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sábado, 25 de junho de 2011
quarta-feira, 22 de junho de 2011
segunda-feira, 9 de maio de 2011
Karl Marx - Eduardo Mancuso - cartamaior -
Dois séculos depois do desaparecimento do maior pensador socialista de todos os tempos, em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta, podemos concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.
Eduardo Mancuso
“Transformar o mundo”, disse Marx, “mudar a vida”, disse Rimbaud – para nós essas duas palavras de ordem são apenas uma.
(André Breton)
Karl Marx nasce em 5 de maio de 1818, em Trier, na Renânia, filho de judeus alemães convertidos ao cristianismo. Seu pai era um liberal admirador do Iluminismo e a família Marx tinha como vizinho o alto funcionário do governo da Prússia, barão Ludwig Von Westphalen, culto aristocrata, pai de Jenny, futura esposa do jovem Marx.
Em 1841, após alguns anos na universidade – em Bonn e Berlim – onde conhece a obra filosófica de Hegel, Marx aprova sua tese de doutorado sobre os pensadores gregos Demócrito e Epicuro, mas o reacionário governo prussiano recusa uma cátedra ao jovem doutor. Ele assume então a direção do jornal A Gazeta Renana, mas sua linha editorial democrático radical leva o governo a fechá-lo. Em 1843, casa-se com Jenny e emigra para Paris, onde conhece Engels , mergulha na história da Revolução Francesa e do socialismo e na efervescência das sociedades e dos clubes operários.
Em 1844, Marx colabora na publicação dos Anais Franco-Alemães e redige os Manuscritos econômico-filosóficos, também conhecidos como Manuscritos de Paris. Nessa obra de juventude, Marx define o comunismo como a superação da “pré-história” humana, e faz uma lúcida previsão:
Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária uma ação comunista efetiva. A história virá trazê-la, e aquele movimento que já conhecemos em pensamento como um movimento que se supera a si mesmo percorrerá na realidade um processo muito duro e muito extenso.
Em 1845, Marx e Friederich Engels já haviam estabelecido uma sólida amizade e uma parceria política e intelectual que duraria décadas, e que se inicia com a elaboração a quatro mãos de A sagrada família, cujo subtítulo era Crítica de uma crítica crítica (apresentação sarcástica das idéias metafísicas de alguns filósofos idealistas alemães), em que definem a essência da sua concepção humanista e materialista da história:
A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo...
Nesse mesmo ano, expulso da França, Marx vai para Bruxelas, Bélgica. Ele escreve, então, as geniais e concisas Teses sobre Feuerbach, breves anotações feitas pelo jovem de 27 anos em seu caderno, marcadas por um humanismo radical e revolucionário que inaugura a filosofia da práxis. Engels as chamou de “germe genial de uma nova concepção do mundo”.
Com as Teses sobre Feuerbach, Marx lança as bases de “um novo materialismo”, profundamente dialético e distinto do materialismo vulgar existente até então. Na tese 2, Marx afirma a prática como critério de verdade:
A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento.
Na tese 3, a prática revolucionária aparece como síntese da mudança do mundo e da autotransformação:
A doutrina materialista da mudança das circunstâncias e da educação se esquece de que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser interpretada e racionalmente compreendida como prática revolucionária.
E conclui suas anotações com a célebre tese 11:
Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo.
Em 1846, Marx e Engels concluem mais um trabalho conjunto, os dois volumes de A ideologia alemã. O manuscrito não foi publicado e ficou entregue “à crítica roedora dos ratos” segundo os próprios autores (sua primeira edição vem a público apenas no século XX). A ideologia alemã apresenta a definição clássica sobre a dominação ideológica:
As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.
Em 1847, Marx publica A miséria da filosofia, uma crítica da doutrina contida na “filosofia da miséria” do pensador anarquista Proudhon. Segundo Engels A miséria da filosofia também apresenta “os princípios fundamentais de suas novas concepções históricas e econômicas”; esboça também a teoria sobre o sujeito revolucionário:
De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. (...) A condição de emancipação da classe operária é a abolição de todas as classes (...). No transcurso de seu desenvolvimento, a classe operária substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; e não existirá já em poder político propriamente dito, pois o poder político é, precisamente, a expressão oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil. Enquanto isso, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é a luta de uma classe inteira contra outra classe, luta que, levada a sua mais alta expressão, implica numa revolução total.
Marx e Engels ingressam na Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos, organização de trabalhadores alemães emigrados), e redigem o programa do movimento. O Manifesto do Partido Comunista fica pronto e é editado no início de 1848, pouco antes de explodir as revoluções européias, a Primavera dos Povos, que apesar da derrota abre um novo período da luta de classes em escala internacional. Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo, assim inicia o mais famoso panfleto político de todos os tempos, que apresenta como pressuposto que a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes, resume a dialética da modernidade com a metáfora tudo que é sólido desmancha no ar, e conclui com a palavra de ordem: Proletários de todos os países, uni-vos!
Antevisão genial da globalização capitalista, o Manifesto é mais atual hoje do que há 150 anos. Para o sociólogo Michael Lowy, a atualidade do Manifesto Comunista se origina de suas qualidades ao mesmo tempo críticas e emancipadoras, isto é, da unidade indissolúvel entre a análise do capitalismo e o chamado à sua destruição, entre o exame lúcido das contradições da sociedade burguesa e a utopia revolucionária de uma sociedade solidária e igualitária.
Ainda em 1848, Marx e Engels voltam para a Alemanha e se instalam em Colônia, onde lançam o jornal Nova Gazeta Renana, mas o processo revolucionário reflui e Marx faz o balanço político do movimento em As lutas de classes na França, no qual conclui que o fim do ciclo das revoluções burguesas abriria a época das revoluções proletárias. Em março de 1850, na Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, Marx utiliza pela primeira vez o conceito de “revolução permanente” como o processo que levaria “até a conquista do poder estatal pelo proletariado” e “não em um único país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro”.
A partir daí, Marx fixa residência em Londres, onde passa anos na completa miséria, a ponto de algumas vezes não poder ir ao Museu Britânico, onde realiza suas pesquisas, em razão de ser obrigado a penhorar seu casaco de inverno para poder comprar papel e continuar escrevendo. Em 1852, ele escreve outra obra-prima, O dezoito brumário de Luis Bonaparte, sobre o golpe de estado de Napoleão III na França. As suas primeiras linhas são célebres:
Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (...) Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
Entre 1857-58, Marx redige vários manuscritos que dão origem aos chamados Grundrisse (Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política), que só serão conhecidos um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, publicados pelo Instituto Marx-Engels –Lenin de Moscou, sem maior divulgação. Devido à sua importância na evolução intelectual da obra teórica de Marx, os Grundrisse são considerados por alguns analistas como uma espécie de “elo perdido” entre o “jovem Marx” e a sua obra da maturidade.
Em 1859, Marx publica Contribuição à Crítica da Economia Política, e no seu famoso prefácio resume as linhas gerais da sua concepção materialista da história:
Nas minhas pesquisas, cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência... A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.
Durante sua primeira década em Londres, o único rendimento de Marx era como colaborador do jornal Tribuna de Nova York, mas após esse período dificílimo, Engels garante a ele uma ajuda financeira regular, e um grande amigo, o militante comunista Wilhelm Wolf, deixa-lhe uma pequena herança. Marx dedica a ele o primeiro volume de O Capital (1867), que não consegue concluir em vida (Engels edita o volume II em 1885 e o volume III em 1894). Antes de publicar O Capital, Marx termina os três volumes intitulados Teorias da mais-valia, em que analisa criticamente o pensamento teórico sobre a economia política, particularmente o de Adam Smith e David Ricardo.
Em 1864, um congresso realizado em Londres funda a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e Marx redige o seu Manifesto Inaugural, onde assinala que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Durante o breve período de existência da Internacional, Marx se dedica a sua organização e assume a condição de principal dirigente do Conselho Geral. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, quando o povo parisiense toma o poder na capital durante mais de dois meses e implanta um governo democrático revolucionário, mas é esmagado pelo exército francês em um banho de sangue, sela o destino da Internacional.
