O objetivo final do
capitalismo de vigilância é garantir resultados. Qual seria o reflexo disso nos
setores da economia que, em razão de sua própria natureza, dependem da sorte ou
de circunstâncias intangíveis?
Por
Fábio de Oliveira Ribeiro
-
25/05/2020
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Dark Data e a ilusão da
eliminação total de todas as incertezas, por Fábio de Oliveira Ribeiro
No início da segunda parte do
livro, Shoshana Zuboff traça um panorama do imperativo das predições, da
transformação de tudo em fluxos da dados a serem coletados e transformados em
excedente comportamental para garantir a certeza dos lucros.
Como dissemos no texto
anterior desta série, a lógica do próprio capitalismo [em razão da incerteza e
dos temores que provoca nos empresários e investidores] pode ter dado origem ao
capitalismo de vigilância. Nesse capítulo são evidenciadas as diferenças
qualitativas entre ambos sistemas econômicos.
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“Telematics announce a new day of behavioral control. Now the insurance
company can set specific parameters for driving behavior. Tese can include
anything from fastening the seat belt to rate of speed, idling times, braking
and cornering, aggressive acceleration, harsh braking, excessive hours on the
roud, driving out of state, and entering a restrictec area. These parameters
are translated into algorithms tha continuously monitor, evaluate, and rank the
driver, calculations that translate into real-time rate adjustements.
According to a patent held by Spireon’s top strategist, insureres can
eliminate uncertainty by shaping behavior. The idea is to continuously optimize
the insurance rate based on monitoring the driver’s adherence to behavioral
parameters defined by the insurer. The system translates its behavioral
knowledge into power, assigning credits or imposing punishments on drivers.
Surplus is also translated into prediction products for sale to advertisers.
The system calculates ‘behavioral traits’ for advertisers to target, sending
ads directly to the driver’s phone. A secont patent is even more explicit about
triggers for punitive measures. It identifies a range of algorithms that
activate consequences when the system’s parameters are breached: ‘a violation
algorithm’, ‘a monitoring algorithm’, ‘an adherence algorithm’, ‘a credit
algorithm’. (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff,
PublicAffairs, New York, 2019, p. 215/216)
Tradução:
“A telemática anuncia um novo
dia de controle comportamental. Agora a companhia de seguros pode definir
parâmetros específicos para o comportamento de dirigir. Estes podem incluir
qualquer coisa, desde apertar o cinto de segurança a taxas de velocidade, tempo
de marcha lenta sem carga, frenagem e curvas, aceleração agressiva, frenagem
severa, excesso de horas na estrada, condução fora do estado e entrada em uma
área restrita. Esses parâmetros são traduzidos em algoritmos que monitoram,
avaliam e classificam continuamente o motorista, cálculos que se traduzem em
ajustes de taxa em tempo real.
De acordo com uma patente
mantida pelo principal estrategista de Spireon, os seguros podem eliminar a
incerteza moldando o comportamento. A ideia é otimizar continuamente a taxa de
seguro com base no monitoramento da aderência do motorista aos parâmetros
comportamentais definidos pela seguradora. O sistema traduz seu conhecimento
comportamental em poder, atribuindo créditos ou impondo punições aos
motoristas. O excedente também é traduzido em produtos de previsão para venda
aos anunciantes. O sistema calcula ‘características comportamentais’ para os
anunciantes segmentarem, enviando anúncios diretamente para o telefone do
motorista. Uma segunda patente é ainda mais explícita sobre gatilhos para
medidas punitivas. Ele identifica uma série de algoritmos que ativam
consequências quando os parâmetros do sistema são violados: ‘um algoritmo de
violação’, ‘um algoritmo de monitoramento’, ‘um algoritmo de aderência’, ‘um
algoritmo de crédito’
Uma maravilha, por certo. O
carro poderia ser desligado à distância quando o comprador ou locador deixasse
de pagar a parcela. Um sinal de GPS indicaria o local em que o veículo seria
recuperado a mando do vendedor ou locador. O problema: não existe sistema
computacional totalmente imune à ação maliciosa de hackers. Se a esmagadora
maioria das pessoas se recusar a comprar veículos monitorados, as empresas de
seguro teriam que voltar a utilizar as técnicas tradicionais de avaliação de
risco.
As tecnologias que
possibilitaram essa inovação foram desenvolvidas por um cientista que desejava
monitorar animais selvagens em seus próprios habitats (R. Stuart MacKay) e por
um professor que as aperfeiçoou acreditando que a onisciência tecnológica seria
uma dádiva para a humanidade (Joseph Paradiso). Segundo Shoshana Zuboff os
trabalhos de ambos foram colocados a serviço do imperativo das predições.
