PARA CIENTISTA POLÍTICO, NORTE-AMERICANOS E EUROPEUS PODEM VOLTAR A COGITAR UM SISTEMA RENOVADO DE COLONIALISMO NESTA DÉCADA
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A guerra na Líbia é parte de uma nova corrida imperialista que se aprofundará, diz José Luis Fiori, coordenador da pós-graduação em economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos", diz ele.
Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que ele enxerga vivendo uma crise de crescimento.
Folha - Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
José Luís Fiori - É evidente que não se trata de uma discussão sobre o direito à vida dos líbios, os direitos humanos, a democracia. Nesta, como em todas as demais intervenções de europeus e dos EUA, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em algum país em particular.
As potências do "diretório militar" jamais intervêm contra um país ou governante aliado, por mais autoritário e antidemocrático que ele seja. Do ponto de vista das relações entre Estados, os direitos humanos são sempre esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas das grandes potências.
A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas petróleo. Nem tudo no mundo da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com economia. Neste caso está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano e território privilegiado do alterego civilizatório da "cristandade".
Foi onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e, depois, no século 19. Estamos assistindo a uma nova corrida imperialista na África, e não é impossível que se volte a cogitar alguma forma renovada de colonialismo.
Como explicar essa corrida imperialista?
A África não é simples nem homogênea, com seus 53 Estados e quase 800 milhões de habitantes. O atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais europeias e só se manteve, até 1991, graças à Guerra Fria.
Após a Guerra Fria e o fracasso da intervenção norte-americana na Somália (em 1993), os EUA redefiniram sua estratégia para o continente, propondo globalização e democracia. Até o fim do século 20, a preocupação dos EUA com a África se restringiu à disputa das regiões petrolíferas e ao controle das forças islâmicas e dos terroristas do Chifre da África.
Mas deverá ocorrer uma mudança radical do comportamento norte-americano e europeu, graças à invasão econômica da China, Rússia, Índia e Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista, que deverá se aprofundar na próxima década.
Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados pelos próprios colonialistas europeus.
Os Estados Unidos estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Não vejo este risco. Pelo contrário. São os mesmos de sempre que estão redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos e dos envolvidos nas rebeliões. Quando houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através de terceiros.
Para o sr. não há perda da hegemonia americana?
Os Estados Unidos estão enfrentando os problemas, contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status -de potência hegemônica do mundo capitalista (até a década de 1980), para potência imperial. Poderia até se chamar de uma crise de crescimento e não uma crise terminal.
Os EUA devem mudar sua forma de administrar o seu poder global. O jogo será este: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império, distanciando-se e só intervindo em última instância; de outro, as demais potências regionais tentando escapar do cerco americano.
Não há limites para esse poder americano?
É óbvio que esse novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Esse novo tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. Pelo contrário: é a própria expansão vitoriosa dos EUA -e não o seu declínio- que vai promovendo os conflitos e as guerras. Do ponto de vista estritamente militar, o essencial para os EUA é impedir alguma potência regional de ameaçar sua supremacia naval em qualquer lugar do mundo.
A China não é uma ameaça?
A nova engenharia econômica mundial transformou a China numa economia com poder de gravitação quase igual ao dos EUA. Isso intensifica a competição capitalista na África e na América do Sul. Mas é certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China em líder do sistema mundial.
Quais as consequências políticas do dinamismo chinês?
O mais provável é que a China se restrinja à luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua estratégia de não provocar nem aceitar confrontos fora dessa sua zona de influência. Mas, em algum momento futuro, terá que combinar a sua nova centralidade com algum tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria região imediata. Há que se considerar que a China tem uma posição geopolítica desfavorável, com um território amplo e cercado e uma fronteira marítima muito extensa. E não conta ainda com um poder naval capaz de se impor ao controle americano do Pacífico Sul.
A crise financeira recente não expôs fragilidades dos EUA?
O dólar flexível e a desregulação dos mercados financeiros transferiu para os EUA um poder monetário e financeiro sem precedentes.
Isso simplesmente porque, segundo as novas regras que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e internacional a um só tempo.
Arbitram também o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e servem de âncora para o próprio sistema liderado pelo dólar. Os EUA podem redefinir a cada momento o valor das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair perdendo.
As crises se repetirão, mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade e, às vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo expansivo. As crises não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos para as demais potências econômicas do sistema.
Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
A União Europeia está cada vez mais fraca e dividida sobre como conduzir seus assuntos internos. Não dispõe de um poder central unificado e homogêneo. A Alemanha reunificada se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais autônoma, centrada nos interesses nacionais. É uma estratégia que recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro da Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã-Bretanha.
As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem se multiplicar os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras mundiais do século 20.
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segunda-feira, 4 de abril de 2011
sexta-feira, 25 de março de 2011
EUA - Hegemonia e Império - José Luís Fiori - CARTAMAIOR -
O passeio da família Obama aos trópicos e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona, na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia - à direita e à esquerda - falar do declínio do poder americano.
José Luís Fiori
O passeio de fim de semana da família Obama ao Brasil passaria à história como um acontecimento turístico carioca e uma gentileza internacional, se não tivesse coincidido com o desastre nuclear do Japão, e com o início do bombardeio aéreo da Líbia. Em particular, porque a decisão dos EUA de atacarem o país norte-africano, foi tomada no território brasileiro, um pouco antes do jantar festivo que o Itamaraty ofereceu à deleção norte-americana. Esta decisão, sobretudo, serviu para relembrar aos mais apressados, que os EUA seguem sendo a única potência mundial com “direito” de decidir - onde e quando quiser – e com a capacidade de fazer intervenções militares imediatas, em qualquer conflito, ao redor do mundo. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia - à direita e à esquerda - falar do declínio do poder americano, enquanto se acumulam as evidências no sentido contrário.
Depois de 1991, e em particular depois do fim da URSS, a Europa deixou de ser o centro de gravidade do sistema internacional, que passou para o outro lado do Atlântico. E ao mesmo tempo, os EUA se transformaram na “cabeça” de um novo tipo de “poder global”. Um império que não é colonial, não tem estrutura formal, e que possui fronteiras flexíveis, que são definidas em cada caso, em última instância, pelo poder naval e financeiro dos EUA E desde o início do século XXI, os EUA estão enfrentando as contradições, os problemas, e as trepidações produzidas por esta transição e esta mudança de status: da condição de uma “potência hegemônica”, restrita ao mundo capitalista, até a década de 1980, para a condição de “potência imperial global”. Hoje, é impossível prever como será administrado este novo tipo de Império, no futuro. Porque ele segue sendo nacional e terá que terá que conviver, ao mesmo tempo, com cerca de outros duzentos estados que são ou se consideram soberanos. E além disto, porque dentro deste sistema, a expansão do poder americano é a principal responsável pela multiplicação dos seus concorrentes, na luta pelas hegemonias regionais, dentro do sistema mundia.
O que está se assistindo, neste momento, é uma mudança na administração do poder global dos EUA. Este processo está em pleno curso, mas será longo e complicado, envolvendo divisões e lutas dentro e fora da sociedade e do establishment norte-americano. Mesmo assim, o mais provável é que ao final deste processo, os EUA adotem uma posição cada vez mais distante e “arbitral” com relação aos seus antigos sócios, e em todas as regiões geopolíticas do mundo. Estimulando as divisões internas e os “equilíbrios regionais” de poder, jogando os seus próprios aliados, uns contra os outros, e só intervindo diretamente em última instancia, segundo o modelo clássico do Império Britânico.