Para Marx, a Comuna é a primeira “ditadura do proletariado” da história (baseada no armamento do povo e no voto direto e universal), e mostra que o governo dos trabalhadores precisa destruir o Estado burguês e erguer um estado controlado democraticamente pelos produtores associados, destinado a desaparecer historicamente junto com a divisão da sociedade em classes sociais. Marx presta homenagem a Comuna de Paris publicando A guerra civil em França, e propõe ao Congresso da Internacional de 1872, realizado na Holanda, a transferência da sede da organização para os Estados Unidos, em razão da repressão generalizada que se segue ao massacre da Comuna; porém, a Primeira Internacional deixa de funcionar em 1876.
A partir da década de 1870, declina a capacidade de trabalho de Marx, em face do agravamento do seu estado de saúde, mas, preocupado com o programa adotado pelos socialistas alemães, em 1875 escreve a Crítica ao Programa de Gotha:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista media o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período, corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado.
Em 1882, no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, Marx realiza uma previsão ao mesmo tempo heterodoxa (para os padrões do socialismo até então) e genial: que uma revolução na Rússia pode constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra. Em 1883, após a morte de sua esposa e de sua filha mais velha, Marx falece e é enterrado no cemitério de Highgate.
Dois séculos depois do desaparecimento do “pensador socialista que maior influência exerceu sobre o pensamento filosófico e social e sobre a própria história da humanidade”, conforme ressalta verbete do Dicionário do Pensamento Marxista; após a social-democracia e o stalinismo terem sido remetidos para a “lata do lixo da história”; e em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta; podemos seguramente concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.
(*) Historiador e membro do comitê organizador do FSM Grande Porto Alegre.
Eduardo Mancuso
“Transformar o mundo”, disse Marx, “mudar a vida”, disse Rimbaud – para nós essas duas palavras de ordem são apenas uma.
(André Breton)
Karl Marx nasce em 5 de maio de 1818, em Trier, na Renânia, filho de judeus alemães convertidos ao cristianismo. Seu pai era um liberal admirador do Iluminismo e a família Marx tinha como vizinho o alto funcionário do governo da Prússia, barão Ludwig Von Westphalen, culto aristocrata, pai de Jenny, futura esposa do jovem Marx.
Em 1841, após alguns anos na universidade – em Bonn e Berlim – onde conhece a obra filosófica de Hegel, Marx aprova sua tese de doutorado sobre os pensadores gregos Demócrito e Epicuro, mas o reacionário governo prussiano recusa uma cátedra ao jovem doutor. Ele assume então a direção do jornal A Gazeta Renana, mas sua linha editorial democrático radical leva o governo a fechá-lo. Em 1843, casa-se com Jenny e emigra para Paris, onde conhece Engels , mergulha na história da Revolução Francesa e do socialismo e na efervescência das sociedades e dos clubes operários.
Em 1844, Marx colabora na publicação dos Anais Franco-Alemães e redige os Manuscritos econômico-filosóficos, também conhecidos como Manuscritos de Paris. Nessa obra de juventude, Marx define o comunismo como a superação da “pré-história” humana, e faz uma lúcida previsão:
Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária uma ação comunista efetiva. A história virá trazê-la, e aquele movimento que já conhecemos em pensamento como um movimento que se supera a si mesmo percorrerá na realidade um processo muito duro e muito extenso.
Em 1845, Marx e Friederich Engels já haviam estabelecido uma sólida amizade e uma parceria política e intelectual que duraria décadas, e que se inicia com a elaboração a quatro mãos de A sagrada família, cujo subtítulo era Crítica de uma crítica crítica (apresentação sarcástica das idéias metafísicas de alguns filósofos idealistas alemães), em que definem a essência da sua concepção humanista e materialista da história:
A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo...
Nesse mesmo ano, expulso da França, Marx vai para Bruxelas, Bélgica. Ele escreve, então, as geniais e concisas Teses sobre Feuerbach, breves anotações feitas pelo jovem de 27 anos em seu caderno, marcadas por um humanismo radical e revolucionário que inaugura a filosofia da práxis. Engels as chamou de “germe genial de uma nova concepção do mundo”.
Com as Teses sobre Feuerbach, Marx lança as bases de “um novo materialismo”, profundamente dialético e distinto do materialismo vulgar existente até então. Na tese 2, Marx afirma a prática como critério de verdade:
A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento.
Na tese 3, a prática revolucionária aparece como síntese da mudança do mundo e da autotransformação:
A doutrina materialista da mudança das circunstâncias e da educação se esquece de que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser interpretada e racionalmente compreendida como prática revolucionária.
E conclui suas anotações com a célebre tese 11:
Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo.
Em 1846, Marx e Engels concluem mais um trabalho conjunto, os dois volumes de A ideologia alemã. O manuscrito não foi publicado e ficou entregue “à crítica roedora dos ratos” segundo os próprios autores (sua primeira edição vem a público apenas no século XX). A ideologia alemã apresenta a definição clássica sobre a dominação ideológica:
As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.
Em 1847, Marx publica A miséria da filosofia, uma crítica da doutrina contida na “filosofia da miséria” do pensador anarquista Proudhon. Segundo Engels A miséria da filosofia também apresenta “os princípios fundamentais de suas novas concepções históricas e econômicas”; esboça também a teoria sobre o sujeito revolucionário:
De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. (...) A condição de emancipação da classe operária é a abolição de todas as classes (...). No transcurso de seu desenvolvimento, a classe operária substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; e não existirá já em poder político propriamente dito, pois o poder político é, precisamente, a expressão oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil. Enquanto isso, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é a luta de uma classe inteira contra outra classe, luta que, levada a sua mais alta expressão, implica numa revolução total.
Marx e Engels ingressam na Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos, organização de trabalhadores alemães emigrados), e redigem o programa do movimento. O Manifesto do Partido Comunista fica pronto e é editado no início de 1848, pouco antes de explodir as revoluções européias, a Primavera dos Povos, que apesar da derrota abre um novo período da luta de classes em escala internacional. Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo, assim inicia o mais famoso panfleto político de todos os tempos, que apresenta como pressuposto que a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes, resume a dialética da modernidade com a metáfora tudo que é sólido desmancha no ar, e conclui com a palavra de ordem: Proletários de todos os países, uni-vos!
Antevisão genial da globalização capitalista, o Manifesto é mais atual hoje do que há 150 anos. Para o sociólogo Michael Lowy, a atualidade do Manifesto Comunista se origina de suas qualidades ao mesmo tempo críticas e emancipadoras, isto é, da unidade indissolúvel entre a análise do capitalismo e o chamado à sua destruição, entre o exame lúcido das contradições da sociedade burguesa e a utopia revolucionária de uma sociedade solidária e igualitária.
Ainda em 1848, Marx e Engels voltam para a Alemanha e se instalam em Colônia, onde lançam o jornal Nova Gazeta Renana, mas o processo revolucionário reflui e Marx faz o balanço político do movimento em As lutas de classes na França, no qual conclui que o fim do ciclo das revoluções burguesas abriria a época das revoluções proletárias. Em março de 1850, na Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, Marx utiliza pela primeira vez o conceito de “revolução permanente” como o processo que levaria “até a conquista do poder estatal pelo proletariado” e “não em um único país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro”.
A partir daí, Marx fixa residência em Londres, onde passa anos na completa miséria, a ponto de algumas vezes não poder ir ao Museu Britânico, onde realiza suas pesquisas, em razão de ser obrigado a penhorar seu casaco de inverno para poder comprar papel e continuar escrevendo. Em 1852, ele escreve outra obra-prima, O dezoito brumário de Luis Bonaparte, sobre o golpe de estado de Napoleão III na França. As suas primeiras linhas são célebres:
Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (...) Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
Entre 1857-58, Marx redige vários manuscritos que dão origem aos chamados Grundrisse (Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política), que só serão conhecidos um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, publicados pelo Instituto Marx-Engels –Lenin de Moscou, sem maior divulgação. Devido à sua importância na evolução intelectual da obra teórica de Marx, os Grundrisse são considerados por alguns analistas como uma espécie de “elo perdido” entre o “jovem Marx” e a sua obra da maturidade.
Em 1859, Marx publica Contribuição à Crítica da Economia Política, e no seu famoso prefácio resume as linhas gerais da sua concepção materialista da história:
Nas minhas pesquisas, cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência... A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.
