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sexta-feira, 25 de março de 2011

EUA - Hegemonia e Império - José Luís Fiori - CARTAMAIOR -

O passeio da família Obama aos trópicos e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona, na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia - à direita e à esquerda - falar do declínio do poder americano.
José Luís Fiori

O passeio de fim de semana da família Obama ao Brasil passaria à história como um acontecimento turístico carioca e uma gentileza internacional, se não tivesse coincidido com o desastre nuclear do Japão, e com o início do bombardeio aéreo da Líbia. Em particular, porque a decisão dos EUA de atacarem o país norte-africano, foi tomada no território brasileiro, um pouco antes do jantar festivo que o Itamaraty ofereceu à deleção norte-americana. Esta decisão, sobretudo, serviu para relembrar aos mais apressados, que os EUA seguem sendo a única potência mundial com “direito” de decidir - onde e quando quiser – e com a capacidade de fazer intervenções militares imediatas, em qualquer conflito, ao redor do mundo. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia - à direita e à esquerda - falar do declínio do poder americano, enquanto se acumulam as evidências no sentido contrário.

Depois de 1991, e em particular depois do fim da URSS, a Europa deixou de ser o centro de gravidade do sistema internacional, que passou para o outro lado do Atlântico. E ao mesmo tempo, os EUA se transformaram na “cabeça” de um novo tipo de “poder global”. Um império que não é colonial, não tem estrutura formal, e que possui fronteiras flexíveis, que são definidas em cada caso, em última instância, pelo poder naval e financeiro dos EUA E desde o início do século XXI, os EUA estão enfrentando as contradições, os problemas, e as trepidações produzidas por esta transição e esta mudança de status: da condição de uma “potência hegemônica”, restrita ao mundo capitalista, até a década de 1980, para a condição de “potência imperial global”. Hoje, é impossível prever como será administrado este novo tipo de Império, no futuro. Porque ele segue sendo nacional e terá que terá que conviver, ao mesmo tempo, com cerca de outros duzentos estados que são ou se consideram soberanos. E além disto, porque dentro deste sistema, a expansão do poder americano é a principal responsável pela multiplicação dos seus concorrentes, na luta pelas hegemonias regionais, dentro do sistema mundia.

O que está se assistindo, neste momento, é uma mudança na administração do poder global dos EUA. Este processo está em pleno curso, mas será longo e complicado, envolvendo divisões e lutas dentro e fora da sociedade e do establishment norte-americano. Mesmo assim, o mais provável é que ao final deste processo, os EUA adotem uma posição cada vez mais distante e “arbitral” com relação aos seus antigos sócios, e em todas as regiões geopolíticas do mundo. Estimulando as divisões internas e os “equilíbrios regionais” de poder, jogando os seus próprios aliados, uns contra os outros, e só intervindo diretamente em última instancia, segundo o modelo clássico do Império Britânico.

Este novo tipo de poder imperial dos EUA não exclui a possibilidade de guerras, ou de fracassos militares localizados, como no Iraque ou Afeganistão, nem a possibilidade de crises financeiras, como a de 2008. Estas crises financeiras não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema. E as guerras ou fracassos militares localizado seguirão sem importância enquanto não ameaçarem a supremacia naval dos EUA em todos os oceanos e mares do mundo, e enquanto não escalarem na direção de uma “guerra hegemônica” capaz de atingir a supremacia militar norte-americana.

De qualquer forma, é óbvio que este novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes concorrentes, e desestabiliza e destrói os “equilíbrios” e as instituições, criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de “coalizões de poder” regionais que acabarão desmembrando aos poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o Império Romano. Por outro lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação capitalista e transformou a China numa economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova geo-economia internacional, intensifica a competição capitalista, e já deu início à uma “corrida imperialista”, cada vez intensa na África e na América do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre as Grandes Potências. Além disso, o poder imperial americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória do seu império, é absolutamente incompatível com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, ao contrário do que sonha uma boa parte da sociedade norte-americana.

De qualquer maneira, o passeio da família Obama aos trópicos e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império.



José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
caroni
A Líbia e o DJ do Império
Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.
Gilson Caroni Filho

Ao começar a ofensiva militar contra a Líbia, as potências mundiais referendaram a nova estratégia estadunidense de manutenção de hegemonia global. Hoje é improvável que a Casa Branca queira se envolver diretamente em novo confronto militar. Talvez nem precise. Pouco a pouco, os Estados Unidos vêm conseguindo o aumento da cooperação internacional para alcançar seus objetivos geopolíticos. Sem os riscos de isolamento que marcaram a agressão imperialista ao Iraque e Afeganistão, a ação bélica no país árabe é amparada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Os sonhos de um mundo multipolar sofrem um desvio histórico de tal monta que não é exagero atentarmos para uma perspectiva internacional de extrema gravidade.

Nos anos 1920, os norte-americanos dançavam o “charleston” e diziam que eram "os anos loucos", enquanto nas ruas de Chicago, gangsteres italianos e irlandeses se enfrentavam à bala. Na Líbia, o guerrilheiro Omar al-Muktar, o "leão do deserto", lutava contra o fascismo italiano e, na Nicarágua, Augusto Sandino, o "general dos homens livres", combatia os marines do capitão Frederick Hatsfield. Muktar foi enforcado em 1931 e Sandino fuzilado em 1934. O “terrorismo” estava sendo contido.

Mais de meio século depois, Líbia e Nicarágua foram associadas por algo mais do que aquelas gestas antiimperialistas, quase simultâneas. O artífice dessa ligação foi o então presidente Ronald Reagan para quem Muamar Kadafi era o "cão raivoso" do Oriente Médio e o comandante Daniel Ortega "um capanga com os olhos de figurinista".

Em 14 de abril de 1986 foi realizado um ataque norte-americano a Trípoli, Bengazi e a outras três cidades por 18 bombardeios que levantaram vôo de bases na Grã-Bretanha, e 15 caças estacionados em porta-aviões pertencentes à 6ª Frota dos Estados Unidos no mar Mediterrâneo. A operação foi justificada como uma retaliação a um atentado em 5 de abril, em uma discoteca alemã, que teria matado 4 pessoas, deixando um saldo de 200 feridos. Na época, como sempre, Washington alegou possuir provas “irrefutáveis" da participação de terroristas líbios no atentado, ainda que não tivesse apresentado nenhuma.