Este novo tipo de poder imperial dos EUA não exclui a possibilidade de guerras, ou de fracassos militares localizados, como no Iraque ou Afeganistão, nem a possibilidade de crises financeiras, como a de 2008. Estas crises financeiras não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema. E as guerras ou fracassos militares localizado seguirão sem importância enquanto não ameaçarem a supremacia naval dos EUA em todos os oceanos e mares do mundo, e enquanto não escalarem na direção de uma “guerra hegemônica” capaz de atingir a supremacia militar norte-americana.
De qualquer forma, é óbvio que este novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes concorrentes, e desestabiliza e destrói os “equilíbrios” e as instituições, criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de “coalizões de poder” regionais que acabarão desmembrando aos poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o Império Romano. Por outro lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação capitalista e transformou a China numa economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova geo-economia internacional, intensifica a competição capitalista, e já deu início à uma “corrida imperialista”, cada vez intensa na África e na América do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre as Grandes Potências. Além disso, o poder imperial americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória do seu império, é absolutamente incompatível com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, ao contrário do que sonha uma boa parte da sociedade norte-americana.
De qualquer maneira, o passeio da família Obama aos trópicos e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
caroni
A Líbia e o DJ do Império
Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.
Gilson Caroni Filho
Ao começar a ofensiva militar contra a Líbia, as potências mundiais referendaram a nova estratégia estadunidense de manutenção de hegemonia global. Hoje é improvável que a Casa Branca queira se envolver diretamente em novo confronto militar. Talvez nem precise. Pouco a pouco, os Estados Unidos vêm conseguindo o aumento da cooperação internacional para alcançar seus objetivos geopolíticos. Sem os riscos de isolamento que marcaram a agressão imperialista ao Iraque e Afeganistão, a ação bélica no país árabe é amparada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Os sonhos de um mundo multipolar sofrem um desvio histórico de tal monta que não é exagero atentarmos para uma perspectiva internacional de extrema gravidade.
Nos anos 1920, os norte-americanos dançavam o “charleston” e diziam que eram "os anos loucos", enquanto nas ruas de Chicago, gangsteres italianos e irlandeses se enfrentavam à bala. Na Líbia, o guerrilheiro Omar al-Muktar, o "leão do deserto", lutava contra o fascismo italiano e, na Nicarágua, Augusto Sandino, o "general dos homens livres", combatia os marines do capitão Frederick Hatsfield. Muktar foi enforcado em 1931 e Sandino fuzilado em 1934. O “terrorismo” estava sendo contido.
Mais de meio século depois, Líbia e Nicarágua foram associadas por algo mais do que aquelas gestas antiimperialistas, quase simultâneas. O artífice dessa ligação foi o então presidente Ronald Reagan para quem Muamar Kadafi era o "cão raivoso" do Oriente Médio e o comandante Daniel Ortega "um capanga com os olhos de figurinista".
Em 14 de abril de 1986 foi realizado um ataque norte-americano a Trípoli, Bengazi e a outras três cidades por 18 bombardeios que levantaram vôo de bases na Grã-Bretanha, e 15 caças estacionados em porta-aviões pertencentes à 6ª Frota dos Estados Unidos no mar Mediterrâneo. A operação foi justificada como uma retaliação a um atentado em 5 de abril, em uma discoteca alemã, que teria matado 4 pessoas, deixando um saldo de 200 feridos. Na época, como sempre, Washington alegou possuir provas “irrefutáveis" da participação de terroristas líbios no atentado, ainda que não tivesse apresentado nenhuma.
Simultaneamente, a CIA, com o apoio da imprensa centro-americana, difundia a existência de comandos árabes realizando ações terroristas em território hondurenho, a partir de bases cedidas pelo governo sandinista. Como destacou o sociólogo Roberto Bardini, “ao tomarem conhecimento da alarmista campanha da mídia e da adoção de fortes e ostensivas medidas de segurança em Honduras, alguns observadores calcularam que tudo não passava de uma operação psicológica que teria quatro objetivos: justificar represálias militares contra a Líbia, demonstrar que a Nicarágua emprestava seu território para exportar o terrorismo, comprovar a existência de uma conexão Trípoli-Manágua. e, principalmente, conseguir que o Congresso aprovasse a destinação de US$ 100 milhões aos "contras".”
O que Reagan conseguiu com a agressão à Líbia? Um isolamento internacional sem precedentes. Ficou reduzido ao apoio da então primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, e do governo israelense. Desde a guerra do Vietnã jamais se tinha presenciado uma onda tão forte de hostilidade aos Estados Unidos. Definitivamente, o pop dos anos 80 não tinha o mesmo poder de encantamento do charleston.
Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.
O Império é criterioso quando se trata de resgatar o que lhe parece ser seu fundo de quintal. A tentativa de modificar a nova ordem política da América Latina é o que move os passos de Obama na região. Transformar assimetrias em impossibilidades e mudar o perfil da política externa brasileira são os imperativos da vez.
Ao declarar que "nosso consenso foi forte e nossa decisão é clara. O povo da Líbia precisa ser protegido e, na ausência de um fim imediato à violência contra civis, nossa coalizão está preparada para agir e agir com urgência", o presidente dos Estados Unidos deixa evidente que, em nome do “hegemon”, está pronto para misturar sem dó nem piedade o hit radiofônico “Closer”, do “rapper Ne-yo”, com um “mash-up” tribal da Madonna para "Miles away". Espera-se que a pista, quase sempre lotada de ingênuos ou servis, repila com veemência os apelos do "DJ" do império.
Lula acertou na mosca. Não é muito difícil adivinhar quem veio para o almoço.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
José Luís Fiori
O passeio de fim de semana da família Obama ao Brasil passaria à história como um acontecimento turístico carioca e uma gentileza internacional, se não tivesse coincidido com o desastre nuclear do Japão, e com o início do bombardeio aéreo da Líbia. Em particular, porque a decisão dos EUA de atacarem o país norte-africano, foi tomada no território brasileiro, um pouco antes do jantar festivo que o Itamaraty ofereceu à deleção norte-americana. Esta decisão, sobretudo, serviu para relembrar aos mais apressados, que os EUA seguem sendo a única potência mundial com “direito” de decidir - onde e quando quiser – e com a capacidade de fazer intervenções militares imediatas, em qualquer conflito, ao redor do mundo. Uma lembrança oportuna, porque se tornou lugar comum, na imprensa e na academia - à direita e à esquerda - falar do declínio do poder americano, enquanto se acumulam as evidências no sentido contrário.
Depois de 1991, e em particular depois do fim da URSS, a Europa deixou de ser o centro de gravidade do sistema internacional, que passou para o outro lado do Atlântico. E ao mesmo tempo, os EUA se transformaram na “cabeça” de um novo tipo de “poder global”. Um império que não é colonial, não tem estrutura formal, e que possui fronteiras flexíveis, que são definidas em cada caso, em última instância, pelo poder naval e financeiro dos EUA E desde o início do século XXI, os EUA estão enfrentando as contradições, os problemas, e as trepidações produzidas por esta transição e esta mudança de status: da condição de uma “potência hegemônica”, restrita ao mundo capitalista, até a década de 1980, para a condição de “potência imperial global”. Hoje, é impossível prever como será administrado este novo tipo de Império, no futuro. Porque ele segue sendo nacional e terá que terá que conviver, ao mesmo tempo, com cerca de outros duzentos estados que são ou se consideram soberanos. E além disto, porque dentro deste sistema, a expansão do poder americano é a principal responsável pela multiplicação dos seus concorrentes, na luta pelas hegemonias regionais, dentro do sistema mundia.