Durante sua primeira década em Londres, o único rendimento de Marx era como colaborador do jornal Tribuna de Nova York, mas após esse período dificílimo, Engels garante a ele uma ajuda financeira regular, e um grande amigo, o militante comunista Wilhelm Wolf, deixa-lhe uma pequena herança. Marx dedica a ele o primeiro volume de O Capital (1867), que não consegue concluir em vida (Engels edita o volume II em 1885 e o volume III em 1894). Antes de publicar O Capital, Marx termina os três volumes intitulados Teorias da mais-valia, em que analisa criticamente o pensamento teórico sobre a economia política, particularmente o de Adam Smith e David Ricardo.
Em 1864, um congresso realizado em Londres funda a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e Marx redige o seu Manifesto Inaugural, onde assinala que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Durante o breve período de existência da Internacional, Marx se dedica a sua organização e assume a condição de principal dirigente do Conselho Geral. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, quando o povo parisiense toma o poder na capital durante mais de dois meses e implanta um governo democrático revolucionário, mas é esmagado pelo exército francês em um banho de sangue, sela o destino da Internacional.
Para Marx, a Comuna é a primeira “ditadura do proletariado” da história (baseada no armamento do povo e no voto direto e universal), e mostra que o governo dos trabalhadores precisa destruir o Estado burguês e erguer um estado controlado democraticamente pelos produtores associados, destinado a desaparecer historicamente junto com a divisão da sociedade em classes sociais. Marx presta homenagem a Comuna de Paris publicando A guerra civil em França, e propõe ao Congresso da Internacional de 1872, realizado na Holanda, a transferência da sede da organização para os Estados Unidos, em razão da repressão generalizada que se segue ao massacre da Comuna; porém, a Primeira Internacional deixa de funcionar em 1876.
A partir da década de 1870, declina a capacidade de trabalho de Marx, em face do agravamento do seu estado de saúde, mas, preocupado com o programa adotado pelos socialistas alemães, em 1875 escreve a Crítica ao Programa de Gotha:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista media o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período, corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado.
Em 1882, no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, Marx realiza uma previsão ao mesmo tempo heterodoxa (para os padrões do socialismo até então) e genial: que uma revolução na Rússia pode constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra. Em 1883, após a morte de sua esposa e de sua filha mais velha, Marx falece e é enterrado no cemitério de Highgate.
Dois séculos depois do desaparecimento do “pensador socialista que maior influência exerceu sobre o pensamento filosófico e social e sobre a própria história da humanidade”, conforme ressalta verbete do Dicionário do Pensamento Marxista; após a social-democracia e o stalinismo terem sido remetidos para a “lata do lixo da história”; e em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta; podemos seguramente concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.
(*) Historiador e membro do comitê organizador do FSM Grande Porto Alegre.
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segunda-feira, 2 de maio de 2011
"Há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista" - Zizek
A crise do capitalismo alimenta o crescimento, na Europa, de um populismo inquietante e autoritário que tem em Sílvio Berlusconi o maior intérprete. Mas abre também espaço inédito para uma política que tenda à sua superação, defende o filósofo esloveno Slavoj Zizek em entrevista a Benedetto Vecchi, do Il Manifesto. "Há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista. A inquietação ambiental atingiu os níveis de vigilância. A democracia é reduzida a um simulacro. Ainda assim, nem tudo está perdido", diz .
Benedetto Vecchi - Il Manifesto
Escrita em estilo sóbrio, a obra analisa o mundo depois da crise econômica e a tendência de muitos governos de intervir, por meio de financiamento das dívidas dos bancos e das grandes instituições financeiras, para evitar aquilo que apenas há poucos anos parecia a trama de um filme de ficção sobre o colapso do capitalismo. Mas o autor procura distanciar-se das posições teóricas de muitos estudiosos marxistas, que sempre viram o neoliberalismo como um parêntese que, eventualmente, seria substituído por uma realidade social e política mais consentânea com as leis económicas, dando pouco espaço para os rentistas que enriqueceram com as loucuras especulativas das últimas décadas.
Para Zizek, ao contrário, o neoliberalismo tem sido uma adequada contra-revolução que cancelou a constituição material e formal surgida após a II Guerra Mundial, quando o capitalismo era sinonimo de democracia representativa. No início do terceiro milênio, a contra-revolução terminou, abrindo espaço para uma política radical que Zizek, em sintonia com o filósofo francês Alain Badiou, chama enfaticamente de “hipótese comunista”.
O filósofo esloveno não fecha, porém, os olhos para o fato de que os sinais provenientes de toda a Europa apontam para a ascensão de uma direita populista que conquista consensos onde os partidos social-democratas eram tradicionalmente fortes – como na Holanda, Noruega, Suécia. E também era irônico que com os democratas e norte-americanos radicais, que “nos Estados Unidos, depois de haver saudado a eleição de Obama para a Casa Branca como um evento divino, agora se deleitassem em discutir se é politicamente mais incisivo 'Avatar', de James Cameron, ou 'Estado de Guerra', de Kathryn Bigelow”. Eis a entrevista:
Num artigo, você lançou farpas contra “Avatar”, definindo-o como um filme apolítico. No entanto, no filme de Cameron, há fortes referências tanto à guerra do Iraque quanto à destruição da floresta amazônica: em ambos os casos, os vilões são as multinacionais…
Slavoj Zizek: O filme de James Cameron é agradável, divertido, uma obra inovadora do ponto de vista do uso das tecnologias digitais. Mas aqueles que sustentam que os críticos radicais nos Estados Unidos são uma espécie de ala marxista de Hollywood não me convencem. Eles escreveram que Avatar retrata a luta de classes e a luta dos pobres contra os ricos, com o fim de auto-determinarem a sua vida. Há um planeta, Pandora, que é invadido por uma tropa de mercenários a soldo de multinacionais. O objetivo é depredar os seus recursos naturais, colocando, assim, em perigo o milenário equilíbrio que os seres vivos estabeleceram com o luxuriante ecossistema. Podemos estabelecer certa analogia com o que as multinacionais e os países imperialistas fazem com a Floresta Amazônica, com o Iraque ou com toda aquela realidade onde estão as fontes energéticas e as matérias primas fundamentais para a produção de riqueza. No filme, os aborígenes de Pandora, em nome de uma visão holística de relação com a natureza, opõem-se ao capitalismo, vencendo, no final, a sua batalha. Mas a natureza é um produto cultural que muda com a mudança das relações sociais.
Os seres sempre retiraram da natureza os meios para viver e se reproduzir como espécie. Mas ao fazê-lo, transformaram a natureza. Não é, portanto, retornando a uma idade de ouro idealizada, como sugere James Cameron, que se pode derrotar o capitalismo. “Avatar” é pura fantasia, fascinante por certo, mas sempre fantasia.
Você tem frequentemente sublinhado que o populismo é uma doença do Político. Não lhe parece que o populismo, mais que uma doença, seja a forma política que, melhor que as outras, se adapta ao capitalismo contemporâneo?
Zizek: Até há alguns anos, afirmava-se que o capitalismo era sinônimo de democracia na sua forma liberal, fundada sobre a tolerância, o multiculturalismo e o politicamente correto. Agora, ao contrário, assistimos às forças ou aos líderes políticos que invocam a mobilização do povo para combater os inimigos do estilo de vida moderno. O filósofo argentino Ernesto Laclau analisou a fundo a lógica do populismo, sustentando que existe uma variante de esquerda e uma variante de direita. A tarefa do pensamento crítico consistiria em evitar a derivação de direita.
Não estou de acordo com essa posição. Em primeiro lugar, o populismo é sempre de direita. Além disso, o povo, como a natureza, é uma invenção. Laclau acredita que para fazê-lo tornar-se realidade deve-se imaginar um universal que contenha e supere as diferenças dentro dele. Daí a necessidade de identificar um inimigo que impede a formação do povo. Não é uma coincidência, então, que a forma acabada de populismo seja o anti-semitismo, porque indica um inimigo que vive entre nós. O mesmo fazem os populistas contemporâneos quando indicam os migrantes como a quinta-coluna entre nós.
Na sua avaliação, o populismo dirigirá o conflito contra inimigos de conveniência, para esconder o sistema de exploração do capitalismo. Isso quer dizer que esta tendência ocupa um espaço político abandonado, por exemplo, pela esquerda. Como recuperar esse espaço?