Simultaneamente, a CIA, com o apoio da imprensa centro-americana, difundia a existência de comandos árabes realizando ações terroristas em território hondurenho, a partir de bases cedidas pelo governo sandinista. Como destacou o sociólogo Roberto Bardini, “ao tomarem conhecimento da alarmista campanha da mídia e da adoção de fortes e ostensivas medidas de segurança em Honduras, alguns observadores calcularam que tudo não passava de uma operação psicológica que teria quatro objetivos: justificar represálias militares contra a Líbia, demonstrar que a Nicarágua emprestava seu território para exportar o terrorismo, comprovar a existência de uma conexão Trípoli-Manágua. e, principalmente, conseguir que o Congresso aprovasse a destinação de US$ 100 milhões aos "contras".”

O que Reagan conseguiu com a agressão à Líbia? Um isolamento internacional sem precedentes. Ficou reduzido ao apoio da então primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, e do governo israelense. Desde a guerra do Vietnã jamais se tinha presenciado uma onda tão forte de hostilidade aos Estados Unidos. Definitivamente, o pop dos anos 80 não tinha o mesmo poder de encantamento do charleston.

Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.

O Império é criterioso quando se trata de resgatar o que lhe parece ser seu fundo de quintal. A tentativa de modificar a nova ordem política da América Latina é o que move os passos de Obama na região. Transformar assimetrias em impossibilidades e mudar o perfil da política externa brasileira são os imperativos da vez.

Ao declarar que "nosso consenso foi forte e nossa decisão é clara. O povo da Líbia precisa ser protegido e, na ausência de um fim imediato à violência contra civis, nossa coalizão está preparada para agir e agir com urgência", o presidente dos Estados Unidos deixa evidente que, em nome do “hegemon”, está pronto para misturar sem dó nem piedade o hit radiofônico “Closer”, do “rapper Ne-yo”, com um “mash-up” tribal da Madonna para "Miles away". Espera-se que a pista, quase sempre lotada de ingênuos ou servis, repila com veemência os apelos do "DJ" do império.

Lula acertou na mosca. Não é muito difícil adivinhar quem veio para o almoço.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

ditadura - Caroni: A tortura na quadratura do círculo

viomundo

por Gilson Caroni Filho

Ao decidir condenar o Estado brasileiro por não ter investigado crimes contra a ditadura Militar, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA voltou a tocar na maior ferida da transição pactuada nos anos 1980. Trata-se do “toma lá da cá” costurado pela Aliança Democrática e as Forças Armadas, no qual a Nova República seria velha o suficiente para não escarafunchar o passado – sobretudo o passado de militares – e seu envolvimento em torturas, mortes e desaparecimento dos oponentes daquele regime. Da política de conciliação que pouco concilia, mas muito compromete, ainda não conseguimos nos desvencilhar a contento, apesar dos incontestáveis avanços nos dois governos de Lula.

Foram inúmeras as ocasiões em que, sempre que se buscou retomar o tema, a balança dos acordos recíprocos não se moveu. Afinal a Lei da Anistia, de agosto de 1979, sempre foi a ponta da meada com que se teceu, posteriormente, o acordo dos antigos com os novos governantes. Até hoje sucessivas gerações tateiam no espaço público à procura de sinais que lhe permitam encontrar respostas para suas múltiplas interrogações. A de maior centralidade seria a que indaga se é possível consolidarmos um regime democrático sem que, em todos os níveis e sob todas as suas formas, seus princípios se realizem para todos.

Os defensores da tese de que governos democráticos podem e devem rever instrumentos legais herdados de um regime de força, muitas vezes, seguem um caminho moral e outro, jurídico. Moralmente, ao entenderem que torturadores devam se sentar no banco dos réus, tentam impedir que novos crimes dessa natureza venham a ser cometidos no futuro. Já do ponto de vista jurídico, a própria lei possibilita uma interpretação que permite satisfazer às exigências do sistema interamericano.

Ao introduzir o princípio da conexidade, que fixa que à anistia concedida a um preso político corresponde o perdão ao seu eventual algoz, o regime militar acabou colocando a si mesmo em uma situação paradoxal. Como explicou em diversas oportunidades o advogado Luiz Eduardo Greenhalg ”o dispositivo inicialmente não beneficiava os envolvidos em seqüestros, atentados pessoais ou crimes de sangue. Ao não anistiar essas pessoas, a lei, pelo seu fundamento de conexidade, também não pode conceder anistia a quem os tenha torturado”. Ou seja, ao contrário do entendimento recente do STF, nem todos os militares envolvidos na repressão estavam anistiados. Mas a questão é mais esdrúxula do que parece.

Um exercício de lógica elementar é o suficiente para pôr abaixo a “criativa” construção jurídica dos porões. Alguém que tenha cometido um crime político de opinião, anistiável pelos preceitos legais da ditadura, e tenha sido torturado precisaria ter, então, do outro lado da linha de conexão, a figura do torturador para que ele também fosse anistiado. Como o regime militar nunca reconheceu a existência de torturadores, a conexão deixaria de existir e a tortura ficaria no campo do crime comum – no qual nunca houve e não há Lei da Anistia.

O novo ciclo que se inicia com a presidente Dilma precisa aprofundar a questão da inviolabilidade dos direitos humanos. O entulho autoritário, no Brasil, apenas cresceu durante a longa noite dos generais. Suas raízes, no entanto, são seculares, fincadas fundas nas estruturas coloniais, escravistas e aristocráticas, herdadas ao longo de uma história em que o único fenômeno permanente foi o uso prepotente, e quase sempre inepto, do poder.

As mudanças estruturais forjadas nos últimos anos já não contemplam uma história fechada na quadratura do círculo que a direita levianamente insinua como realista e sensata. Foi para romper com esse cenário que ganhamos as eleições de Outubro. O paradeiro dos desaparecidos está em fronteiras nítidas. Nelas, independentemente de arranjos internos, crimes como a tortura são imprescritíveis.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Caroni - cartamaior - Jobim: nos tempos de Jango?