“…Competition for surveillance revenues eventualy reachd a point at wich
the volume of surplus became a necessary but insufficient condition for
success. The news threshold was defined by the quality or prediction produtcts.
In the race for higher degrees of certainty, it became clear that the best
predictions would have to approximate observation. The prediction imperative is
the expression or these competitive forces.” (The Age of Surveillance
Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 201)
Tradução:
“… A competição por receitas
de vigilância chegou a um ponto em que o volume excedente se tornou uma
condição necessária, mas insuficiente para o sucesso. O limite de notícias foi
definido pelos produtos de qualidade ou previsão. Na corrida por graus mais
altos de certeza, ficou claro que as melhores previsões teriam que aproximar a
observação. O imperativo da previsão é a expressão dessas forças competitivas
“.
O capitalismo de vigilância
nasceu no ciberespaço e começou a interferir no mundo real maximizando o lucro
das empresas que compram espaço de propaganda customizado. Mas ele não pode ficar
confinado aos dados aleatoriamente produzidos pelos usuários. Não é possível
reduzir sensivelmente as incertezas sem que tudo que existe no mundo real tenha
sido transformado em informações e, depois, expropriado. O fluxo constante e
crescente de excedente comportamental cada vez mais diversificado é essencial
para que possibilitar aos capitalistas de vigilância vender predições sobre o
futuro mais acuradas e modificar o comportamento das pessoas.
Leia também: Salvar vidas? Fora Bolsonaro!, por Carlos
Ocké
“The shift toward economies of scope defines a new set of aims:
behavioral surplus must be vast, but must also be varied. These variantions are
developed along two dimensions. The first is te extension of extraction
opertions from the virtual world into the ‘real’ world, where we actually live
our lives. Surveillance capitalists understood that their future wiealt would
depende upon new supply routes that extend to real lifre on the roads, among
trees, throughout the cities. Extension wants your bloodstream and your bed,
your breakfast conversation, your commute, your run, your refrigerator, your
parking space, your living room.
Economies of scope also proceed along a second dimention: depth. The
drive for economies of scope in the deph dimension is even more audacious. The
idea here is that highly predictive, and therefore highly lucrative, behavioral
surplus would be plumbed from intimate patterns of the self. These supply
operations are aimed at your personality, moods, and emotions, your lies and vulnerabilities.
Every level of intimacy would have to be automacally captured and flattened
into a tidal flow of data points for the factory conveyor belts thar proceed
toward manufactures certainty.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana
Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 201)
Tradução:
“A mudança para economias de
escopo define um novo conjunto de objetivos: o excedente comportamental deve
ser fixo, mas também variado. Essas variações são desenvolvidas em duas
dimensões. A primeira é estender as operações de extração do mundo virtual para
o mundo ‘real’, onde realmente vivemos nossas vidas. Os capitalistas de
vigilância entenderam que suas escolhas futuras dependeriam de novas rotas de
suprimentos que se estendessem a pessoas reais nas estradas, entre árvores,
pelas cidades. A extensão quer sua corrente sanguínea e sua cama, sua conversa
sobre o café da manhã, seu trajeto, sua corrida, sua geladeira, seu espaço de
estacionamento, sua sala de estar.
As economias de escopo também
seguem uma segunda dimensão: profundidade. O impulso para economias de escopo
na dimensão profundidade é ainda mais audacioso. A ideia aqui é que um
superavit comportamental altamente preditivo e, portanto, altamente lucrativo,
seria extraído de padrões íntimos do psique humana. Essas operações de
fornecimento visam a sua personalidade, humor e emoções, suas mentiras e
vulnerabilidades. Todo nível de intimidade teria que ser capturado
automaticamente e achatado em um fluxo corrente de pontos de dados para as
correias transportadoras de fábrica avançarem para a certeza da manufatura.”
No futuro imaginado pelo
capitalismo de vigilância, a queda de uma folha da copa da árvore que existe na
frente do prédio onde eu moro seria uma informação tão valiosa quanto a minha
própria reação emocional à mosca que veio me incomodar quando eu estava tomando
sol e lendo o livro de Shoshana Zuboff. O que alguém poderia me vender? Que
produtos futuros poderiam ser criados com a análise destas informações quando
elas fossem correlacionadas com bilhões de outras produzidas por tudo que
compõe o contexto dos homens de meia idade que vive na periferia de uma cidade
periférica de um país periférico?