Zizek: Walter Benjamin escreveu que o fascismo emerge de onde uma revolução foi derrotada. Um conceito que, aplicado à realidade contemporânea, explica o fato de o populismo emergir quando a hipótese comunista, que não coincide com o socialismo real, é retirada da discussão pública. Entretanto, no tolerante capitalismo contemporâneo assistimos à campanha midiática contra os migrantes, porque atentam contra a nossa segurança. Ou ficamos atordoados com intelectuais que, como Bernard Henri-Levy, debatem longamente sobre a superioridade da civilização ocidental e sobre o perigo representado pelo fundamentalismo islâmico, qualificado como islamo-facismo.
Creio, todavia, que há fortes pontos de contacto entre a ideologia liberal e o populismo: ambos são pensamentos políticos que levam em conta o estilo de vida capitalista ocidental como o único mundo possível. Os liberais, em nome da superioridade da democracia, os populistas em nome do único estilo de vida que as pessoas se dão. Há também diferenças. Os liberais estão impondo, mesmo com as armas, a democracia e a tolerância entre quem não é democrático nem tolerante. Os populistas desejam, ao contrário, aniquilar de modo suave de polícia étnica as diversidades culturais, sociais, de estilo de vida. O populismo é, portanto, uma das formas políticas do capitalismo global, mas não a única. Silvio Berlusconi, frequentemente julgado como um comediante ou um personagem de opereta, é, ao contrário, um líder político para ser estudado com atenção, porque pretende conjugar a democracia liberal com o populismo.
O primeiro-ministro italiano está, todavia, acelerando uma tendência presente em todos os sistemas políticos democráticos. Sua obra visa modificar o equilíbrio dos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário – para benefício do Executivo, de modo tal que o executivo englobe o Legislativo e o Judiciário, mas sem cancelar os direitos civis e políticos. As eleições são consideradas como uma sondagem sobre a obra do executivo. Se Berlusconi perde, invoca em seguida a soberania popular representada por ele. A forma política que propõe é, sim, uma mescla entre democracia e populismo, se bem que a sua ideia de democracia seja uma democracia pós-constitucional que faz da invenção do povo o seu traço distintivo. Tudo isso faz com que a Itália, mais que um país atípico, seja um laboratório inquietante onde se desenvolveu uma democracia pós-constitucional. Desse ponto de vista, na Itália está sendo construído o futuro dos sistemas políticos ocidentais…
O que quer dizer com pós-constitucional?
Zizek: Uma democracia que elimina a antiga divisão e equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Equilíbrio dos poderes definido por todas as constituições europeias e pelo Bill of Rights dos Estados Unidos…
Na Europa, tudo isso é chamado pós-democracia. Claro, Sílvio Berlusconi deseja superar a democracia representativa que conhecemos no capitalismo. Por isso é um líder político mais que nenhum outro. Acho que o presidente Nicolas Sakozy tem uma visão muito mais clara do que aquela posta em jogo no capitalismo. Isso quer dizer que é mais perigoso do que os outros expoentes da direita europeia ou dos EUA. Não nos encontramos, portanto, em frente a um personagem de opereta, que vai às mulheres e promulga leis ad personam. A tragédia apresenta sempre momentos de opereta. Mas há tragédia quando se manifestam conflitos radicais, onde não há possibilidade nem de mediação nem de salvação.
Será, por isso, interessante ver como evoluirá a situação italiana, que não representa – e sobre isso, estou de acordo consigo – uma anomalia, mas um laboratório político cuja existência condicionará muitíssimo o futuro político da Europa. Na Holanda, na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, na França, na Inglaterra há, de fato, forças políticas populistas que recolhem sempre mais consensos eleitorais graças às campanhas anti-migratórias que conduzem, mas não têm aquele radicalismo que apresenta a situação italiana.
Dito isso, não é preciso, no entanto, desenvolver uma visão apocalíptica da realidade. É claro: há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista. A inquietação ambiental atingiu os níveis de vigilância. A democracia é reduzida a um simulacro. Ainda assim, nem tudo está perdido.
Pelo contrário. Como demonstra a recente crise econômica, quando tudo parece perdido, abre-se espaço para uma ação política radical, que eu chamo de comunista. Tomemos o recente encontro sobre ambiente realizado no ano passado em Copenhaga. O resultado final, mais que um êxito decepcionante, foi um desastre político. Há propostas, derrotadas nos trabalhos da cúpula, que indicam na salvaguarda do ambiente uma das prioridades para salvar o capitalismo. Podemos pensar numa aliança tática com quem o carrega avante.
A crise econômica, além disso, exigiu uma intervenção do Estado para salvar da bancarrota empresas, bancos e sociedades financeiras. Mas isso significou que o tabu sobre a periculosidade da intervenção reguladora do Estado foi quebrada. Isso pode reforçar os socialistas — isto é, aqueles que apontam para uma redistribuição dos rendimentos e de poder. Não é a política que eu amo, mas abre espaço a propostas mais radicais. Por outras palavras, volta forte a ideia comunista de transformar a realidade. O que proponho não é um mero exercício de otimismo da razão, mas a consciência de que há forças e relações sociais que podem ser liberadas a partir da camisa de força do capitalismo. Toni Negri e Michael Hardt acham que enfatizando as características do capitalismo pós-moderno criam-se condições para o governo da comuna — isto é, do comunismo – graças àquilo que definiu a virtude prometeica da multidão. Mais realisticamente, acho que devemos organizar as forças sociais oprimidas para uma ação praticável no presente e no futuro imediato.
VocÊ escreve, em sintonia com Alain Badiou, que o comunismo é uma ideia eterna. Uma política “comunista” deve, todavia, ancorar-se numa análise das relações sociais de produção e das formas que ela assume numa contingência histórica. Pode-se estar de acordo ou em discordância com a tese de Negri e Hardt sobre o capitalismo cognitivo, mas os seus escritos assinalam exatamente essa necessidade. Caso contrário, o comunismo torna-se uma teologia política, não acha?
Zizek: Não acredito, como Hardt e Negri, que com o desenvolvimento capitalista as forças produtivas, mais cedo ou mais tarde, entrem em rota de colisão com as relações sociais de produção. Precisamos agir politicamente para que isso aconteça. É esse o legado de Lenin que não pode mais ser apagado. Mas deixemos fora os textos sagrados e olhemos o capitalismo real. Existe certamente uma setor de força-trabalho cognitiva, mas que também continua a trabalhar em fábrica e que, como os migrantes, é reduzida a uma condição de submissão servil no processo laboral.
Para não jogar no lixo da história esses “excluídos”, ou “marginais”, é preciso uma forte imaginação política, capaz de recompor e unir os diferentes setores da força-trabalho. A teologia é sempre fascinante, mas, quando digo que a ideia comunista é eterna, refiro-me ao fato de que é uma constante na história humana a tensão de superar a condição de escravidão e exploração. Por isso, o comunismo volta sempre, mesmo quando tudo previa que fosse permanecer definitivamente sepultado sob os escombros do socialismo real.
Benedetto Vecchi - Il Manifesto
Escrita em estilo sóbrio, a obra analisa o mundo depois da crise econômica e a tendência de muitos governos de intervir, por meio de financiamento das dívidas dos bancos e das grandes instituições financeiras, para evitar aquilo que apenas há poucos anos parecia a trama de um filme de ficção sobre o colapso do capitalismo. Mas o autor procura distanciar-se das posições teóricas de muitos estudiosos marxistas, que sempre viram o neoliberalismo como um parêntese que, eventualmente, seria substituído por uma realidade social e política mais consentânea com as leis económicas, dando pouco espaço para os rentistas que enriqueceram com as loucuras especulativas das últimas décadas.
Para Zizek, ao contrário, o neoliberalismo tem sido uma adequada contra-revolução que cancelou a constituição material e formal surgida após a II Guerra Mundial, quando o capitalismo era sinonimo de democracia representativa. No início do terceiro milênio, a contra-revolução terminou, abrindo espaço para uma política radical que Zizek, em sintonia com o filósofo francês Alain Badiou, chama enfaticamente de “hipótese comunista”.