Quando disse ao diplomata americano que o ministro Samuel Pinheiro Guimarães “odeia os Estados Unidos e trabalha para criar problemas na relação entre Brasília e Washington", Nelson Jobim se afigurou como triste personagem de uma geopolítica de vice-reinado.

Gilson Caroni Filho

O professor Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, escreveu, há 11 anos, que: “uma parte do que de importante ocorre no mundo é em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos. E o dilema para a democracia daqui resultante é que os segredos só podem ser conhecidos a posteriori, depois de deixarem de ser, depois de produzirem fatos consumados que escaparam ao controle democrático". Referia-se ele, na época, ao Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), que vinha sendo negociado na surdina, entre os países desenvolvidos da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), por iniciativa dos Estados Unidos e da União Européia, com cinco países observadores, entre eles o Brasil de FHC. Tratava-se de uma carta magna das corporações transnacionais que não deixava aos países da periferia qualquer margem de soberania.

Graças ao vazamento do site Wikileaks, organização que confirma o surgimento de uma nova esfera informativa mundial, os fatos e manobras que permaneciam ocultos, na lúcida observação de Boaventura, se tornaram de conhecimento público, expondo, no caso brasileiro, o tamanho da queda que nos querem impor, ou a que estamos sujeitos.

Os telegramas de Clifford Sobel, ex-embaixador dos EUA no Brasil, dando conta dos serviços prestados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, a um país estrangeiro são emblemáticos. A presença de Jobim no futuro governo pode ter se tornado inviável. Mais do que nunca é importante lembrar a existência de uma relação íntima entre a intensidade da ameaça e a firmeza da resposta. Não há justificativa plausível, nem mesmo na lógica de uma estreita Realpolitik, para a continuação de Jobim à frente da pasta da Defesa. Um pequeno histórico se faz necessário quando mentalidades mórbidas voltam a atacar a soberania nacional, como se fosse praga e empecilho a ser removido.

Ao se abrirem os anos 1960, a diplomacia brasileira, refletindo tanto as novas realidades internacionais quanto a correlação interna das forças sociopolíticas, desenvolveu os seus primeiros esforços no sentido de divorciar-se do caduco alinhamento incondicional ao imperialismo, herança dos tempos da Guerra Fria. Foram dados, então, os passos do que, à época, ficou conhecido como "política externa independente"

O golpe de 1964 interrompeu esse processo. O regime emergente de 1º de abril, medularmente comprometido com o imperialismo estadunidense, acoplou à repressão no interior ("segurança nacional") o reacionarismo na política externa (fronteiras ideológicas). O posicionamento internacional daí resultante só poderia ter sido aquilo que que sabemos: a subserviência mais lamentável aos desígnios do Império - de que permanece, como triste exemplo, a nossa intervenção na República Dominicana, no bojo da sinistra "Força Interamericana de Paz".

Pouco a pouco, todavia, este posicionamento - lesivo à verdadeira soberania nacional, aviltante para uma república soberana - foi sendo ultrapassado pela realidade da vida. Entre as complicações de um mundo cada vez menos definível segundo o maniqueísmo dos “blocos" e as contradições do desenvolvimento das forças produtivas no país, a concepção das "fronteiras ideológicas" passou, de fato, à categoria de figura de retórica. Especialmente a partir dos primeiros anos da década de 70, os governos militares foram compelidos a descolar-se do jogo internacional do imperialismo.

E sempre que o fizeram, conflitando com sua política interna e com seu próprio discurso global, marcaram posições progressistas que lhes valeram significativos créditos entre a comunidade das nações. Basta pensar na postura brasileira em face da luta de libertação dos povos africanos, diante da Organização para Libertação da Palestina (OLP) e em relação às Malvinas.

A importância deste descolamento, conduzido consequentemente após a redemocratização, configurou o perfil que as forças democráticas reclamam para o Brasil: o de um país independente, com uma posição internacional e soberana e autônoma. Este cenário, evidentemente, é função da situação nacional. Somente um regime democrático, como o que temos hoje, assentado na mais ampla participação popular, pode aprofundar as tendências progressistas de nossa política externa. Vale dizer: a luta pela reorganização democrática da sociedade continua sendo conjugada à luta para sistematizar uma inserção internacional que corresponda aos interesses da maioria do nosso povo.

No limiar do futuro, a sociedade brasileira aparenta ser prisioneira do seu passado que, por ainda não ter sido dominado, ameaça se voltar contra ela. Pois é na hora do vôo livre para uma área ainda por construir, porém promissora, que a vontade não pode se distrair na desconfiança de que, mais uma vez, reiteramos antigos erros.

Quando disse ao diplomata americano que o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães, “odeia os Estados Unidos e trabalha para criar problemas na relação entre Brasília e Washington", Nelson Jobim se afigurou como triste personagem de uma geopolítica de vice-reinado.

Por aí, estaríamos condenados a viver em um território estranho à dialética, oscilando mecanicamente entre velhas sístoles e diástoles, vítimas de uma conspiração da nossa própria história. Cabe à presidente eleita avaliar se vale a pena apostar no atual ministro da Defesa. Por seu desempenho nos últimos anos e pelas confidências reveladas pelo site, Jobim está empenhado em uma aventura que lhe permita tomar o passado de assalto, obrigando o país a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível. Seria Jango o seu alvo?



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A doce vitória de Vanda - Gilson Caroni Filho

A vantagem de 12 milhões de votos, que separou Dilma de seu competidor, mostrou, de forma cabal, a irreversibilidade de uma agenda que contemplou desenvolvimento com redistribuição de renda.

"Dirijo-me também aos partidos de oposição e aos setores da sociedade que não estiveram conosco nesta caminhada. Estendo minha mão a eles. De minha parte não haverá discriminação, privilégio ou compadrio". Em seu primeiro discurso como presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff reafirmou a consolidação, junto ao eleitorado, de um projeto republicano. A primeira providência de um vencedor nas urnas é remover os destroços da campanha. A esta altura, não cabe a menor dúvida de que a vantagem de 12 milhões de votos, que a separou de seu competidor, mostrou, de forma cabal, a irreversibilidade de uma agenda que contemplou desenvolvimento com redistribuição de renda.