O que está se assistindo, neste momento, é uma mudança na administração do poder global dos EUA. Este processo está em pleno curso, mas será longo e complicado, envolvendo divisões e lutas dentro e fora da sociedade e do establishment norte-americano. Mesmo assim, o mais provável é que ao final deste processo, os EUA adotem uma posição cada vez mais distante e “arbitral” com relação aos seus antigos sócios, e em todas as regiões geopolíticas do mundo. Estimulando as divisões internas e os “equilíbrios regionais” de poder, jogando os seus próprios aliados, uns contra os outros, e só intervindo diretamente em última instancia, segundo o modelo clássico do Império Britânico.
Este novo tipo de poder imperial dos EUA não exclui a possibilidade de guerras, ou de fracassos militares localizados, como no Iraque ou Afeganistão, nem a possibilidade de crises financeiras, como a de 2008. Estas crises financeiras não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema. E as guerras ou fracassos militares localizado seguirão sem importância enquanto não ameaçarem a supremacia naval dos EUA em todos os oceanos e mares do mundo, e enquanto não escalarem na direção de uma “guerra hegemônica” capaz de atingir a supremacia militar norte-americana.
De qualquer forma, é óbvio que este novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes concorrentes, e desestabiliza e destrói os “equilíbrios” e as instituições, criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de “coalizões de poder” regionais que acabarão desmembrando aos poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o Império Romano. Por outro lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação capitalista e transformou a China numa economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Esta nova geo-economia internacional, intensifica a competição capitalista, e já deu início à uma “corrida imperialista”, cada vez intensa na África e na América do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre as Grandes Potências. Além disso, o poder imperial americano deverá enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória do seu império, é absolutamente incompatível com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou sistema de valores universais, ao contrário do que sonha uma boa parte da sociedade norte-americana.
De qualquer maneira, o passeio da família Obama aos trópicos e a retórica simpática e amena do presidente americano serviram para demonstrar como funciona na prática, o “tratamento entre iguais”, quando um deles é um Império.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
caroni
A Líbia e o DJ do Império
Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.
Gilson Caroni Filho
Ao começar a ofensiva militar contra a Líbia, as potências mundiais referendaram a nova estratégia estadunidense de manutenção de hegemonia global. Hoje é improvável que a Casa Branca queira se envolver diretamente em novo confronto militar. Talvez nem precise. Pouco a pouco, os Estados Unidos vêm conseguindo o aumento da cooperação internacional para alcançar seus objetivos geopolíticos. Sem os riscos de isolamento que marcaram a agressão imperialista ao Iraque e Afeganistão, a ação bélica no país árabe é amparada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Os sonhos de um mundo multipolar sofrem um desvio histórico de tal monta que não é exagero atentarmos para uma perspectiva internacional de extrema gravidade.
Nos anos 1920, os norte-americanos dançavam o “charleston” e diziam que eram "os anos loucos", enquanto nas ruas de Chicago, gangsteres italianos e irlandeses se enfrentavam à bala. Na Líbia, o guerrilheiro Omar al-Muktar, o "leão do deserto", lutava contra o fascismo italiano e, na Nicarágua, Augusto Sandino, o "general dos homens livres", combatia os marines do capitão Frederick Hatsfield. Muktar foi enforcado em 1931 e Sandino fuzilado em 1934. O “terrorismo” estava sendo contido.
Mais de meio século depois, Líbia e Nicarágua foram associadas por algo mais do que aquelas gestas antiimperialistas, quase simultâneas. O artífice dessa ligação foi o então presidente Ronald Reagan para quem Muamar Kadafi era o "cão raivoso" do Oriente Médio e o comandante Daniel Ortega "um capanga com os olhos de figurinista".
Em 14 de abril de 1986 foi realizado um ataque norte-americano a Trípoli, Bengazi e a outras três cidades por 18 bombardeios que levantaram vôo de bases na Grã-Bretanha, e 15 caças estacionados em porta-aviões pertencentes à 6ª Frota dos Estados Unidos no mar Mediterrâneo. A operação foi justificada como uma retaliação a um atentado em 5 de abril, em uma discoteca alemã, que teria matado 4 pessoas, deixando um saldo de 200 feridos. Na época, como sempre, Washington alegou possuir provas “irrefutáveis" da participação de terroristas líbios no atentado, ainda que não tivesse apresentado nenhuma.
Simultaneamente, a CIA, com o apoio da imprensa centro-americana, difundia a existência de comandos árabes realizando ações terroristas em território hondurenho, a partir de bases cedidas pelo governo sandinista. Como destacou o sociólogo Roberto Bardini, “ao tomarem conhecimento da alarmista campanha da mídia e da adoção de fortes e ostensivas medidas de segurança em Honduras, alguns observadores calcularam que tudo não passava de uma operação psicológica que teria quatro objetivos: justificar represálias militares contra a Líbia, demonstrar que a Nicarágua emprestava seu território para exportar o terrorismo, comprovar a existência de uma conexão Trípoli-Manágua. e, principalmente, conseguir que o Congresso aprovasse a destinação de US$ 100 milhões aos "contras".”
O que Reagan conseguiu com a agressão à Líbia? Um isolamento internacional sem precedentes. Ficou reduzido ao apoio da então primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, e do governo israelense. Desde a guerra do Vietnã jamais se tinha presenciado uma onda tão forte de hostilidade aos Estados Unidos. Definitivamente, o pop dos anos 80 não tinha o mesmo poder de encantamento do charleston.
Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.
O Império é criterioso quando se trata de resgatar o que lhe parece ser seu fundo de quintal. A tentativa de modificar a nova ordem política da América Latina é o que move os passos de Obama na região. Transformar assimetrias em impossibilidades e mudar o perfil da política externa brasileira são os imperativos da vez.
Ao declarar que "nosso consenso foi forte e nossa decisão é clara. O povo da Líbia precisa ser protegido e, na ausência de um fim imediato à violência contra civis, nossa coalizão está preparada para agir e agir com urgência", o presidente dos Estados Unidos deixa evidente que, em nome do “hegemon”, está pronto para misturar sem dó nem piedade o hit radiofônico “Closer”, do “rapper Ne-yo”, com um “mash-up” tribal da Madonna para "Miles away". Espera-se que a pista, quase sempre lotada de ingênuos ou servis, repila com veemência os apelos do "DJ" do império.
Lula acertou na mosca. Não é muito difícil adivinhar quem veio para o almoço.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Brasil no caleidoscópio mundial- José Luís Fiori - cartamaior
A definição da estratégia internacional do Brasil não depende da “taxa de declínio” dos EUA, mas não pode desconhecer a existência do poder americano. Assim mesmo, gostem ou não os conservadores, o Brasil já entrou no grupo dos estados e das economias nacionais que fazem parte do “caleidoscópio central” do sistema, onde todos competem com todos, e todas as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país, e do seu projeto de mudança do sistema mundial. O artigo é de José Luís Fiori.