O filósofo esloveno não fecha, porém, os olhos para o fato de que os sinais provenientes de toda a Europa apontam para a ascensão de uma direita populista que conquista consensos onde os partidos social-democratas eram tradicionalmente fortes – como na Holanda, Noruega, Suécia. E também era irônico que com os democratas e norte-americanos radicais, que “nos Estados Unidos, depois de haver saudado a eleição de Obama para a Casa Branca como um evento divino, agora se deleitassem em discutir se é politicamente mais incisivo 'Avatar', de James Cameron, ou 'Estado de Guerra', de Kathryn Bigelow”. Eis a entrevista:
Num artigo, você lançou farpas contra “Avatar”, definindo-o como um filme apolítico. No entanto, no filme de Cameron, há fortes referências tanto à guerra do Iraque quanto à destruição da floresta amazônica: em ambos os casos, os vilões são as multinacionais…
Slavoj Zizek: O filme de James Cameron é agradável, divertido, uma obra inovadora do ponto de vista do uso das tecnologias digitais. Mas aqueles que sustentam que os críticos radicais nos Estados Unidos são uma espécie de ala marxista de Hollywood não me convencem. Eles escreveram que Avatar retrata a luta de classes e a luta dos pobres contra os ricos, com o fim de auto-determinarem a sua vida. Há um planeta, Pandora, que é invadido por uma tropa de mercenários a soldo de multinacionais. O objetivo é depredar os seus recursos naturais, colocando, assim, em perigo o milenário equilíbrio que os seres vivos estabeleceram com o luxuriante ecossistema. Podemos estabelecer certa analogia com o que as multinacionais e os países imperialistas fazem com a Floresta Amazônica, com o Iraque ou com toda aquela realidade onde estão as fontes energéticas e as matérias primas fundamentais para a produção de riqueza. No filme, os aborígenes de Pandora, em nome de uma visão holística de relação com a natureza, opõem-se ao capitalismo, vencendo, no final, a sua batalha. Mas a natureza é um produto cultural que muda com a mudança das relações sociais.
Os seres sempre retiraram da natureza os meios para viver e se reproduzir como espécie. Mas ao fazê-lo, transformaram a natureza. Não é, portanto, retornando a uma idade de ouro idealizada, como sugere James Cameron, que se pode derrotar o capitalismo. “Avatar” é pura fantasia, fascinante por certo, mas sempre fantasia.
Você tem frequentemente sublinhado que o populismo é uma doença do Político. Não lhe parece que o populismo, mais que uma doença, seja a forma política que, melhor que as outras, se adapta ao capitalismo contemporâneo?
Zizek: Até há alguns anos, afirmava-se que o capitalismo era sinônimo de democracia na sua forma liberal, fundada sobre a tolerância, o multiculturalismo e o politicamente correto. Agora, ao contrário, assistimos às forças ou aos líderes políticos que invocam a mobilização do povo para combater os inimigos do estilo de vida moderno. O filósofo argentino Ernesto Laclau analisou a fundo a lógica do populismo, sustentando que existe uma variante de esquerda e uma variante de direita. A tarefa do pensamento crítico consistiria em evitar a derivação de direita.
Não estou de acordo com essa posição. Em primeiro lugar, o populismo é sempre de direita. Além disso, o povo, como a natureza, é uma invenção. Laclau acredita que para fazê-lo tornar-se realidade deve-se imaginar um universal que contenha e supere as diferenças dentro dele. Daí a necessidade de identificar um inimigo que impede a formação do povo. Não é uma coincidência, então, que a forma acabada de populismo seja o anti-semitismo, porque indica um inimigo que vive entre nós. O mesmo fazem os populistas contemporâneos quando indicam os migrantes como a quinta-coluna entre nós.
Na sua avaliação, o populismo dirigirá o conflito contra inimigos de conveniência, para esconder o sistema de exploração do capitalismo. Isso quer dizer que esta tendência ocupa um espaço político abandonado, por exemplo, pela esquerda. Como recuperar esse espaço?
Zizek: Walter Benjamin escreveu que o fascismo emerge de onde uma revolução foi derrotada. Um conceito que, aplicado à realidade contemporânea, explica o fato de o populismo emergir quando a hipótese comunista, que não coincide com o socialismo real, é retirada da discussão pública. Entretanto, no tolerante capitalismo contemporâneo assistimos à campanha midiática contra os migrantes, porque atentam contra a nossa segurança. Ou ficamos atordoados com intelectuais que, como Bernard Henri-Levy, debatem longamente sobre a superioridade da civilização ocidental e sobre o perigo representado pelo fundamentalismo islâmico, qualificado como islamo-facismo.
Creio, todavia, que há fortes pontos de contacto entre a ideologia liberal e o populismo: ambos são pensamentos políticos que levam em conta o estilo de vida capitalista ocidental como o único mundo possível. Os liberais, em nome da superioridade da democracia, os populistas em nome do único estilo de vida que as pessoas se dão. Há também diferenças. Os liberais estão impondo, mesmo com as armas, a democracia e a tolerância entre quem não é democrático nem tolerante. Os populistas desejam, ao contrário, aniquilar de modo suave de polícia étnica as diversidades culturais, sociais, de estilo de vida. O populismo é, portanto, uma das formas políticas do capitalismo global, mas não a única. Silvio Berlusconi, frequentemente julgado como um comediante ou um personagem de opereta, é, ao contrário, um líder político para ser estudado com atenção, porque pretende conjugar a democracia liberal com o populismo.
O primeiro-ministro italiano está, todavia, acelerando uma tendência presente em todos os sistemas políticos democráticos. Sua obra visa modificar o equilíbrio dos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário – para benefício do Executivo, de modo tal que o executivo englobe o Legislativo e o Judiciário, mas sem cancelar os direitos civis e políticos. As eleições são consideradas como uma sondagem sobre a obra do executivo. Se Berlusconi perde, invoca em seguida a soberania popular representada por ele. A forma política que propõe é, sim, uma mescla entre democracia e populismo, se bem que a sua ideia de democracia seja uma democracia pós-constitucional que faz da invenção do povo o seu traço distintivo. Tudo isso faz com que a Itália, mais que um país atípico, seja um laboratório inquietante onde se desenvolveu uma democracia pós-constitucional. Desse ponto de vista, na Itália está sendo construído o futuro dos sistemas políticos ocidentais…
O que quer dizer com pós-constitucional?
Zizek: Uma democracia que elimina a antiga divisão e equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Equilíbrio dos poderes definido por todas as constituições europeias e pelo Bill of Rights dos Estados Unidos…
Na Europa, tudo isso é chamado pós-democracia. Claro, Sílvio Berlusconi deseja superar a democracia representativa que conhecemos no capitalismo. Por isso é um líder político mais que nenhum outro. Acho que o presidente Nicolas Sakozy tem uma visão muito mais clara do que aquela posta em jogo no capitalismo. Isso quer dizer que é mais perigoso do que os outros expoentes da direita europeia ou dos EUA. Não nos encontramos, portanto, em frente a um personagem de opereta, que vai às mulheres e promulga leis ad personam. A tragédia apresenta sempre momentos de opereta. Mas há tragédia quando se manifestam conflitos radicais, onde não há possibilidade nem de mediação nem de salvação.
Será, por isso, interessante ver como evoluirá a situação italiana, que não representa – e sobre isso, estou de acordo consigo – uma anomalia, mas um laboratório político cuja existência condicionará muitíssimo o futuro político da Europa. Na Holanda, na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, na França, na Inglaterra há, de fato, forças políticas populistas que recolhem sempre mais consensos eleitorais graças às campanhas anti-migratórias que conduzem, mas não têm aquele radicalismo que apresenta a situação italiana.
Dito isso, não é preciso, no entanto, desenvolver uma visão apocalíptica da realidade. É claro: há uma guerra civil rastejante na sociedade capitalista. A inquietação ambiental atingiu os níveis de vigilância. A democracia é reduzida a um simulacro. Ainda assim, nem tudo está perdido.
Pelo contrário. Como demonstra a recente crise econômica, quando tudo parece perdido, abre-se espaço para uma ação política radical, que eu chamo de comunista. Tomemos o recente encontro sobre ambiente realizado no ano passado em Copenhaga. O resultado final, mais que um êxito decepcionante, foi um desastre político. Há propostas, derrotadas nos trabalhos da cúpula, que indicam na salvaguarda do ambiente uma das prioridades para salvar o capitalismo. Podemos pensar numa aliança tática com quem o carrega avante.