A sua vitória demonstra a maturidade da sociedade civil brasileira. De nada adiantou o toque de direitismo, com tonalidades protofascistas, da campanha tucana. Os efeitos da eleição presidencial sobre o quadro partidário brasileiro confirmam com clareza um fenômeno já reconhecível há algum tempo: a desagregação do esquema político que deu sustentação aos oito anos de domínio neoliberal.

O encolhimento expressivo das bancadas do PSDB, DEM e PPS é extremamente emblemático. Reflete a rejeição a uma prática conservadora que, em desespero, açulou o que havia de mais primitivo no imaginário social, com o objetivo de estabelecer uma plataforma calcada no retrocesso cego. Porém, ao mesmo tempo em que levou as forças reacionárias ao paroxismo, a oposição, involuntariamente, construiu uma unidade de pensamento que aglutinou expressivos setores da sociedade organizada a se aliarem em torno da aspiração da continuidade de mudanças profundas nas estruturas que, por muito tempo, sustentaram uma ordem social autoritária e excludente.

Por não estar em sintonia com o tempo político, incapaz de esmaecer suas indefinições internas, o núcleo duro do tucanato vive um momento de desestruturação que exigirá um esforço imenso para manter até mesmo a imagem unívoca de partido político. De ponta a ponta, o país está sendo varrido por uma ânsia de consolidação democrática que não tem mais condições de ser reprimida. Para a direita, diminuem as possibilidades de uma recomposição de campos de atuação. Querer refrear as oportunidades de mudança social surgidas nos dois governos petistas foi a grande tragédia que tolheu as pretensões de José Serra e seus aliados.

Em intensidade nunca vista, a prova das urnas esfrangalhou as estruturas partidárias da oposição demo-tucana, mostrando a ineficácia de uma estratégia firmada sobre dois pilares: o poder midiático e o desembarque do "iluminismo tucano" no mais deslavado integrismo católico. No palco eleitoral, o personagem central dessa historieta, beijando a imagem de Nossa Senhora Aparecida, tentou passar-se por filho do destino. Deveria saber que o mito funcionaria contra sua intenção burlesca. Varrido pela tempestade dos votos que liquidaram quase todas as lideranças do seu partido, Serra atuou como cabo eleitoral às avessas. É triste o fim que o transformismo dá a quem o abraça a qualquer preço.

Terminada a campanha, à vencedora cabe tomar a iniciativa de cicatrizar divergências sem a necessidade de compor interesses rasteiros por baixo de uma retórica elevada. A primeira mulher eleita presidente do Brasil não pode, nem quer, ser prisioneira de uma rigidez política que a imobilize dentro de sua base de apoio. O problema, por enquanto, é a falta de um interlocutor que tenha sobrevivido do outro lado.

É lógico que, diante desse quadro, as áreas da imprensa mais vinculadas aos pontos de vista dos derrotados venham dando ênfase às diferenças na coligação vencedora. Apostam, com os olhos voltados para o passado, na fraqueza relativa dos partidos em nossa história republicana. Parecem não querer se dar conta de que há grande possibilidade de uma convergência programática e de ação das forças políticas que, com Dilma, venceram as eleições de 2010. O baronato joga suas fichas na impossibilidade da democracia como reinvenção. Já deveria ter aprendido que o rumo da história é ditado por forças dinâmicas.

Outubro de 2010. O arsenal tático da ex-guerrilheira atordoa as barricadas do atraso. É doce o sorriso de Vanda. Como suave é sua mão estendida.




Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Gilson Caroni Filho - As bolas de papel da democracia desejada

O Jornal Nacional de 21/10 não foi só uma tentativa patética de recriar o tiro que matou o Major Vaz. Os 7 minutos gastos na “fabricação” da fita adesiva que teria atingido o candidato tucano revelam desorientação no tempo e no espaço. A Rua Tonelero não fica em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro.

Gilson Caroni Filho

Quando as redações da grande imprensa, em campanha aberta pela candidatura Serra, erigem o preconceito como norma de juízo, a mentira não é apenas abominável: é suicida. A opinião pública brasileira dispõe, hoje em dia, dos elementos necessários para julgar os acontecimentos políticos, sociais, econômicos e culturais sem se deixar levar pelo filtro ideológico de conhecidas técnicas de edição. Há muito tempo, a sociedade aprendeu a aquilatar a qualidade ética da informação oferecida, os desvios de apuração e o descompromisso do noticiário com a verdade factual.

O Jornal Nacional de quinta-feira, 21/10, não foi apenas uma tentativa patética de recriar o tiro que matou o Major Vaz. Os sete minutos gastos na “fabricação” da fita adesiva que teria atingido o candidato tucano revelam desorientação no tempo e no espaço. A Rua Tonelero não fica em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. Além disso, passados 56 anos, não há lugar para atores políticos com indefinição ideológica evidente. Serra não é Lacerda; falta-lhe talento. O PSDB não é a UDN; tem lastro histórico mais precário. Mas em ambos, no candidato e em seu partido, convivem a vergonha de serem ostensivamente autoritários e o medo de serem inteiramente democráticos. A face dupla do moralismo udenista, transposto para 2010, realça o desbotamento de um Dorian Gray mal-acabado.

A campanha oposicionista padece de velhos vícios e truncamentos de origem. Parece acreditar que o povo, em toda a parte, é uma entidade incapaz e como tal deve ser tratado, sob pena de hecatombe social iminente. Deve-se também ameaçar a esquerda com a hipótese sempre latente de um golpe de Estado. E lembrar aos setores populares, principalmente à nova classe média, que se eles não tiverem juízo virão aí os bichos papões e, com eles, os massacres dos Kulaks, as igrejas fechadas, os asilos psiquiátricos, a supressão da liberdade, em suma, o socialismo sem rosto humano.

Essa agenda está superada, mas seu simples ressurgimento deve nos remeter a pontos importantes. Se atualmente é difícil calar organizações que expressam as demandas dos seus membros e representados, como é o caso do MST, do movimento estudantil e do mundo do trabalho, muitos obstáculos ainda têm que ser ultrapassados.