José Luís Fiori
Durante a primeira década do século XXI, o Brasil conquistou um razoável grau de liberdade, para poder definir autonomamente sua estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional, num mundo em plena transformação. O sistema mundial saiu da crise econômica de 2008, dividido em três blocos cada vez mais distantes, do ponto de vista de suas políticas e da sua velocidade de recuperação: os EUA, a União Europeia e algumas grandes economias nacionais emergentes, entre as quais se inclui o Brasil. Mas do ponto de vista geopolítico, o sistema mundial ainda segue vivendo uma difícil transição - depois do fim da Guerra Fria - de volta ao seu padrão de funcionamento original. Desde o início do século XIX, o sistema inter-estatal capitalista se expandiu liderado pela Grã Bretanha, e por mais algumas potências europeias, cuja competição e expansão coletiva foi abrindo portas para o surgimento de novos “poderes imperiais”, como foi o caso da Prússia e da Rússia, num primeiro momento, e da Alemanha, EUA e Japão, meio século mais tarde. Da mesma forma como aconteceu depois da “crise americana” da década de 1970.
Depois da derrota do Vietnã, e da reaproximação com a China, entre 1971 e 1973, o poder americano cresceu de forma contínua, construindo uma extensa rede de alianças e uma infra-estrutura militar global que lhe permite até o hoje o controle quase monopólico, naval, aéreo e espacial de todo o mundo. Mas ao mesmo tempo, esta expansão do poder americano contribuiu para a “ressurreição” militar da Alemanha e do Japão e para a autonomização e fortalecimento da China, Índia, Irã e Turquia, além do retorno da Rússia, ao “grande jogo” da Ásia Central e do Oriente Médio. Os reveses militares dos Estados Unidos na primeira década do século desaceleraram o seu projeto imperial. Mas uma coisa é certa, os EUA não abdicarão voluntariamente do poder global que já conquistaram e não renunciarão à sua expansão contínua, no futuro. Qualquer possibilidade de limitação deste poder só poderá vir do aumento da capacidade conjunta de resistência das novas potências.
Por outro lado, depois do fim do Sistema de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a economia americana cresceu de forma quase contínua, até o início do século XXI. Ao associar-se com a economia chinesa, a estratégia norte-americana diminuiu a importância relativa da Alemanha e do Japão, para sua “máquina de acumulação”, em escala global. E, ao mesmo tempo, contribuiu para transformar a Ásia no principal centro de acumulação capitalista do mundo, transformando a China numa economia nacional com enorme poder de gravitação sobre toda a economia mundial.
Esta nova geometria política e econômica do sistema mundial, se consolidou na primeira década do século XXI, e deve se manter nos próximos anos. Os Estados Unidos manterão sua centralidade dentro do sistema como única potência capaz de intervir em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo e que emite a moeda de referencia internacional. Desunida, a União Europeia terá um papel secundário, como coadjuvante dos Estados Unidos, sobretudo se a Rússia e a Turquia aceitarem participar do “escudo europeu anti-mísseis”, a convite dos EUA e da OTAN. Neste novo contexto internacional, a Índia, o Brasil, a Turquia, o Irã, a África do Sul, e talvez a Indonésia, deverão aumentar o seu poder regional e global, em escalas diferentes, mas ainda não terão por muito tempo, capacidade de projetar seu poder militar além das suas fronteiras regionais.
De qualquer forma, três coisas se podem dizer com bastante certeza, neste início da segunda década do século XXI:
i. Não existe nenhuma “lei” que defina a sucessão obrigatória e a data do fim da supremacia americana. Mas é absolutamente certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China numa potência global, nem muito menos, no líder do sistema mundial.
ii. Terminou definitivamente o tempo dos “pequenos países” conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá - daqui para frente -uma espécie de “guerra de posições” permanente entre grandes “países continentais”, como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também, o caso da China, Rússia, Índia e Brasil. Nesta disputa, os EUA já ocupam o epicentro do sistema mundial, mas mesmo antes que os outros quatro adquiram países a capacidade militar e financeira indispensável à condição de potencia global, eles já controlam em conjunto cerca de 1/3 do território, e quase 1/2 da população mundial.
iii. Por fim, a definição da estratégia internacional do Brasil não depende da “taxa de declínio” dos EUA, mas não pode desconhecer a existência do poder americano. Assim mesmo, gostem ou não os conservadores, o Brasil já entrou no grupo dos estados e das economias nacionais que fazem parte do “caleidoscópio central” do sistema, onde todos competem com todos, e todas as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país, e do seu projeto de mudança do sistema mundial.
José Luís Fiori
Durante a primeira década do século XXI, o Brasil conquistou um razoável grau de liberdade, para poder definir autonomamente sua estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional, num mundo em plena transformação. O sistema mundial saiu da crise econômica de 2008, dividido em três blocos cada vez mais distantes, do ponto de vista de suas políticas e da sua velocidade de recuperação: os EUA, a União Europeia e algumas grandes economias nacionais emergentes, entre as quais se inclui o Brasil. Mas do ponto de vista geopolítico, o sistema mundial ainda segue vivendo uma difícil transição - depois do fim da Guerra Fria - de volta ao seu padrão de funcionamento original. Desde o início do século XIX, o sistema inter-estatal capitalista se expandiu liderado pela Grã Bretanha, e por mais algumas potências europeias, cuja competição e expansão coletiva foi abrindo portas para o surgimento de novos “poderes imperiais”, como foi o caso da Prússia e da Rússia, num primeiro momento, e da Alemanha, EUA e Japão, meio século mais tarde. Da mesma forma como aconteceu depois da “crise americana” da década de 1970.
Depois da derrota do Vietnã, e da reaproximação com a China, entre 1971 e 1973, o poder americano cresceu de forma contínua, construindo uma extensa rede de alianças e uma infra-estrutura militar global que lhe permite até o hoje o controle quase monopólico, naval, aéreo e espacial de todo o mundo. Mas ao mesmo tempo, esta expansão do poder americano contribuiu para a “ressurreição” militar da Alemanha e do Japão e para a autonomização e fortalecimento da China, Índia, Irã e Turquia, além do retorno da Rússia, ao “grande jogo” da Ásia Central e do Oriente Médio. Os reveses militares dos Estados Unidos na primeira década do século desaceleraram o seu projeto imperial. Mas uma coisa é certa, os EUA não abdicarão voluntariamente do poder global que já conquistaram e não renunciarão à sua expansão contínua, no futuro. Qualquer possibilidade de limitação deste poder só poderá vir do aumento da capacidade conjunta de resistência das novas potências.
Por outro lado, depois do fim do Sistema de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a economia americana cresceu de forma quase contínua, até o início do século XXI. Ao associar-se com a economia chinesa, a estratégia norte-americana diminuiu a importância relativa da Alemanha e do Japão, para sua “máquina de acumulação”, em escala global. E, ao mesmo tempo, contribuiu para transformar a Ásia no principal centro de acumulação capitalista do mundo, transformando a China numa economia nacional com enorme poder de gravitação sobre toda a economia mundial.
Esta nova geometria política e econômica do sistema mundial, se consolidou na primeira década do século XXI, e deve se manter nos próximos anos. Os Estados Unidos manterão sua centralidade dentro do sistema como única potência capaz de intervir em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo e que emite a moeda de referencia internacional. Desunida, a União Europeia terá um papel secundário, como coadjuvante dos Estados Unidos, sobretudo se a Rússia e a Turquia aceitarem participar do “escudo europeu anti-mísseis”, a convite dos EUA e da OTAN. Neste novo contexto internacional, a Índia, o Brasil, a Turquia, o Irã, a África do Sul, e talvez a Indonésia, deverão aumentar o seu poder regional e global, em escalas diferentes, mas ainda não terão por muito tempo, capacidade de projetar seu poder militar além das suas fronteiras regionais.