“…The aim of this under taking is not to impose behavioral norms, such
as conformity or obedience, but rather to produce behavior that reliably,
definitively, and certainly leads to desired commercial results. The research
director of Gartner, the well-respected business advisory and research firm,
makes the point unambiguously when he observes that mastery of the ‘internet of
things’ will serve as ‘a key enabler in the transformation of business models
from ‘guaranteed levels of performance’ to ‘guaranteed outcomes’ ’.
This is an extraordinary statemet because ther can be no such garantees
in the absence of the power to make it só. This wider complex that we refer to
as the ‘means of behavioral modification’ is the expression of this gathering
power. The prospect of guaranteed outcomes alerts us to the force of the
prediction imperative, which demands thar surveillance capitalists make the
future for the sake of predicting it. Under this regime, ubiquitous computint
is not just a knowing machine; it is an actuating machine designed to produce
more certainty about us and for them.” (The Age of Surveillance Capitalism,
Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 203)
Tradução:
“… O objetivo dessa abordagem
não é impor normas comportamentais, como conformidade ou obediência, mas
produzir um comportamento que de maneira confiável, definitiva e certamente
leve aos resultados comerciais desejados. O diretor de pesquisa da Gartner, a
respeitada firma de consultoria e pesquisa de negócios, argumenta
inequivocamente quando observa que o domínio da ‘internet das coisas’ servirá
como ‘um facilitador essencial na transformação de modelos de negócios a partir
de ‘níveis garantidos de desempenho’ para ‘resultados garantidos ”.
Este é uma afirmação
extraordinária, porque não existe tal garantia na ausência do poder de fazê-lo.
Esse complexo mais amplo que chamamos de ‘meios de modificação comportamental’
é a expressão desse poder de reunião. A perspectiva de resultados garantidos
nos alerta para a força do imperativo da previsão, o que exige que os
capitalistas da vigilância façam o futuro pelo negócio de prever. Sob esse
regime, a computação onipresente não é apenas uma máquina conhecedora; é uma
máquina de atuação projetada para produzir mais certeza sobre nós e para eles.”
À medida que esse fenômeno
ganha corpo e começa a se espalhar para outros ramos de atividade econômica [da
produção de carros com múltiplos sensores conectados ao servidor de computador
que coletará as informações produzidas; das empresas de seguro que empregam
essas informações para definir a taxa de risco específica que cada motorista
representa] o próprio capitalismo sofrerá uma considerável mutação. Com a
eliminação de todos os imprevistos e temores nenhum investimento seria
realizado sem que houvesse qualquer possibilidade de prejuízo. O declínio da
rentabilidade de qualquer atividade econômica deixaria de existir.
Leia também: Judiciarismo e militarismo: A disputa sobre a
herança jacente do Poder Moderador, por Christian Edward Cyril Lynch
O objetivo final do
capitalismo de vigilância é garantir resultados. Qual seria o reflexo disso nos
setores da economia que, em razão de sua própria natureza, dependem da sorte ou
de circunstâncias intangíveis?
Para que realizar um
campeonato de futebol se um algoritmo será capaz de definir previamente quem
será o campeão levando em conta todas as variáveis à disposição? É realmente
possível fazer predições infalíveis a partir da análise de informações sobre a
situação financeira dos clubes qualificação dos treinadores situação dos
estádios, condições climáticas antecipadas para as datas e horários das partidas,
honestidade dos árbitros e bandeirinhas, condicionamento físico e talento dos
atletas?
Se um sistema for capaz de
previsível com exatidão que pintor, escritor, arquiteto, escultor, poeta ou
músico que irá se tornar um sucesso e que obra de arte em particular cativará a
maior quantidade de pessoas qual seria o incentivo para os artistas seguirem
produzindo suas obras ou tentando romper tradições estéticas estabelecidas?
Pode a arte, uma atividade humana com imensas repercussões econômicas que tem
uma característica muito peculiar (a produção de coisas que se tornam
expressivas e valiosas no futuro mesmo quando foram consideradas irrelevantes e
sem valor quando divulgadas) ser submetida às predições baseadas em vastas
coleções de informações analisadas por algoritmos programados para imitar todas
as reaçõe emoções humanas presentes e futuras?
“Unstructured data cannot merge and flow in the new circuits of
liquefied assets bought and sold. They are friction. [Harriet] Green fixes on
the declarative term that simultaneously names the problem and justifies its
solution: dark data. The message we saw honed in the on line world – ‘If you’re
not in the system, you don’t exist’ – is refined for this new phase of
dispossession. Because the apparatus of connected things is intended to be
everything any behavior of human or thing absent from this push for universal
inclusion is dark: menacing, untamed, rebellious, rogue, out of control. The
stubborn expanse of dark data is framed as the enemy of IBM’s and its customers’
ambitions, Note the echoes of McKay here, with his determination to penetrate
the secrets of unrestrained animais and inaccessible regions. The tension is
that no thing counts until it is rendered as behavior, translated into
eletronic data flows, ad channeled into the light as observable data.