Exigir liberdades democráticas não é uma gesticulação romântica, desde que se dêem consequências às suas implicações. É preciso apostar na organização crescente das forças sociais com o objetivo de consolidar uma saída definitivamente nacional e popular para temas que vão da questão agrária ao controle social dos meios de comunicação.

A análise histórica mostra que, quando não avançamos na democracia concreta, damos aos seus adversários tempo para que se reorganizem, utilizando as oficinas de consenso para caluniar, difamar, fazer o que for necessário, para deter o ímpeto vital que lhes ameaça.

Nos dias de hoje, é preciso senso crítico sempre atilado, não se deixar envolver pela vaga e traiçoeira tese do aperfeiçoamento democrático a qualquer preço, pois as forças retrógadas costumam cobrar bem caro por nossas distrações ou equívocos. Por tudo isso, a eleição de Dilma Rousseff é um passo decisivo para erradicarmos de vez o cartorialismo econômico, a indiferença moral e a incompetência administrativa que marcaram vários governos até 2003.

Na Rua Tonelero, o futuro vislumbrado é o de um país que realizará suas potencialidades. O que importa saber é que atores são capazes de assegurar uma democracia com ênfase social, assentada também nos direitos individuais e na liberdade econômica. Nesse cenário, as bolinhas de papel passeiam na calçada. O vento-e não mais o cálculo político-dita o rumo de cada uma delas.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

sábado, 16 de outubro de 2010

Caroni - A santíssima trindade dos homens de bem

Na disputa política, o “iluminismo tucano" tem levado o candidato do PSDB a ficar muito parecido com tudo que ele, em seu passado como homem de esquerda, rejeitava como lixo. É assim que a oposição fabrica um ”homem de bem".

Gilson Caroni Filho

A canalhice eleitoral também pode ser cruel e humilhante, quando adiciona à degradação do corpo político a desordem das idéias. Às vezes, para sorte dos náufragos, o processo é lento, de se medir em anos. Outras vezes, tem a perversão da rapidez e produz em suas vítimas súbita metamorfose. Esta velhice, a mais sofrida para quem dela padece e a mais chocante para quem a vê, abateu-se sobre a candidatura Serra.

A versão global-carismática da desmodernização brasileira parece não conhecer limites. Na disputa política, o “iluminismo tucano" tem levado o candidato do PSDB a ficar muito parecido com tudo que ele, em seu passado como homem de esquerda, rejeitava como lixo. Os dois fenômenos, o da fé mercantilizada e o da política dessecularizada, tornaram-se imbricados, um aprendendo a usar os recursos do outro para alavancar os seus projetos que guardam inequívoca afinidade eletiva. É assim que a oposição fabrica um ”homem de bem".

Se acrescentarmos ao quadro dantesco a Justiça Eleitoral usada como instrumento de poder, veremos o quanto está ameaçada a legitimidade da representação popular, sem a qual não existe democracia. Estaríamos assistindo à implantação no país de uma justiça de gabinete, considerada pelo pensamento jurídico mundial a forma mais infame de prepotência principesca? Este é o projeto demotucano? Oremos todos.

A temperatura da campanha, agitada com os debates entre os candidatos e a demonização do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), nos obriga a retroceder no tempo para lembrar ao eleitor de classe média a tessitura do retrocesso em andamento. É interessante retornar a 2001, para aquilatarmos alguns dados e falas esquecidas.

Há nove anos, Márcio Pochmann, fazia uma precisa radiografia do desemprego e da precarização do trabalho, que assolava a economia brasileira(*). O autor apresentava quais os principais elementos que asseguravam a (triste) presença do Brasil no pódio, como um dos campeões do desemprego em escala mundial. Em suas palavras: “Em 1999, por exemplo, o Brasil ocupou o terceiro lugar no mundo em desemprego aberto, representando 5,61% do total do desemprego mundial, apesar de contribuir com 3,12% na PEA global. Em contrapartida, no ano de 1986, a colocação do Brasil no ranking mundial foi a décima terceira, com participação de 2,75% e representação de 1,68% do desempenho mundial".

O economista alertava que o perfil ocupacional do trabalhador brasileiro o deixava exposto aos efeitos deletérios da globalização, decorrentes da liberalização comercial e da desregulamentação do mercado de trabalho, sem constrangimento por parte das políticas macroeconômicas e sociais nacionais. Para quem acredita que Lula nada mais fez senão dar continuidade ao governo FHC, é legítimo indagar sobre as bases em que está assentada esta crença.

O descontentamento com a crise energética influía negativamente na avaliação do governo FHC, de acordo com pesquisa do Instituto Vox Populi, feita em junho de 2001. O percentual de ruim e péssimo saltava de 34 para 42%. A taxa de ótimo/bom refluía de 22% para 17%. Os entrevistados apontavam como piores áreas do governo: a saúde (29%), a energia elétrica (23%) e a segurança (17%). Ou seja, a gestão do “melhor ministro da Saúde que o país já teve", como alardeia a propaganda tucana, era a que apresentava a pior avaliação. Os tempos eram duros para o “homem de bem" dos púlpitos do Opus Dei.

Em 2002, aliados e estrategistas dos principais candidatos à Presidência acreditavam que o fechamento de um acordo com o FMI aliviaria o clima da campanha eleitoral por trazer mais estabilidade à economia e afastar a "argentinização" do Brasil.

O candidato do PSDB, José Serra, pretendia faturar o momento, apresentando-se como o único capaz de repetir o feito de fechar, se necessário, um novo acordo. Seu raciocínio era contestado por outro ”homem de bem". O presidente do PPS, senador Roberto Freire, conhecido como “líder do governo na oposição", reagia com ironia aos prognósticos do tucano.