De qualquer forma, três coisas se podem dizer com bastante certeza, neste início da segunda década do século XXI:
i. Não existe nenhuma “lei” que defina a sucessão obrigatória e a data do fim da supremacia americana. Mas é absolutamente certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China numa potência global, nem muito menos, no líder do sistema mundial.
ii. Terminou definitivamente o tempo dos “pequenos países” conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá - daqui para frente -uma espécie de “guerra de posições” permanente entre grandes “países continentais”, como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também, o caso da China, Rússia, Índia e Brasil. Nesta disputa, os EUA já ocupam o epicentro do sistema mundial, mas mesmo antes que os outros quatro adquiram países a capacidade militar e financeira indispensável à condição de potencia global, eles já controlam em conjunto cerca de 1/3 do território, e quase 1/2 da população mundial.
iii. Por fim, a definição da estratégia internacional do Brasil não depende da “taxa de declínio” dos EUA, mas não pode desconhecer a existência do poder americano. Assim mesmo, gostem ou não os conservadores, o Brasil já entrou no grupo dos estados e das economias nacionais que fazem parte do “caleidoscópio central” do sistema, onde todos competem com todos, e todas as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país, e do seu projeto de mudança do sistema mundial.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
ECONOMIA CÂMBIO - A desvalorização do dólar, por José L. Fiori - Valor
BLOG
luisnassif, qua, 24/11/2010 - 10:20
Do Valor
Muito longe do equilíbrio
José Luís Fiori |
24/11/2010
"Toda situação hegemônica é transitória, e mais do que isto, é autodestrutiva, porque o próprio hegemon acaba se desfazendo das regras e instituições que criou, para poder seguir se expandindo e acumulando mais poder do que seus liderados".
J.L.F. "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações"
Ed.Boitempo, 2007, p:31
A recente decisão americana de desvalorizar sua moeda nacional não é nova nem surpreendente. Como tampouco, a transferência dos seus custos para o resto da economia mundial, e de forma particular, para a periferia monetário-financeira do sistema. Os EUA já fizeram a mesma coisa, em 1973, quando abandonaram o sistema de Bretton Woods, provocando a primeira grande recessão mundial, depois da II Guerra. As analogias históricas são perigosas e devem ser utilizadas com cautela, mas não há dúvida que a situação e o comportamento atual dos EUA se parecem muito com o que ocorreu na década de 1970. Como naquele momento, uma vez mais os EUA estão envolvidos numa guerra sem solução e enfrentam uma grave crise econômica. E ao mesmo tempo, seu establishment está rachado e sua sociedade está atravessando uma luta política que deve se prolongar por muito tempo. E uma vez mais, os EUA optaram por uma resposta estratégica que combina a manipulação do valor do dólar com uma "escalada" da sua presença militar ao redor do mundo. E não é impossível que ainda façam um acordo estratégico com a Rússia e um acordo de paz com o Irã, envolvendo toda a Ásia Central. E que adotem, novamente, a estratégia do "dólar forte", do final dos anos 70.
s é óbvio que existem algumas diferenças fundamentais: por exemplo, a relação econômica dos EUA com a China é totalmente diferente da relação que os EUA tiveram com a URSS, e no século passado não havia nenhum país - nem a Comunidade Europeia - com força para contestar ou resistir às decisões da política monetária americana. Por isso, não é fácil de prever o futuro das novas iniciativas estratégicas dos EUA, mas com certeza, não é necessário que os países latino-americanos repitam os mesmos erros que conduziram à sua estagnação econômica e ao retrocesso neoliberal dos anos 80 e 90, do século passado. O futuro está aberto e existem múltiplas alternativas sobre a mesa, mas neste momento é necessário que os governantes tenham uma visão estratégica que transcenda o debate puramente econômico, cujos argumentos e alternativas fundamentais se repetem há cerca de 200 anos. A falta dessa visão mais ampla é que explica a repetição - como na década de 70 - de algumas propostas absolutamente ingênuas ou inviáveis, dentro do sistema político-econômico mundial em que vivemos. Como é o caso, por exemplo, de decretar o fim da hegemonia do dólar ou de criar uma nova moeda supranacional, ou ainda, de estabelecer uma meta fixa e consensual para os desequilíbrios das contas correntes nacionais, ou ainda pior, de voltar ao padrão-ouro ou delegar ao FMI a função de governo monetário do mundo. Sem falar nos que acreditam que os EUA e a China possam mudar suas políticas econômicas nacionais, por conta da "pressão amiga". Propostas e expectativas que pecam pelo desconhecimento ou negação ideológica de alguns aspectos centrais da economia política da moeda dentro do sistema inter-estatal e capitalista. Assim, por exemplo:
1) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas soberanas não são apenas um "bem público". Envolvem relações sociais e de poder entre seus emissores e os seus detentores, entre credores e devedores, entre poupadores e investidores, e assim por diante. E por trás de toda moeda e de todo sistema monetário esconde-se e se reflete sempre uma determinada equação e correlação de poder, nacional ou internacional.
2) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas de referencia internacional não são apenas uma escolha dos mercados. São produto de uma longa luta de conquista e dominação de territórios supranacionais e um instrumento estratégico de poder dos seus estados emissores e dos seus capitais financeiros.
3) Com o desconhecimento ou negação de que nesse sistema interestatal, a contradição implícita no uso de moedas nacionais como referencia internacional, é uma contradição co-constitutiva e inseparável do próprio sistema. A moeda pode até mudar, mas a regra seguirá sendo a mesma, com o Yuan, o Yen, o Euro, ou o Real, dá no mesmo.
4) Por fim, com o desconhecimento ou a negação de que faz parte do poder do emissor da "moeda internacional", transferir os custos de seus ajustes internos para o resto da economia mundial e, em particular para sua periferia monetário-financeira. Cabendo aos seus governantes a escolha de suas respostas soberanas.
Não é fácil de pensar um sistema onde não existe nenhuma possibilidade de equilíbrio estável. Mas um estadista não pode desconhecer que dentro do "sistema interestatal capitalista", jamais haverá equilíbrio econômico estável, ou coordenação política permanente.
José Luís Fiori é professor titular e coordenador do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007. Escreve mensalmente às quartas-feiras.
luisnassif, qua, 24/11/2010 - 10:20
Do Valor
Muito longe do equilíbrio
José Luís Fiori |
24/11/2010
"Toda situação hegemônica é transitória, e mais do que isto, é autodestrutiva, porque o próprio hegemon acaba se desfazendo das regras e instituições que criou, para poder seguir se expandindo e acumulando mais poder do que seus liderados".