A crise econômica, além disso, exigiu uma intervenção do Estado para salvar da bancarrota empresas, bancos e sociedades financeiras. Mas isso significou que o tabu sobre a periculosidade da intervenção reguladora do Estado foi quebrada. Isso pode reforçar os socialistas — isto é, aqueles que apontam para uma redistribuição dos rendimentos e de poder. Não é a política que eu amo, mas abre espaço a propostas mais radicais. Por outras palavras, volta forte a ideia comunista de transformar a realidade. O que proponho não é um mero exercício de otimismo da razão, mas a consciência de que há forças e relações sociais que podem ser liberadas a partir da camisa de força do capitalismo. Toni Negri e Michael Hardt acham que enfatizando as características do capitalismo pós-moderno criam-se condições para o governo da comuna — isto é, do comunismo – graças àquilo que definiu a virtude prometeica da multidão. Mais realisticamente, acho que devemos organizar as forças sociais oprimidas para uma ação praticável no presente e no futuro imediato.
VocÊ escreve, em sintonia com Alain Badiou, que o comunismo é uma ideia eterna. Uma política “comunista” deve, todavia, ancorar-se numa análise das relações sociais de produção e das formas que ela assume numa contingência histórica. Pode-se estar de acordo ou em discordância com a tese de Negri e Hardt sobre o capitalismo cognitivo, mas os seus escritos assinalam exatamente essa necessidade. Caso contrário, o comunismo torna-se uma teologia política, não acha?
Zizek: Não acredito, como Hardt e Negri, que com o desenvolvimento capitalista as forças produtivas, mais cedo ou mais tarde, entrem em rota de colisão com as relações sociais de produção. Precisamos agir politicamente para que isso aconteça. É esse o legado de Lenin que não pode mais ser apagado. Mas deixemos fora os textos sagrados e olhemos o capitalismo real. Existe certamente uma setor de força-trabalho cognitiva, mas que também continua a trabalhar em fábrica e que, como os migrantes, é reduzida a uma condição de submissão servil no processo laboral.
Para não jogar no lixo da história esses “excluídos”, ou “marginais”, é preciso uma forte imaginação política, capaz de recompor e unir os diferentes setores da força-trabalho. A teologia é sempre fascinante, mas, quando digo que a ideia comunista é eterna, refiro-me ao fato de que é uma constante na história humana a tensão de superar a condição de escravidão e exploração. Por isso, o comunismo volta sempre, mesmo quando tudo previa que fosse permanecer definitivamente sepultado sob os escombros do socialismo real.
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segunda-feira, 4 de abril de 2011
JOSÉ LUÍS FIORI - Há agora uma nova corrida imperialista nos países da África
PARA CIENTISTA POLÍTICO, NORTE-AMERICANOS E EUROPEUS PODEM VOLTAR A COGITAR UM SISTEMA RENOVADO DE COLONIALISMO NESTA DÉCADA
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A guerra na Líbia é parte de uma nova corrida imperialista que se aprofundará, diz José Luis Fiori, coordenador da pós-graduação em economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos", diz ele.
Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que ele enxerga vivendo uma crise de crescimento.
Folha - Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
José Luís Fiori - É evidente que não se trata de uma discussão sobre o direito à vida dos líbios, os direitos humanos, a democracia. Nesta, como em todas as demais intervenções de europeus e dos EUA, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em algum país em particular.
As potências do "diretório militar" jamais intervêm contra um país ou governante aliado, por mais autoritário e antidemocrático que ele seja. Do ponto de vista das relações entre Estados, os direitos humanos são sempre esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas das grandes potências.
A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas petróleo. Nem tudo no mundo da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com economia. Neste caso está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano e território privilegiado do alterego civilizatório da "cristandade".
Foi onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e, depois, no século 19. Estamos assistindo a uma nova corrida imperialista na África, e não é impossível que se volte a cogitar alguma forma renovada de colonialismo.
Como explicar essa corrida imperialista?
A África não é simples nem homogênea, com seus 53 Estados e quase 800 milhões de habitantes. O atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais europeias e só se manteve, até 1991, graças à Guerra Fria.
Após a Guerra Fria e o fracasso da intervenção norte-americana na Somália (em 1993), os EUA redefiniram sua estratégia para o continente, propondo globalização e democracia. Até o fim do século 20, a preocupação dos EUA com a África se restringiu à disputa das regiões petrolíferas e ao controle das forças islâmicas e dos terroristas do Chifre da África.
Mas deverá ocorrer uma mudança radical do comportamento norte-americano e europeu, graças à invasão econômica da China, Rússia, Índia e Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista, que deverá se aprofundar na próxima década.
Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados pelos próprios colonialistas europeus.
Os Estados Unidos estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Não vejo este risco. Pelo contrário. São os mesmos de sempre que estão redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos e dos envolvidos nas rebeliões. Quando houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através de terceiros.
Para o sr. não há perda da hegemonia americana?
Os Estados Unidos estão enfrentando os problemas, contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status -de potência hegemônica do mundo capitalista (até a década de 1980), para potência imperial. Poderia até se chamar de uma crise de crescimento e não uma crise terminal.
Os EUA devem mudar sua forma de administrar o seu poder global. O jogo será este: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império, distanciando-se e só intervindo em última instância; de outro, as demais potências regionais tentando escapar do cerco americano.
Não há limites para esse poder americano?
É óbvio que esse novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Esse novo tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. Pelo contrário: é a própria expansão vitoriosa dos EUA -e não o seu declínio- que vai promovendo os conflitos e as guerras. Do ponto de vista estritamente militar, o essencial para os EUA é impedir alguma potência regional de ameaçar sua supremacia naval em qualquer lugar do mundo.
A China não é uma ameaça?
A nova engenharia econômica mundial transformou a China numa economia com poder de gravitação quase igual ao dos EUA. Isso intensifica a competição capitalista na África e na América do Sul. Mas é certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China em líder do sistema mundial.
Quais as consequências políticas do dinamismo chinês?
O mais provável é que a China se restrinja à luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua estratégia de não provocar nem aceitar confrontos fora dessa sua zona de influência. Mas, em algum momento futuro, terá que combinar a sua nova centralidade com algum tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria região imediata. Há que se considerar que a China tem uma posição geopolítica desfavorável, com um território amplo e cercado e uma fronteira marítima muito extensa. E não conta ainda com um poder naval capaz de se impor ao controle americano do Pacífico Sul.
A crise financeira recente não expôs fragilidades dos EUA?
O dólar flexível e a desregulação dos mercados financeiros transferiu para os EUA um poder monetário e financeiro sem precedentes.
Isso simplesmente porque, segundo as novas regras que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e internacional a um só tempo.
Arbitram também o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e servem de âncora para o próprio sistema liderado pelo dólar. Os EUA podem redefinir a cada momento o valor das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair perdendo.
As crises se repetirão, mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade e, às vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo expansivo. As crises não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos para as demais potências econômicas do sistema.
Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
A União Europeia está cada vez mais fraca e dividida sobre como conduzir seus assuntos internos. Não dispõe de um poder central unificado e homogêneo. A Alemanha reunificada se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais autônoma, centrada nos interesses nacionais. É uma estratégia que recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro da Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã-Bretanha.
As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem se multiplicar os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras mundiais do século 20.
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A guerra na Líbia é parte de uma nova corrida imperialista que se aprofundará, diz José Luis Fiori, coordenador da pós-graduação em economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos", diz ele.
Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que ele enxerga vivendo uma crise de crescimento.
Folha - Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
José Luís Fiori - É evidente que não se trata de uma discussão sobre o direito à vida dos líbios, os direitos humanos, a democracia. Nesta, como em todas as demais intervenções de europeus e dos EUA, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em algum país em particular.
As potências do "diretório militar" jamais intervêm contra um país ou governante aliado, por mais autoritário e antidemocrático que ele seja. Do ponto de vista das relações entre Estados, os direitos humanos são sempre esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas das grandes potências.
A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas petróleo. Nem tudo no mundo da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com economia. Neste caso está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano e território privilegiado do alterego civilizatório da "cristandade".
Foi onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e, depois, no século 19. Estamos assistindo a uma nova corrida imperialista na África, e não é impossível que se volte a cogitar alguma forma renovada de colonialismo.
Como explicar essa corrida imperialista?
