras fontes: ‘Isso permite que o Android localize os usuários em um único edifício, em vez de em um quarteirão’. Em novembro de 2017, os repórteres investigadores da Quartz descobriram que, desde o início de 2017, os telefones Android coletavam informações de localização triangulando a torre de celular mais próxima, mesmo quando os serviços de informações de localização estavam desativados, nenhum aplicativo estava em execução e nenhum cartão SIM havia sido instalado no telefone. As informações foram usadas para gerenciar as notificações e mensagens “push” do Google enviadas aos usuários em seus telefones Android, permitindo à empresa rastrear ‘se um indivíduo com telefone Android ou executando aplicativos do Google tem suporte em uma loja específica e usá-lo para segmentar a publicidade que um usuário verá posteriormente’.”

Não existe escapatória. Todos nós estamos fadados a alimentar de alguma maneira o apetite crescente de empresas que expropriam gratuitamente excedente comportamental para auferir lucros. Parte do faturamento delas provavelmente será reinvestido na criação de sistemas e produtos ainda mais invasivos, bem como para preservar um sistema legal que reduza ou elimine a privacidade como princípio jurídico. Impossível dizer o que ocorrerá quanto todas essas informações forem colocadas a serviço de um Estado realmente totalitário que resolva localizar e eliminar qualquer dissidência política.

Você sabe exatamente o que os aplicativos do seu telefone Android estão fazendo nesse momento? Ok. Quando dirigida especificamente a você essa pergunta é apenas retórica. Afinal, apenas os capitalistas de vigilância são capazes de respondê-la, mas eles não farão isso.

Diálise diária digital

Ou o sanguessuga

digital cotidiano 

Necrótese sobre  a transfusao cotidiana de dados pessoais às grandes empresas que retornam como peças publicitárias sobre nós e, até que enfim, para nós, agora compradores benquistos e recompensados

Como o sistema institucional não funciona direito em decorrência da desregulamentação desvairada do neonliberalismo e da manipulação da justiça dominada pela maioria endinheirada, as grandes empresas tecnológicas da rede social implantaram o chamado Capitalismo de Vigilância. Ocorre mais ou menos como na diálise peritoneal - o sangue é filtrado e fluidos excedentes removidos através de um dos filtros naturais do próprio corpo, a membrana peritoneal. Isto é, eu concordo que retirem meus excedentes comportamentais para que os cientistas e tecnólogos filtrem tudo e reenviem pra mim novamente em forma de publicidade – outras empresas se assenhoram dos dados e mandam seu produto conforme meus desejos confessados antes e agora reestudados e manipulados maquinalmente, com uma certeza quase absoluta de que eu aprovei tudo, como queria(m), aliás.

A diálise é um processo artificial, um processo que é necessário quando os rins não estão funcionando adequadamente   (os rins deixam de realizar sua função).

No caso da Internet, o processo é virtual. A sociedade democrática deixa de funcionar adequadamente para atender aos interesses da maioria, golpes são dados na maior cara de pau sob o argumento repisado a cada segundo de que todo político é corrupto etc e tal e o escambau.

        Conclusão?

Só faltou incluir o real e a participação das pessoas na transformação política da sociedade.

 

 

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A

 

 

 

comunidade Walden Two

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