J.L.F. "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações"
Ed.Boitempo, 2007, p:31
A recente decisão americana de desvalorizar sua moeda nacional não é nova nem surpreendente. Como tampouco, a transferência dos seus custos para o resto da economia mundial, e de forma particular, para a periferia monetário-financeira do sistema. Os EUA já fizeram a mesma coisa, em 1973, quando abandonaram o sistema de Bretton Woods, provocando a primeira grande recessão mundial, depois da II Guerra. As analogias históricas são perigosas e devem ser utilizadas com cautela, mas não há dúvida que a situação e o comportamento atual dos EUA se parecem muito com o que ocorreu na década de 1970. Como naquele momento, uma vez mais os EUA estão envolvidos numa guerra sem solução e enfrentam uma grave crise econômica. E ao mesmo tempo, seu establishment está rachado e sua sociedade está atravessando uma luta política que deve se prolongar por muito tempo. E uma vez mais, os EUA optaram por uma resposta estratégica que combina a manipulação do valor do dólar com uma "escalada" da sua presença militar ao redor do mundo. E não é impossível que ainda façam um acordo estratégico com a Rússia e um acordo de paz com o Irã, envolvendo toda a Ásia Central. E que adotem, novamente, a estratégia do "dólar forte", do final dos anos 70.
s é óbvio que existem algumas diferenças fundamentais: por exemplo, a relação econômica dos EUA com a China é totalmente diferente da relação que os EUA tiveram com a URSS, e no século passado não havia nenhum país - nem a Comunidade Europeia - com força para contestar ou resistir às decisões da política monetária americana. Por isso, não é fácil de prever o futuro das novas iniciativas estratégicas dos EUA, mas com certeza, não é necessário que os países latino-americanos repitam os mesmos erros que conduziram à sua estagnação econômica e ao retrocesso neoliberal dos anos 80 e 90, do século passado. O futuro está aberto e existem múltiplas alternativas sobre a mesa, mas neste momento é necessário que os governantes tenham uma visão estratégica que transcenda o debate puramente econômico, cujos argumentos e alternativas fundamentais se repetem há cerca de 200 anos. A falta dessa visão mais ampla é que explica a repetição - como na década de 70 - de algumas propostas absolutamente ingênuas ou inviáveis, dentro do sistema político-econômico mundial em que vivemos. Como é o caso, por exemplo, de decretar o fim da hegemonia do dólar ou de criar uma nova moeda supranacional, ou ainda, de estabelecer uma meta fixa e consensual para os desequilíbrios das contas correntes nacionais, ou ainda pior, de voltar ao padrão-ouro ou delegar ao FMI a função de governo monetário do mundo. Sem falar nos que acreditam que os EUA e a China possam mudar suas políticas econômicas nacionais, por conta da "pressão amiga". Propostas e expectativas que pecam pelo desconhecimento ou negação ideológica de alguns aspectos centrais da economia política da moeda dentro do sistema inter-estatal e capitalista. Assim, por exemplo:
1) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas soberanas não são apenas um "bem público". Envolvem relações sociais e de poder entre seus emissores e os seus detentores, entre credores e devedores, entre poupadores e investidores, e assim por diante. E por trás de toda moeda e de todo sistema monetário esconde-se e se reflete sempre uma determinada equação e correlação de poder, nacional ou internacional.
2) Com o desconhecimento ou negação de que as moedas de referencia internacional não são apenas uma escolha dos mercados. São produto de uma longa luta de conquista e dominação de territórios supranacionais e um instrumento estratégico de poder dos seus estados emissores e dos seus capitais financeiros.
3) Com o desconhecimento ou negação de que nesse sistema interestatal, a contradição implícita no uso de moedas nacionais como referencia internacional, é uma contradição co-constitutiva e inseparável do próprio sistema. A moeda pode até mudar, mas a regra seguirá sendo a mesma, com o Yuan, o Yen, o Euro, ou o Real, dá no mesmo.
4) Por fim, com o desconhecimento ou a negação de que faz parte do poder do emissor da "moeda internacional", transferir os custos de seus ajustes internos para o resto da economia mundial e, em particular para sua periferia monetário-financeira. Cabendo aos seus governantes a escolha de suas respostas soberanas.
Não é fácil de pensar um sistema onde não existe nenhuma possibilidade de equilíbrio estável. Mas um estadista não pode desconhecer que dentro do "sistema interestatal capitalista", jamais haverá equilíbrio econômico estável, ou coordenação política permanente.
José Luís Fiori é professor titular e coordenador do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007. Escreve mensalmente às quartas-feiras.
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sexta-feira, 1 de outubro de 2010
FIORI: Uma revolução intelectual
CARTAMAIOR
Certa vez, Jean Paul Sartre disse que “era mais fácil ser escravo do que senhor”, e talvez, de fato, seja mais fácil pensar como escravo, do que como senhor. Mas depois da revolução intelectual em curso na America Latina, já não há mais necessidade de ninguém seguir pensando como escravo, ou mesmo, como aluno primário das “civilizações superiores”.
José Luís Fiori
“Enquanto se pensava que com as leis de Newton e as que lhe sucederam podíamos compreender o universo, o diálogo com as outras civilizações era um diálogo de professor e aluno, aluno primário.”
Ilya Prigogine, “Nome de Deuses”, Ed. UNESP, 2002, p:64
Na segunda metade do Século XX, o físico norte-americano, Thomas Kuhn, e o químico russo, Ilya Prigogine, revolucionaram a epistemologia e a história da ciência, colocando uma pá de cal sobre a visão positivista do conhecimento, e colocando um ponto de interrogação definitivo sobre todas as teorias mecanicistas e deterministas, a respeito do mundo físico, do cosmos e das sociedades humanas.
Para Thomas Kuhn, o avanço da ciência não é acumulativo, nem se dá de forma linear e contínua. Pelo contrário, se dá de forma descontínua e através de grandes rupturas, ou “revoluções científicas”, que assinalam um momento de “mudança de paradigmas”, que são definidos por Kuhn, como uma maneira particular de olhar o mundo, que articula de forma coerente, problemas, conceitos, métodos de pesquisa e critérios de verdade, que só são válidos dentro de determinadas comunidades específicas, e durante períodos determinados de tempo.
Por outro lado, Ilya Prigogine se rebelou contra o determinismo e o mecanicismo das teorias de Isaac Newton e Albert Einstein, e demonstrou que a irreversibilidade do tempo, a desordem e a incerteza são elementos essenciais e construtivos, do mundo físico e biológico. Ou seja: Kuhn defende a historicidade da ciência e dos seus critérios de verdade; e Prigogine defende a importância da “flecha do tempo” e das “escolhas”, para a construção do futuro de um universo físico e de uma sociedade humana, que são rigorosamente imprevisíveis.
Por analogia, também é possível falar da existência de “paradigmas”, e de “revoluções intelectuais”, no campo do pensamento social, onde se formam e se transformam os valores, conceitos e critérios de verdade, que as sociedades humanas utilizam para interpretar o seu passado e o seu presente, e para descodificar e responder às incertezas do seu futuro. São modelos, enfoques e crenças que atravessam o pensamento acadêmico e o pensamento político – de esquerda e de direita - e também fazem parte do senso comum e da formação da opinião publica.
Estes “paradigmas sociais”, também são válidos apenas para certas comunidades específicas, e durante um certo período, por mais longo que ele possa vir a ser. Com o passar do tempo e das mudanças sociais, entretanto, estes paradigmas “societários” perdem fôlego, se esclerosam, e acabam sendo superados por novas “visões do mundo”, mais capazes de compreender e enfrentar os desafios criados pela chegada do futuro.
Pois bem: tudo indica que a América Latina e o Brasil estão vivendo um destes momentos de “revolução intelectual”, e de mudança da sua forma de olhar para si mesmo e para o mundo. De um lado, o que se vê, é um “paradigma intelectual” em franco declínio, incluindo algumas idéias e teorias de esquerda e de direita, que já não dão conta das transformações do continente, e do Brasil, em particular. Seus conceitos e seus debates parecem velhos e repetitivos, e por isto, filtram as novidades trazidas pelo futuro, de forma extremamente reativa, defensiva e medrosa.