A África não é simples nem homogênea, com seus 53 Estados e quase 800 milhões de habitantes. O atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais europeias e só se manteve, até 1991, graças à Guerra Fria.
Após a Guerra Fria e o fracasso da intervenção norte-americana na Somália (em 1993), os EUA redefiniram sua estratégia para o continente, propondo globalização e democracia. Até o fim do século 20, a preocupação dos EUA com a África se restringiu à disputa das regiões petrolíferas e ao controle das forças islâmicas e dos terroristas do Chifre da África.
Mas deverá ocorrer uma mudança radical do comportamento norte-americano e europeu, graças à invasão econômica da China, Rússia, Índia e Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista, que deverá se aprofundar na próxima década.
Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados pelos próprios colonialistas europeus.
Os Estados Unidos estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Não vejo este risco. Pelo contrário. São os mesmos de sempre que estão redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos e dos envolvidos nas rebeliões. Quando houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através de terceiros.
Para o sr. não há perda da hegemonia americana?
Os Estados Unidos estão enfrentando os problemas, contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status -de potência hegemônica do mundo capitalista (até a década de 1980), para potência imperial. Poderia até se chamar de uma crise de crescimento e não uma crise terminal.
Os EUA devem mudar sua forma de administrar o seu poder global. O jogo será este: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império, distanciando-se e só intervindo em última instância; de outro, as demais potências regionais tentando escapar do cerco americano.
Não há limites para esse poder americano?
É óbvio que esse novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Esse novo tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. Pelo contrário: é a própria expansão vitoriosa dos EUA -e não o seu declínio- que vai promovendo os conflitos e as guerras. Do ponto de vista estritamente militar, o essencial para os EUA é impedir alguma potência regional de ameaçar sua supremacia naval em qualquer lugar do mundo.
A China não é uma ameaça?
A nova engenharia econômica mundial transformou a China numa economia com poder de gravitação quase igual ao dos EUA. Isso intensifica a competição capitalista na África e na América do Sul. Mas é certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China em líder do sistema mundial.
Quais as consequências políticas do dinamismo chinês?
O mais provável é que a China se restrinja à luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua estratégia de não provocar nem aceitar confrontos fora dessa sua zona de influência. Mas, em algum momento futuro, terá que combinar a sua nova centralidade com algum tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria região imediata. Há que se considerar que a China tem uma posição geopolítica desfavorável, com um território amplo e cercado e uma fronteira marítima muito extensa. E não conta ainda com um poder naval capaz de se impor ao controle americano do Pacífico Sul.
A crise financeira recente não expôs fragilidades dos EUA?
O dólar flexível e a desregulação dos mercados financeiros transferiu para os EUA um poder monetário e financeiro sem precedentes.
Isso simplesmente porque, segundo as novas regras que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e internacional a um só tempo.
Arbitram também o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e servem de âncora para o próprio sistema liderado pelo dólar. Os EUA podem redefinir a cada momento o valor das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair perdendo.
As crises se repetirão, mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade e, às vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo expansivo. As crises não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos para as demais potências econômicas do sistema.
Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
A União Europeia está cada vez mais fraca e dividida sobre como conduzir seus assuntos internos. Não dispõe de um poder central unificado e homogêneo. A Alemanha reunificada se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais autônoma, centrada nos interesses nacionais. É uma estratégia que recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro da Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã-Bretanha.
As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem se multiplicar os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras mundiais do século 20.
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sábado, 2 de abril de 2011
"Jornalista não está lá para ajudar", diz Janet Malcolm
Espécie de código de ética da entrevista, "O Jornalista e o Assassino" é relançado no Brasil em versão de bolso
Em entrevista à Folha, escritora comparou o jornalismo à psicanálise, no que diz respeito à confissão
ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO
A Companhia das Letras lança uma versão de bolso do livro "O Jornalista e o Assassino", da jornalista Janet Malcolm, 76, colaboradora frequente da revista norte-americana "New Yorker".
Publicado pela primeira vez no Brasil em 1990, o livro, que analisa a relação profissional do jornalista Joe McGinniss com o presidiário Jeffrey MacDonald, se tornou uma espécie de código de ética da dinâmica entre entrevistador e entrevistado.
Janet começou a apurar a história em 1987, quando recebeu uma carta do advogado de McGinniss. Em tom de revolta, a missiva relatava que o cliente acabava de ser processado por MacDonald -condenado pelo assassinato da mulher e duas filhas- justamente por ter escrito o livro "Fatal Vision" (visão fatal), acusando-o de ter matado a mulher e duas filhas.
"Pela primeira vez permitiu-se que um entrevistado descontente processasse um escritor com base em premissas que tornam irrelevantes a verdade ou a falsidade do que foi publicado", dizia o texto. O problema era que, nos quatro anos em que travou contato com o presidiário para o livro, McGinniss enviou a ele 40 cartas dizendo crer em sua inocência.
"Diabo, Jeff, uma das piores coisas nisso tudo foi a maneira como, súbita e totalmente, todos os seus amigos -inclusive eu- fomos privados do prazer de sua companhia. Em que porra aquele pessoal [do júri] estava pensando [ao condená-lo]?"
Janet definiu o conjunto de cartas como "um registro escrito de sua má-fé". McGinniss, que tentou se defender alegando "compromisso com a verdade dos fatos", assinou um acordo extrajudicial, comprometendo-se a ressarcir MacDonald em US$ 325 mil (R$ 530 mil) por danos morais. Encarcerado até hoje, ele continua alegando inocência.
"O Jornalista e o Assassino" tornou-se um estudo emblemático sobre a dinâmica do jornalismo, em que repórteres seduzem entrevistados e estes seduzem aqueles, sempre renegando as reais intenções a segundo plano.
A partir do processo de MacDonald contra McGinniss, Janet Malcolm teorizou o ofício em frases como "o jornalista tem que fazer seu trabalho em um estado de anarquia moral" e "o escritor que vem tende apenas a piorar as coisas".
A nova versão tem posfácio assinado por Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha. Janet Malcolm cedeu a entrevista por telefone, não sem antes fazer um pedido: "Pode me enviar uma cópia do texto quando publicado? Quero saber se fui traída."
Folha - Em "O Jornalista e o Assassino", você diz que, frente a um repórter, "em nenhum caso o entrevistado consegue salvar-se". Por que você aceitou dar entrevista?
Janet Malcolm - Normalmente aceito quando lanço livros. Além disso, gosto de me sentir do outro lado. Como entrevistada, entendi o poder que as perguntas têm. Você se sente na obrigação de respondê-las, como uma criança indagada pela mãe. É uma regressão à infância.
O livro diz que o jornalista apura com ar de "mãe permissiva" e escreve com a dureza de um "pai severo,". Continua permissiva e maternal após "O Jornalista..."?
Talvez tenha me tornado mais paternal na apuração. Tento ser o mais direta possível. O jornalista não precisa ser tão amigável. As pessoas estão interessadas em contar suas histórias, independente da atitude de quem ouve. Mas tenho algo a meu favor: meu livro é uma espécie de "Miranda Warning" [aviso de Miranda: a lista de direitos que um policial, nos EUA, é obrigado a dizer a um suspeito quando o prende]. Por causa dele, as pessoas sabem o que esperar quando são entrevistadas por mim, que o tudo o que disserem poderá ser usado contra elas.
Você sabe qual foi a reação dos dois principais personagens depois da publicação?
Joe McGinniss não gostou. Após a publicação, nunca mais nos falamos. MacDonald também não gostou, porque eu descrevia as cartas dele como entediantes. São detalhes como esse que geram as principais mágoas.
Vocês mantiveram contato? Mantive contato com o MacDonald por alguns anos. Não sei se ele é culpado, mas concordo com o argumento de que não teve um julgamento justo. Se houvesse admitido a culpa, já estaria livre, em condicional, mas ele se recusa. Passados 30 anos, continua preso. Se de fato for inocente, a história é terrível.
Você diz que o encontro com o jornalista "parece ter, sobre o indivíduo, o mesmo efeito regressivo que a psicanálise". As profissões são parecidas? <
Sim, no tocante ao elemento da confissão. A diferença é que as pessoas vão ao analista procurando ajuda e pagam por isso. O jornalista, como não recebe nada, não está lá para ajudar.