Everything must be illuminated for counting and herding.
Is this notion of ‘dark data’ handily becomes he ‘data exaust’ of
ubiquitous computing. It provides the moral, techical, commercial, and legal
rationale for powerful systems of machine intelligence that can capture and
analyze behaviors and conditions never intended for a public life. For those
who seek surbeillance revenues, dark data represent lucrative and necessary
territories in the dynamic universal jigsaw constituted by surveillance
capitalism’s urge towar scale, scop, and action. Thus, the technology comunity
casts dark data as the intolerable ‘unknown unknown’ that threatens the
financial promise of the ‘internet of things.’” (The Age of Surveillance
Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 210/211)
Tradução:
“Dados não estruturados não
podem se fundir e fluir nos novos circuitos de ativos líquidos comprados e
vendidos. Eles são atritos. [Harriet] Green corrige o termo declarativo que
simultaneamente nomeia o problema e justifica sua solução: dados obscuros. A
mensagem que vimos honrada no mundo online – ‘Se você não existe no sistema,
você não existe’ – é refinada para esta nova fase de desapropriação. Como o
aparato das coisas conectadas pretende ser tudo o que qualquer comportamento
humano ou coisa ausente desse impulso pela inclusão universal é sombrio:
ameaçador, indomado, rebelde, desonesto, fora de controle. A extensão teimosa
de dados obscuros é enquadrada como inimiga das ambições da IBM e de seus
clientes, observe os ecos de McKay aqui, com sua determinação de penetrar nos
segredos de animais indomáveis e regiões inacessíveis. A tensão é que nada
conta até que seja traduzido como comportamento, traduzido em fluxos de dados
eletrônicos, e canalizado para a luz como dados observáveis. Tudo deve estar
iluminado para contagem e pastoreio.
Essa noção de ‘dados obscuros’
se torna facilmente ‘dados precisos’ ou computação onipresente. Ele fornece a
lógica moral, técnica, comercial e legal para sistemas poderosos de
inteligência de máquinas que podem capturar e analisar comportamentos e
condições nunca destinados à vida pública. Para aqueles que buscam receitas de
vigilância, os dados obscuros representam territórios lucrativos e necessários
no quebra-cabeças dinâmico universal constituído pela enorme escala, escopo e
ação do capitalismo de vigilância. Assim, a comunidade tecnológica considera os
dados obscuros como algo intolerável o ‘desconhecido desconhecido’ que ameaça a
promessa financeira da ‘internet das coisas’.”
É imensa a sedução de
conquistar um poder absoluto derivado não da força e sim do conhecimento. É
inesgotável a ambição de sempre obter sucesso e nunca correr riscos ou amargar
prejuízos imprevisíveis. O empresário perfeito do futuro [ou seja, aquele que
está em condições de comprar os produtos vendidos pelos capitalistas de
vigilância] poderá sempre tomar decisões certas no momento exato. No mundo que
está nascendo virtuosas não seriam as ações corajosas e sim as decisões
preordenadas por um objetivo garantido por intermédio do conhecimento de fatos
que inevitavelmente ocorrerão.
Leia também: Excedente comportamental, o novo mundo a ser
conquistado e possuído, por Fábio de Oliveira Ribeiro
No início do livro, a autora
adverte o leitor para algo essencial: as inovações introduzidas pelo
capitalismo de vigilância não podem e não devem ser avaliadas através das
experiências passadas. É um erro interpretar o que não tem precedentes levando
em conta os precedentes existentes.
“One explanation for surveillance capitalism’s many triumphs floats
above them all: it is unprecedented. The unprecedente is necessarily
unrecognizable. When we enconter something unprecedented, we automacally
interpret it through the lenses of familiar categories, thereby rendering
invisible precisely that which is unprecedented.” (The Age of Surveillance
Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 12)
Tradução:
“Uma explicação para os muitos
triunfos do capitalismo de vigilância flutua acima de todos: ele é sem
precedentes. O sem precedentes é necessariamente irreconhecível. Quando criamos
algo sem precedentes, nós o interpretamos automaticamente através de lentes de
categorias familiares, tornando invisível exatamente o que é sem precedentes.”