“Isso é uma besteira, algo risível. Esse acordo está sendo fechado para corrigir os equívocos da equipe econômica, totalmente subordinada ao FMI. Porque reduziram o estrago, agora querem virar os salvadores da pátria". Freire, como se sabe, viria a apoiar Alckmin em 2006 e está na coligação tucana em 2010. Sua trajetória, como político de esquerda, é conhecida. Desde os tempos do velho PCB, o oportunismo açoita-o em direção da direita, em nome de evitar a vitória da direita pior. Sempre aderiu ao blablablá de combater o "inimigo de dentro"- o que, na linguagem cristalina da política, significa descolar uns empreguinhos no governo. E, quem sabe, um dinheirinho para a campanha. Esta sempre foi sua interpretação sobre o conceito gramsciano de "guerra de posição"

O DEM completa a tríade da santidade oposicionista. Nunca foi capaz de matricular-se num curso intensivo sobre como fazer campanhas eleitorais sem recursos do Orçamento da União, que fosse só na base do palanque, aqui entendido como discurso de identificação com a sociedade. Para tal, precisaria arrumar um projeto de país, coisa que jamais passou pela cabeça do seu ex-presidente, Jorge Bornhausen, conhecido pelo apelido de “Alemão", por conta do temperamento gélido e da ascendência genética.

Serra, Freire, Borhausen. Eis a santíssima trindade. Por ela, as redações rezam em editoriais e colunas: “dai-me sempre guarida, tende de mim piedade" O Estado laico não pode dizer amém.

(* ) Pochman, Márcio. O Emprego na Globalização. SP, Boitempo, 2001



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Caroni - Quem é o Serra dos debates?

É importante indicar ao eleitor que um eventual governo Serra representará um mergulho nas trevas, com direito a TFPs, Opus Dei, Carismáticos e outras denominações legislando o nascimento de um poder assentado em bases teocráticas. Sobre isso deveria refletir uma parcela da classe média.

Gilson Filho

Quando entrou nos estúdios da Rede Bandeirantes para o segundo confronto com Dilma Rousseff, Serra parecia confiante. Afinal, pesquisas recentes indicavam que sua candidatura registrava uma curva ascendente. Amparado pelo confortável clima de terror criado por demotucanos, com auxílio inestimável do oportunismo de grupos religiosos partidários da teologia da prosperidade, "IN NOMINE DEI”, o massacre da adversária era tratado como favas contadas. Mas, como costuma acontecer na luta política, o açodamento voraz aumenta a voltagem de fracassos inesperados.

A adversária se mostrava surpreendentemente bem mais preparada do que no encontro anterior, disparando alguns petardos para os quais o PSDB - e a mídia corporativa que lhe apóia - não encontraria proteção adequada nem mesmo no dia seguinte. Do assessor que fugiu com R$ 4 milhões da campanha a uma possível privatização do pré-sal em um caso de vitória tucana, Serra manteve a fisionomia tensa, perdendo-se nas respostas, sem conseguir esboçar contra-ataques com os detalhes que a televisão exige. O desempenho do personagem preocupou assessores e a base social que lhe dá sustentação.

Quando perguntado sobre fatos provados, respondia com evasivas. Nem mesmo a mulher, Mônica Serra, foi capaz de defender. Foge como o diabo da cruz quando são feitas comparações entre os governos FHC e Lula. Quem tirou 14 milhões da miséria, levou 32 milhões para a classe média, criando 13 milhões de empregos? Que governo fez o Brasil crescer como nunca, libertando o país dos ditames do FMI? Quem proporcionou acesso de um enorme contingente popular às universidades, mudando a fisionomia e as expectativas educacionais de uma formação social marcada pela exclusão? Sob o manto das redações que o protegem, Serra é poupado de contraditórios incômodos. Quando exposto ao confronto, sobram o sorriso nervoso e as mãos trêmulas no ar.

Ficou claro, no debate de ontem, que Serra promete coisas sem base e silencia sobre como vai cumpri-las. Chegou o momento de mostrar, às claras, quem é o ex-governador que paga os piores salários do Brasil para os professores e policiais de São Paulo, recusando qualquer possibilidade de diálogo com representantes das duas categorias. Serra envereda pela ficção quando diz que criou os genéricos e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). E mente quando diz que tirou do papel o Seguro-Desemprego.

Nos próximos encontros, Dilma deve mostrar ao país o perigo de ter religiosos fundamentalistas dando palpite na administração pública. Precisa alertar que nas regiões metropolitanas, em comunidades carentes, além da crônica falta do Estado, os poderes conferidos a seitas e outros espertalhões, aliados a uma polícia medíocre e corrupta, acabam facilitando a vida de milicianos e traficantes. O que faz soar, no mínimo, ridícula a proposta tucana de criação de um Ministério da Segurança.

É importante indicar ao eleitor que um eventual governo Serra representará um mergulho nas trevas, com direito a TFPs, Opus Dei, Carismáticos e outras denominações legislando o nascimento de um poder assentado em bases teocráticas. Sobre isso deveria refletir uma parcela da classe média. Aquela mais apegada ao consumo que à cidadania, sócia despreocupada do rentismo e do poder nos tempos neoliberais.

Acostumada, desde a ditadura militar, à apropriação dos recursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria de seu poder aquisitivo e seu bem-estar material, ainda conserva vícios de origem, reagindo negativamente ao aumento da participação e da inclusão política de novos setores. Instalada em um desencanto abrangente, como estamento arraigado, abriga forças que não ameaçam apenas o processo democrático. O perigo vai bem além. Por tudo que vimos nessa campanha, a candidatura de Serra é incompatível com os valores mais caros à modernidade.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Caroni: Balas de prata e os tempos das filhas

O que poucos se dão conta é que o uso da “bala de prata” é improvável por uma logística inédita: dessa vez o “lobisomem” e o atirador estão umbilicalmente ligados. Qualquer disparo fulmina os dois. Simbiose perfeita.

Gilson Filho

É cristalino o significado político das últimas declarações de José Serra. Ao comparar, em um telejornal das Organizações Globo, a presidenciável petista, Dilma Rousseff, ao ex-presidente Fernando Collor, o tucano deixou claro que já não lhe sobra margem para argumentos sutis. Quando responsabiliza a ex-ministra pela quebra do sigilo fiscal de sua filha, Verônica Serra, o candidato do PSDB, comprova, mais uma vez, que, neste momento, está refugiado à sombra de togas obscuras e barões midiáticos, aos quais deve prestar vassalagem até o dia 3 de outubro.