Alguns “intelectuais orgânicos” deste velho paradigma vivem fascinados pela idéia do “fim”, seja da democracia, do capitalismo, das espécies, ou da própria terra; outros, estão sempre lamentando as “imperfeições constitutivas” da sociedade latino-americana, tão distantes dos seus modelos ideais de sociedade civil, de classe social, de partido político, ou mesmo, de estado e de capitalismo, E quase todos vivem atormentados com medo do populismo, do corporativismo, do nacional-desenvolvimentismo, do estatismo, entre tantos outros fantasmas do passado. Sem se dar conta que este conceitos e algumas de suas velhas teorias sociológicas e econômicas perderam aderência aos fatos, e já não demonstram nenhuma eficácia como ferramentas analíticas, e como instrumentos estratégicas, voltados para a construção do futuro.
Apesar disto, entretanto, ainda não se pode falar do aparecimento e da existência de novas teorias consistentes, e o próprio continente latino-americano ainda não superou alguns de seus grandes desafios sociais e econômicos. Mas com certeza já se pode falar de uma “revolução intelectual” e de um novo “paradigma”, porque já se consolidou uma nova maneira do continente olhar para si mesmo, para o mundo e para os seus desafios, assumidos como oportunidades e como escolhas, que devem ser feitas, a partir de sua própria identidade, e de seus próprios interesses.
Certa vez, Jean Paul Sartre disse que “era mais fácil ser escravo do que senhor”, e talvez, de fato, seja mais fácil pensar como escravo, do que como senhor. Mas depois desta “revolução intelectual” da America Latina, já não há mais necessidade de ninguém seguir pensando como escravo, ou mesmo, como aluno primário das “civilizações superiores”.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Certa vez, Jean Paul Sartre disse que “era mais fácil ser escravo do que senhor”, e talvez, de fato, seja mais fácil pensar como escravo, do que como senhor. Mas depois da revolução intelectual em curso na America Latina, já não há mais necessidade de ninguém seguir pensando como escravo, ou mesmo, como aluno primário das “civilizações superiores”.
José Luís Fiori
“Enquanto se pensava que com as leis de Newton e as que lhe sucederam podíamos compreender o universo, o diálogo com as outras civilizações era um diálogo de professor e aluno, aluno primário.”
Ilya Prigogine, “Nome de Deuses”, Ed. UNESP, 2002, p:64
Na segunda metade do Século XX, o físico norte-americano, Thomas Kuhn, e o químico russo, Ilya Prigogine, revolucionaram a epistemologia e a história da ciência, colocando uma pá de cal sobre a visão positivista do conhecimento, e colocando um ponto de interrogação definitivo sobre todas as teorias mecanicistas e deterministas, a respeito do mundo físico, do cosmos e das sociedades humanas.
Para Thomas Kuhn, o avanço da ciência não é acumulativo, nem se dá de forma linear e contínua. Pelo contrário, se dá de forma descontínua e através de grandes rupturas, ou “revoluções científicas”, que assinalam um momento de “mudança de paradigmas”, que são definidos por Kuhn, como uma maneira particular de olhar o mundo, que articula de forma coerente, problemas, conceitos, métodos de pesquisa e critérios de verdade, que só são válidos dentro de determinadas comunidades específicas, e durante períodos determinados de tempo.
Por outro lado, Ilya Prigogine se rebelou contra o determinismo e o mecanicismo das teorias de Isaac Newton e Albert Einstein, e demonstrou que a irreversibilidade do tempo, a desordem e a incerteza são elementos essenciais e construtivos, do mundo físico e biológico. Ou seja: Kuhn defende a historicidade da ciência e dos seus critérios de verdade; e Prigogine defende a importância da “flecha do tempo” e das “escolhas”, para a construção do futuro de um universo físico e de uma sociedade humana, que são rigorosamente imprevisíveis.
Por analogia, também é possível falar da existência de “paradigmas”, e de “revoluções intelectuais”, no campo do pensamento social, onde se formam e se transformam os valores, conceitos e critérios de verdade, que as sociedades humanas utilizam para interpretar o seu passado e o seu presente, e para descodificar e responder às incertezas do seu futuro. São modelos, enfoques e crenças que atravessam o pensamento acadêmico e o pensamento político – de esquerda e de direita - e também fazem parte do senso comum e da formação da opinião publica.
Estes “paradigmas sociais”, também são válidos apenas para certas comunidades específicas, e durante um certo período, por mais longo que ele possa vir a ser. Com o passar do tempo e das mudanças sociais, entretanto, estes paradigmas “societários” perdem fôlego, se esclerosam, e acabam sendo superados por novas “visões do mundo”, mais capazes de compreender e enfrentar os desafios criados pela chegada do futuro.
Pois bem: tudo indica que a América Latina e o Brasil estão vivendo um destes momentos de “revolução intelectual”, e de mudança da sua forma de olhar para si mesmo e para o mundo. De um lado, o que se vê, é um “paradigma intelectual” em franco declínio, incluindo algumas idéias e teorias de esquerda e de direita, que já não dão conta das transformações do continente, e do Brasil, em particular. Seus conceitos e seus debates parecem velhos e repetitivos, e por isto, filtram as novidades trazidas pelo futuro, de forma extremamente reativa, defensiva e medrosa.
Alguns “intelectuais orgânicos” deste velho paradigma vivem fascinados pela idéia do “fim”, seja da democracia, do capitalismo, das espécies, ou da própria terra; outros, estão sempre lamentando as “imperfeições constitutivas” da sociedade latino-americana, tão distantes dos seus modelos ideais de sociedade civil, de classe social, de partido político, ou mesmo, de estado e de capitalismo, E quase todos vivem atormentados com medo do populismo, do corporativismo, do nacional-desenvolvimentismo, do estatismo, entre tantos outros fantasmas do passado. Sem se dar conta que este conceitos e algumas de suas velhas teorias sociológicas e econômicas perderam aderência aos fatos, e já não demonstram nenhuma eficácia como ferramentas analíticas, e como instrumentos estratégicas, voltados para a construção do futuro.
Apesar disto, entretanto, ainda não se pode falar do aparecimento e da existência de novas teorias consistentes, e o próprio continente latino-americano ainda não superou alguns de seus grandes desafios sociais e econômicos. Mas com certeza já se pode falar de uma “revolução intelectual” e de um novo “paradigma”, porque já se consolidou uma nova maneira do continente olhar para si mesmo, para o mundo e para os seus desafios, assumidos como oportunidades e como escolhas, que devem ser feitas, a partir de sua própria identidade, e de seus próprios interesses.
Certa vez, Jean Paul Sartre disse que “era mais fácil ser escravo do que senhor”, e talvez, de fato, seja mais fácil pensar como escravo, do que como senhor. Mas depois desta “revolução intelectual” da America Latina, já não há mais necessidade de ninguém seguir pensando como escravo, ou mesmo, como aluno primário das “civilizações superiores”.
José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Uma história de Fiori e Paulo Freire
blog do
luisnassif, qui, 30/09/2010 - 11:13
Por Corinta Geraldi
É de fato um enorme prazer acompanhar esse debate suscitado pelo artigo de Fiori.
Talvez vcs não saibam, (afinal essa é uma informação de quem é do campo da educação), Fiori foi o prefaciador da primeira edição do livro mais importante da obra de Paulo Freire: Pedagogia do Oprimido, lançado em espanhol pela Siglo XXI, em 1970. Devido a ditadura (ditabrana para a FSP) esse livro só foi editado no Brasil em 1975.