Apesar da eloquência e da
profundidade do trabalho de Shoshana Zuboff confesso que fiquei tentado a fazer
exatamente aquilo que ela não recomenda. A partir de agora farei algumas
considerações a partir de precedentes conhecidos acerca das previsões.
Predições que tentam impedir
que algo ocorra raramente conseguem obter resultado desejado. Essa é a maior
lição de um mito estudado à exaustão por Freud. Se Édipo não tivesse ouvido a
profecia de que mataria o pai e copularia com a mãe a tragédia teria ocorrido?
Se ele tivesse ignorado as palavras do Oráculo a informação que reduziu sua
incerteza teria produzido efeitos indesejados?
Nenhuma empresa jamais será
capaz de sequestrar o próprio futuro. Ele é e continuará sendo sempre incerto.
Segundo Heródoto, quando ouviu
o Oráculo dizer que se ele movesse suas tropas contra os persas um grande
império seria derrotado, o rei Creso acreditou que a destruição do inimigo dele
era certa. A previsão realmente se realizou. Um império realmente foi
destruído: o do próprio rei Creso. Por mais que possa ser considerada exata no
momento em que for proferida uma predição pode ser mal interpretada.
O historiador Caio Suetônio
Tranquilo assegura que Calpúrnia previu a morte de Júlio César através de um
sonho. Ela teria tentado impedir o marido de ir ao Senado. Todavia, Calpúrnia
não foi capaz de prever a habilidade de Décimo Bruto de manipular as emoções de
César para fazê-lo cumprir seus compromissos públicos nos idos de março.
Mesmo quando uma informação
relevante foi obtida através de uma previsão segura um resultado indesejado não
pode ser evitado. A redução da incerteza pode se tornar irrelevante em virtude
de fatores imprevistos e imprevisíveis.
Os romanos criaram um sistema
religioso intrincado que garantia a obtenção de previsões consideradas válidas.
A finalidade dele não era antecipar o futuro através da magia (ou da exploração
do excedente comportamental) e sim consolidar certezas consensuais existentes
ou desejadas (na esfera política), manipular e controlar as emoções dos
cidadãos (em situações de crise) e garantir a autoridade das decisões tomadas
pelo comando (em caso de guerra).
Após as reformas religiosas de
Numa Pompílio as pitonisas e feiticeiras passaram a ter pouco prestígio e
nenhuma influência no destino de Roma. A aquisição dos livros Sibilinos por
Tarquínio o Soberbo, por exemplo, não impediu a queda dele nem evitou o fim da
monarquia romana.
“Non hic herba ualet, non nocturna Cytaeis,
non Perimadea gramina cocta
manu;
quippe ubi nec causas nec apertos
cernimus ictus,
unde tamem ueniant tot mala
caeca uia est;
non eget hic medicis, non lectis mollibus aeger,
huic nullum caeli tempus et
aura nocet:
ambulat – et subito mirantur
funus amici!
Sic est incautum, quidquid
habetur Amor.
Nam cui non ego sum fallaci
praemia uati?
Quae mea non decies somnia uersat anus?”
“De nada valem ervas, Citeide
noturna,
nem mesmo o caldeirão de
Parimede,
pois se não distinguimos as
causas e os golpes,
turva é a via donde vêm os
males.
Não é que falte leito ou
médico ao doente,
nenhum clima nem vento lhe faz
mal:
passeia s súbito se espantam –
está morto!
Seja o que for, Amor é
imprevisível.
E eu não sou presa fácil para
os falsos vates?
As velhinhas não versam os
meus sonhos?”
(Sexti Properti, Elegias,
edição bilíngue, Liber II, 4/7-16, editora autêntica, Belo Horizonte-São Paulo,
tradução Guilherme Gontijo Flores, 2014, p. 98/99)
Roma não precisou coletar
informações sobre tudo e sobre todos para construir um império colossal que
durou séculos. “Agir e sofrer”, essas eram as qualidades tipicamente romanas
segundo Tito Lívio. Os romanos não tinham medo de correr riscos. Os
norte-americanos também eram empreendedores corajosos no final do século XIX
início do século XX.
Ao que parece, a paixão pela
tecnologia tem um subproduto emocional perverso: a amplificação do medo. No
início do século XXI os norte-americanos se tornaram temerosos. Eles querem
resultados garantidos e pagam por previsões cada vez mais acuradas
transformando a democracia num inferno de vigilância privada ostensiva. O que o
capitalismo de vigilância construirá? Uma civilização que vai durar mil anos ou
um império economicamente injusto e politicamente instável que desmantelará
rapidamente em virtude das vastas coleções de informações estarem fadadas a se
corromper e a se transformar em Dark Data?
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