Carente de apoio popular, perdendo força a cada dia na classe média, e constatando a decomposição de seu apoio político-parlamentar, Serra só espera sobreviver a partir do apoio que vem obtendo de redações que se transformaram em extensões de seus comitês eleitorais. Sua candidatura está em estranha suspensão, em compasso de espera entre o imprevisto e um novo ato do drama de retrocesso calculado. Esperando por uma improvável “bala de prata", parece estar pronto para enveredar por uma aventura de alto preço para o país: um golpe branco em nome da preservação do Estado Democrático de Direito. Melancólico, mas é o que parece lhe restar.

Fingindo não saber que acabou o teatro esquizofrênico do falso moderno que pensava ser rei, o tucano não teme o ridículo: “O Collor utilizou o filho do Lula em 1989. Agora, pegaram a minha filha (...) para meter nesse jogo político sujo por preocupação com a minha vitória. Dilma está repetindo Collor". Traçar paralelismos requer cuidados que, quando não são tomados, revela a verdadeiras intenções do discurso e do gesto. A mistificação - e Serra deveria saber disso - costuma cobrar preço alto.

Vamos por partes, para melhor detalhar o processo. Collor foi eleito através de uma campanha em que misturou um discurso modernizante com apelos a valores e crenças tradicionais. A reforma do Estado e a moralização da sociedade eram os eixos centrais do discurso. Quem, a essa altura da campanha, está adotando a receita do bolo collorido? A total ausência de compromisso com a verdade e com a ética é marca de qual candidatura? Não convém brincar com o passado recente. O país, hoje, já não padece de aguda crise de cidadania. A sociedade civil já não se submete às surradas cantilenas reacionárias.

Collor atiçou o medo das camadas médias denunciando futuras medidas socializantes de candidatos mais à esquerda, principalmente Lula. Quando, seguindo a mesma trilha do “caçador de marajás”, um prócer tucano afirma que ”devastados os partidos, se Dilma ganhar as eleições sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários “, cabe a pergunta: quem está repetindo quem? Que democracia é preservada quando se pretende reduzir o aparato estatal a uma espécie de polícia da produção a serviço dos ditames do mercado? Como obter a submissão do mundo do trabalho sem a supressão de direitos democráticos?

Por fim, o ex-presidente da UNE, deveria se lembrar que Collor atacou seu adversário no segundo turno, manipulando uma antiga namorada de Lula. Em tudo isso, o ex-presidente contou com uma máquina de apoio e propaganda como nunca tinha sido visto, custeada por grandes grupos econômicos. O apoio da Globo foi, como é, notório e especialmente importante. Como se vê, não cabe misturar filhas e tempos distintos.

Lurian Cordeiro da Silva surgiu no cenário eleitoral como golpe baixo de uma campanha ameaçada pela curva de crescimento da candidatura oponente. Verônica Allende Serra, sem que se saiba ainda quem encomendou a quebra de seu sigilo fiscal, vem a público por emanações do mercado financeiro. Não é plausível confundir coisas e nomes. Sociedades financeiras e namoros apaixonados são coisas bem diferentes. Disso sabem todos, de Miriam Cordeiro a Daniel Dantas.

O que poucos se dão conta é que o uso da “bala de prata” é improvável por uma logística inédita: dessa vez o “lobisomem” e o atirador estão umbilicalmente ligados. Qualquer disparo fulmina os dois. Simbiose perfeita.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Os noves fora de José Serra (OU: A QUARTELADA MIDIÁTICA)

GILSON CARONI,
CARTAMAIOR
Secundado pela mídia que sempre o apoiou, e hoje se declara independente, Serra não tem escrúpulos em conspurcar a credibilidade do jogo político às vésperas de uma eleição presidencial. Em queda livre, o candidato e seus aliados ensaiam uma quartelada midiática.

Gilson Caroni Filho

O que estamos assistindo agora, com as tentativas tucanas de plantar escândalos e judicializar a campanha, é a uma gigantesca operação de engodo de candidatura sem perspectiva. Secundado pela mídia que sempre o apoiou, e hoje se declara "independente", Serra não tem escrúpulos em conspurcar a credibilidade do jogo político às vésperas de uma eleição presidencial. O que ele e seus sócios do PPS e do DEM estão querendo fazer é um autêntico golpe de mão, uma quartelada midiática para evitar que a sociedade possa comparar dois projetos de país.

Estado por estado as notícias são parecidas. Há um rápido processo de cristianização do candidato tucano. No Nordeste é um arraso: quem fez oposição a Lula nos últimos quatro anos, desembarca da nau serrista para cuidar da própria sobrevivência política. Nem mais em São Paulo, estado que o elegeu senador, prefeito e governador, Serra voa em céu de brigadeiro. O repúdio não se dirige apenas contra sua melancólica figura, mas ao estilo de governo posto em prática nos oito anos em que o neoliberalismo vigorou no país. Há algo de covarde na recusa de uma comparação retrospectiva, mas também há algo de didático no exame das decisões de um ator político.

Quando se nega a comparar o governo a que pertenceu com a gestão petista, Serra afirma “que não faz política olhando para o retrovisor". Certamente preferia que tudo fosse diferente, mas, no beco sem saída em que se encontra, não é possível acertar o caminho com manobras abruptas. Seu trem em marcha ré colidiria com os desastres da política econômica de FHC, o padrinho a ser ocultado.

Vamos aos fatos: a abertura comercial, promovida pelo consórcio demo-tucano, não trouxe ganhos de competitividade à indústria nacional. Pelo contrário, causou um efeito devastador em setores, como o têxtil, transformando segmentos que produziam localmente em meros importadores de insumos. De acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), depois de oito anos de economia submetida à concorrência internacional, sem instituição de políticas públicas adequadas, as conseqüências apareceram nos resultados negativos da balança comercial, em menos geração de emprego e renda no Brasil.

Os pesquisadores concluíram que a importação de matérias-primas provocou o esgarçamento dos setores intermediários de produção, aqueles encarregados de produzir os insumos para os fabricantes de produtos finais. A análise dos resultados na década de 1990 demonstrou maior competitividade na produção de commodities e vulnerabilidade das atividades de maior conteúdo tecnológico, aquelas com maior valor agregado e responsáveis pela geração de mais postos de trabalho. Nesse contexto, cabe a pergunta: como Serra teria condições de apresentar sua política industrial, sem renegar totalmente o pensamento do PSDB?