Porém, em 70 mesmo teve sua primeira edição em inglês, lançada nos Estados Unidos, onde foi muito bem recebido pelo pensamento radical americano das universidades mais importantes, como Harvard, entre outras. Em 1973, seu livro já estava na nona edição (cf Palma Fº,1992) e foi se constituir na obra catalisadora do movimento que produz a ruptura com o paradigma técnico-linear, concebido como uma "peça" técnica e neutra, na Primeira Conferência sobre Teoria de Currículo, em Nova York , ocorrida nesse ano (cf Jose Luiz Domingues, 1988).
urioso de tudo isso é que a reforma educacional da ditadura militar aqui no Brasil, foi buscar inspiração nesse paradigma técnico-linear, que estava sendo duramente criticado na matriz, com base nas reflexões de “nosso intelectual orgânico” Paulo Freire. Diz Palma:
Curiosa e triste ironia essa que a História nos pregou. Exatamente no momento em que, no Brasil, o pensamento educacional oficial se esforçava em adotar nos currículos oficiais o paradigma técnico-linear, através da elaboração pelas Unidades da Federação, dos Guias Curriculares, o citado paradigma começava a ser criticado nos seus fundamentos, e a partir das propostas educacionais de um emérito educador brasileiro, que naquele momento estava impedido de aqui expor suas idéias.(Palma Filho,1992, p.33).
Pois é... como disse meu querido amigo Tomaz Tadeu S (1992), durante muitos anos absorvemos e consumimos, de forma constrangedoramente acrítica, as formulações americanas sobre currículo, mas presunçosamente ignoramos seus desenvolvimentos posteriores.
Retorno ao tema pra dizer que tem, sim, uma certa intectualidade brasileira, mesmo pós-ditadura, que nunca deu ao Paulo Freire o valor e o significado que suas idéias tiveram no mundo todo. Só pra completar, qdo Paulo Freire morreu, em 1997, esse livro já tinha atingido a cifra de um milhão de exemplares em língua inglesa.
Sempre ligado nos movimentos sociais das periferias (do primeiro mundo, America latina e África), ele atualizou sua obra a partir de reflexões sobre/com as revoluções africanas e com a influência das discussões de gênero e ecológicas.
Paulo Freire foi um intelectual original que irritou profundamente um certo pensamento de “alunos forever” não de americanos, mas dos conhecimentos produzidos no primeiro mundo, ou eurocentristas.
Sobre os intelectuais latino-americanos emergentes, Paulo Freire é um exemplo pela coragem de ser sábio (Benjamin diz que a sabedoria é o lado épico da verdade), criativo e envolvido com seu complexo entorno.
Concluindo...
Não sei dizer se há uma revolução em curso ou se o conceito de Kuhn é pertinente ao caso, mas chamaria um outro intelectual tb original e por isso criticado nos meios acadêmicos, Boaventura de Souza Santos, entusiasta dos Fóruns Sociais Mundiais, para evocar a “sociologia das ausências e emergências” para talvez nos ajudar a compreender (e para mim esta é a questão) o que está ocorrendo na America Latina com suas mudanças de ordem econômica, social, cultural, ecológica e políticas e para onde apontam. As teorias estabelecidas de que dispomos dão conta?
Acho que não. E tem uma coisa curiosa q diz o Kuhn. Aquele pensador que pesquisa num paradigma já assentado e reconhecido, não consegue “ver o real” de fora desse paradigma e está fadado a defendê-lo até o fim.
luisnassif, qui, 30/09/2010 - 11:13
Por Corinta Geraldi
É de fato um enorme prazer acompanhar esse debate suscitado pelo artigo de Fiori.
Talvez vcs não saibam, (afinal essa é uma informação de quem é do campo da educação), Fiori foi o prefaciador da primeira edição do livro mais importante da obra de Paulo Freire: Pedagogia do Oprimido, lançado em espanhol pela Siglo XXI, em 1970. Devido a ditadura (ditabrana para a FSP) esse livro só foi editado no Brasil em 1975.
Porém, em 70 mesmo teve sua primeira edição em inglês, lançada nos Estados Unidos, onde foi muito bem recebido pelo pensamento radical americano das universidades mais importantes, como Harvard, entre outras. Em 1973, seu livro já estava na nona edição (cf Palma Fº,1992) e foi se constituir na obra catalisadora do movimento que produz a ruptura com o paradigma técnico-linear, concebido como uma "peça" técnica e neutra, na Primeira Conferência sobre Teoria de Currículo, em Nova York , ocorrida nesse ano (cf Jose Luiz Domingues, 1988).
urioso de tudo isso é que a reforma educacional da ditadura militar aqui no Brasil, foi buscar inspiração nesse paradigma técnico-linear, que estava sendo duramente criticado na matriz, com base nas reflexões de “nosso intelectual orgânico” Paulo Freire. Diz Palma:
Curiosa e triste ironia essa que a História nos pregou. Exatamente no momento em que, no Brasil, o pensamento educacional oficial se esforçava em adotar nos currículos oficiais o paradigma técnico-linear, através da elaboração pelas Unidades da Federação, dos Guias Curriculares, o citado paradigma começava a ser criticado nos seus fundamentos, e a partir das propostas educacionais de um emérito educador brasileiro, que naquele momento estava impedido de aqui expor suas idéias.(Palma Filho,1992, p.33).
Pois é... como disse meu querido amigo Tomaz Tadeu S (1992), durante muitos anos absorvemos e consumimos, de forma constrangedoramente acrítica, as formulações americanas sobre currículo, mas presunçosamente ignoramos seus desenvolvimentos posteriores.
Retorno ao tema pra dizer que tem, sim, uma certa intectualidade brasileira, mesmo pós-ditadura, que nunca deu ao Paulo Freire o valor e o significado que suas idéias tiveram no mundo todo. Só pra completar, qdo Paulo Freire morreu, em 1997, esse livro já tinha atingido a cifra de um milhão de exemplares em língua inglesa.
Sempre ligado nos movimentos sociais das periferias (do primeiro mundo, America latina e África), ele atualizou sua obra a partir de reflexões sobre/com as revoluções africanas e com a influência das discussões de gênero e ecológicas.
Paulo Freire foi um intelectual original que irritou profundamente um certo pensamento de “alunos forever” não de americanos, mas dos conhecimentos produzidos no primeiro mundo, ou eurocentristas.
Sobre os intelectuais latino-americanos emergentes, Paulo Freire é um exemplo pela coragem de ser sábio (Benjamin diz que a sabedoria é o lado épico da verdade), criativo e envolvido com seu complexo entorno.
Concluindo...
Não sei dizer se há uma revolução em curso ou se o conceito de Kuhn é pertinente ao caso, mas chamaria um outro intelectual tb original e por isso criticado nos meios acadêmicos, Boaventura de Souza Santos, entusiasta dos Fóruns Sociais Mundiais, para evocar a “sociologia das ausências e emergências” para talvez nos ajudar a compreender (e para mim esta é a questão) o que está ocorrendo na America Latina com suas mudanças de ordem econômica, social, cultural, ecológica e políticas e para onde apontam. As teorias estabelecidas de que dispomos dão conta?
Acho que não. E tem uma coisa curiosa q diz o Kuhn. Aquele pensador que pesquisa num paradigma já assentado e reconhecido, não consegue “ver o real” de fora desse paradigma e está fadado a defendê-lo até o fim.
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