Seguindo os preceitos do Consenso de Washington, a possibilidade de o Brasil tornar-se exportador de produtos básicos, que seriam processados em outros países, e importados posteriormente, era o que se afigurava como horizonte à época. Na indústria química, o crescimento das importações levou à desativação de centros de produção de insumos. Princípios ativos para a produção de medicamentos que, nos anos 80, começaram a ser produzidos aqui, com a abertura desregulada, passaram a ser fornecidos pelos Estados Unidos e por países europeus. Nos tempos ministeriais de Serra, a saúde que interessava era a da indústria farmacêutica internacional. Não lhe peçam, portanto, para apresentar propostas programáticas para o setor. Além das platitudes, o vazio é total.

No campo energético, o desastre não foi menor. A decisão de vender usinas prontas, em plena operação, sem ao menos abrir aos investidores a oportunidade, e o consequente risco, do empreendimento novo, gerou uma situação de insegurança energética, com 70% do mercado de distribuição e boa parte da geração privatizados. Sem agregar energia nova, o governo de FHC pensou em esquartejar Furnas quando o movimento mundial ditava fusões. Não faltavam, ainda, os defensores da venda da Chesf, detentora de grandes reservatórios - alguns de alta importância ecológica e social - antes de se regulamentar o uso múltiplo das águas. O que Serra teria a dizer sobre o descalabro? Por que a doce e ética Marina silencia sobre o tema?

Por que não discutir sobre as consequencias desastrosas da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas, programada para se instalar em 2005 e que, fatalmente, nos levaria a novo pacto colonial?

Serra, o “Zé que joga pesado" não pode defender o passado sem deixar de fazer um elogio à rasteira da soberania nacional. Por isso, dele só se pode esperar a pregação golpista, o denuncismo como método. E um genérico de Elba Ramalho em seu programa eleitoral. O ex-presidente da UNE jogou sua biografia no ralo das circunstâncias. Da soma dos fatores a que se submeteu, deixando de fora os nove, sobra rigorosamente nada.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A geopolítica do crepúsculo

cartamaior

A política externa multilateralista do governo Lula, por afirmar interesses nacionais, amplia áreas de atrito com grandes potências. Por isso mesmo é alvo da "retórica do medo", por parte dos que advogam o retorno do alinhamento incondicional com os Estados Unidos, Europa e Japão.

Gilson Caroni Filho

Fala-se que a política externa de um país é a expressão de sua política interna, da dinâmica de forças sociais que expressam um projeto de inserção no cenário mundial. Se for assim, como devem ser vistas as críticas de setores neoliberais que, em sintonia com a retórica de britânicos e estadunidenses, classificam-na como desastrosa, “sem uma avaliação adequada de nossas possibilidades e reais interesses"? A questão é importante, pois revela que, em uma eventual vitória da oposição na eleição de outubro, o Brasil sofrerá um processo de continuidade nessa área. Um lamentável retorno a teses e conceitos de uma geopolítica de vice-reinado.

As declarações de ex-chanceleres do governo FHC denunciam, com toda a clareza possível, a natureza e orientação da subalternidade planejada. Seríamos reduzidos a uma máquina de segurança mercadológica dos produtos exportáveis, relegando a meras cerimônias aspectos substantivos que, nos últimos oito anos, passaram a refletir um país democrático e maduro.

A integração regional soberana daria lugar ao antigo alinhamento com o capitalismo central, recolocando o país no segundo plano do jogo internacional das nações. As diretrizes e os meios de ação desse retrocesso são esboçados no discurso de José Serra e na linha editorial das corporações midiáticas que lhe dão sustentação.

O objetivo é continuar silenciando inspirações e práticas brilhantes que têm origem no pensamento altivo de Araujo Castro e San Thiago Dantas, entre outros. O Itamaraty, como lugar ideal de formulação e execução de políticas soberanas não é compatível com o ideário mercantil dos velhos sedimentos estamentais.

Convém lembrar a história do Brasil, em particular, sua independência. A ruptura dos laços com a metrópole portuguesa, sob o bafejo do capital inglês, não redundou na criação de um Estado nacional de corte burguês. Antes, permitiu que uma oligarquia fundiária e escravocrata articulasse um tipo de dominação senhorial que impôs à emergente sociedade brasileira uma superestrutura política, liquidada apenas no século XX.

A estratégia das nossas elites, desde então, operou no sentido de frustrar a democratização social, realizando a exclusão do povo da cena pública. A construção do Estado Nacional, entre nós, realizou-se sistematicamente com o controle e a manipulação, pelo alto, da intervenção popular. Mesmo as mais notáveis inflexões no processo de constituição e desenvolvimento desse Estado não conseguiram reverter essa tendência. Aliás, todas as vezes em que a ameaça de reversão se fez sentir, como em 1964, as classes dominantes não hesitaram em recorrer à violência.

É por tudo isso que o discurso da direita deve merecer uma atenção especial. Mais do que nunca é preciso motivar a reflexão e a análise de todos. A integridade e a soberania nacional só se fundem em um Estado que expresse os interesses da maioria dos seus cidadãos. Ainda recente e inconclusa, a superação das mais sérias patologias de nossa formação histórica tem sido pedagógica. Aprendemos, em pouco tempo, que a independência de um país só pode se fundamentar na legitimidade do seu regime político e na participação social dos setores organizados.

A política externa multilateralista do governo Lula, por afirmar interesses nacionais, amplia áreas de atrito com grandes potências. Por isso mesmo é alvo da "retórica do medo", por parte dos que advogam o retorno do alinhamento incondicional com os Estados Unidos, Europa e Japão.

Como os caminhos da política externa são indissociáveis dos rumos das opções internas, ficam claras as marcas constitutivas das frações de classe que apóia a candidatura de José Serra: subalternidade nas relações internacionais e retomada, no âmbito interno, de políticas excludentes. Nas frestas de velhos pactos coloniais, o retrocesso sempre se apresenta como crepúsculo e destino.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, coluni