Em entrevista à Folha, escritora comparou o jornalismo à psicanálise, no que diz respeito à confissão
ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO
A Companhia das Letras lança uma versão de bolso do livro "O Jornalista e o Assassino", da jornalista Janet Malcolm, 76, colaboradora frequente da revista norte-americana "New Yorker".
Publicado pela primeira vez no Brasil em 1990, o livro, que analisa a relação profissional do jornalista Joe McGinniss com o presidiário Jeffrey MacDonald, se tornou uma espécie de código de ética da dinâmica entre entrevistador e entrevistado.
Janet começou a apurar a história em 1987, quando recebeu uma carta do advogado de McGinniss. Em tom de revolta, a missiva relatava que o cliente acabava de ser processado por MacDonald -condenado pelo assassinato da mulher e duas filhas- justamente por ter escrito o livro "Fatal Vision" (visão fatal), acusando-o de ter matado a mulher e duas filhas.
"Pela primeira vez permitiu-se que um entrevistado descontente processasse um escritor com base em premissas que tornam irrelevantes a verdade ou a falsidade do que foi publicado", dizia o texto. O problema era que, nos quatro anos em que travou contato com o presidiário para o livro, McGinniss enviou a ele 40 cartas dizendo crer em sua inocência.
"Diabo, Jeff, uma das piores coisas nisso tudo foi a maneira como, súbita e totalmente, todos os seus amigos -inclusive eu- fomos privados do prazer de sua companhia. Em que porra aquele pessoal [do júri] estava pensando [ao condená-lo]?"
Janet definiu o conjunto de cartas como "um registro escrito de sua má-fé". McGinniss, que tentou se defender alegando "compromisso com a verdade dos fatos", assinou um acordo extrajudicial, comprometendo-se a ressarcir MacDonald em US$ 325 mil (R$ 530 mil) por danos morais. Encarcerado até hoje, ele continua alegando inocência.
"O Jornalista e o Assassino" tornou-se um estudo emblemático sobre a dinâmica do jornalismo, em que repórteres seduzem entrevistados e estes seduzem aqueles, sempre renegando as reais intenções a segundo plano.
A partir do processo de MacDonald contra McGinniss, Janet Malcolm teorizou o ofício em frases como "o jornalista tem que fazer seu trabalho em um estado de anarquia moral" e "o escritor que vem tende apenas a piorar as coisas".
A nova versão tem posfácio assinado por Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha. Janet Malcolm cedeu a entrevista por telefone, não sem antes fazer um pedido: "Pode me enviar uma cópia do texto quando publicado? Quero saber se fui traída."
Folha - Em "O Jornalista e o Assassino", você diz que, frente a um repórter, "em nenhum caso o entrevistado consegue salvar-se". Por que você aceitou dar entrevista?
Janet Malcolm - Normalmente aceito quando lanço livros. Além disso, gosto de me sentir do outro lado. Como entrevistada, entendi o poder que as perguntas têm. Você se sente na obrigação de respondê-las, como uma criança indagada pela mãe. É uma regressão à infância.
O livro diz que o jornalista apura com ar de "mãe permissiva" e escreve com a dureza de um "pai severo,". Continua permissiva e maternal após "O Jornalista..."?
Talvez tenha me tornado mais paternal na apuração. Tento ser o mais direta possível. O jornalista não precisa ser tão amigável. As pessoas estão interessadas em contar suas histórias, independente da atitude de quem ouve. Mas tenho algo a meu favor: meu livro é uma espécie de "Miranda Warning" [aviso de Miranda: a lista de direitos que um policial, nos EUA, é obrigado a dizer a um suspeito quando o prende]. Por causa dele, as pessoas sabem o que esperar quando são entrevistadas por mim, que o tudo o que disserem poderá ser usado contra elas.
Você sabe qual foi a reação dos dois principais personagens depois da publicação?
Joe McGinniss não gostou. Após a publicação, nunca mais nos falamos. MacDonald também não gostou, porque eu descrevia as cartas dele como entediantes. São detalhes como esse que geram as principais mágoas.
Vocês mantiveram contato? Mantive contato com o MacDonald por alguns anos. Não sei se ele é culpado, mas concordo com o argumento de que não teve um julgamento justo. Se houvesse admitido a culpa, já estaria livre, em condicional, mas ele se recusa. Passados 30 anos, continua preso. Se de fato for inocente, a história é terrível.
Você diz que o encontro com o jornalista "parece ter, sobre o indivíduo, o mesmo efeito regressivo que a psicanálise". As profissões são parecidas? <
Sim, no tocante ao elemento da confissão. A diferença é que as pessoas vão ao analista procurando ajuda e pagam por isso. O jornalista, como não recebe nada, não está lá para ajudar.
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domingo, 27 de março de 2011
internet CIÊNCIA - Profeta do iPocalipse
A internet no banco dos réus
RESUMO
O excesso de informações oferecidas na internet tem causado impacto negativo na nossa capacidade de reter informações, tornando-nos "rasos", segundo o jornalista Nicholas Carr no livro "The Shallows". Cientistas brasileiros comentam a tese de Carr e especulam sobre as consequências cerebrais de um mundo saturado de dados.
BERNARDO ESTEVES
HÁ TEMPOS VOCÊ não encara um livro de mais de 500 páginas. Na internet, evita artigos longos e, quando decide ler um, carrega na barra de rolagem e pula longos blocos de texto. É incapaz de manter a concentração por mais de dois parágrafos. Interrompe a leitura para visitar alguma das outras janelas em que está navegando simultaneamente. Antes de prosseguir, checa seu e-mail, vai ver um vídeo que recebeu de um amigo, responde um SMS que chegou pelo celular e confere as últimas atualizações das pessoas que acompanha no Twitter ou no Facebook.
A cena é típica entre usuários intensivos da internet. Desatenção e falta de foco são o custo cognitivo da imersão prolongada em um ambiente dispersivo como o da web - um grande "ecossistema de tecnologias da interrupção", na definição do blogueiro canadense Cory Doctorow. Mas pode sair bem mais salgada a conta a se pagar pela nossa adoção irreversível da internet, na avaliação do jornalista americano Nicholas Carr. Em seu último livro, ele argumenta que a rede está mudando -para pior- a forma como pensamos e a própria estrutura e funcionamento do nosso cérebro. Para ele, estamos nos tornando leitores desconcentrados e pensadores rasos, incapazes de articular raciocínios complexos.
SUPERFICIAIS Essa é a tese central de "The Shallows -What the Internet Is Doing to our Brains" ("Os Superficiais- o que a Internet Está Fazendo com nossos Cérebros"), a ser lançado no Brasil pela Ediouro. O livro leva adiante uma questão polêmica que ele levantou em um ensaio de grande repercussão na revista The Atlantic: "O Google está nos deixando mais burros?" Desde a publicação do artigo, em 2008, Carr vem acumulando argumentos para convencer seu leitor de que sim.
Ele sustenta que a internet está promovendo mudanças celulares em nosso cérebro, fortalecendo certos caminhos neurais e enfraquecendo outros. Uma das primeiras evidências que apresenta para sustentar sua tese é um estudo realizado em 2009 na Universidade da Califórnia em Los Angeles.
A equipe do psiquiatra Gary Small usou a técnica de ressonância magnética funcional para monitorar o cérebro de internautas iniciantes e experientes enquanto liam on-line e faziam buscas no Google. Os resultados mostraram que, nesse segundo grupo, as buscas no Google levavam à ativação de áreas cerebrais ligadas à tomada de decisões e ao raciocínio complexo.
Esse aumento da atividade cerebral não chega a representar uma surpresa. "O uso da web envolve atenção, aprendizagem, memória, tomada de decisões -é plausível que acarrete mudanças anatômicas no cérebro", avalia o neurocientista Roberto Lent, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
CÉREBRO MUTANTE Estranho seria que não houvesse qualquer mudança. Modificar o cérebro não é um privilégio da internet -acontece com qualquer processo de aprendizagem. "Quando você aprende a dirigir, uma área do seu cérebro que não era ativada vai se ativar", compara o neurocientista Martín Cammarota, do Centro de Memória da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). "O mesmo acontece com quem aprende a montar um quebra-cabeça, a fazer café ou a usar o Google."
Por definição, uma maior atividade cerebral não é ruim -pelo contrário. O próprio Carr reconhece que o uso da internet estimula a inteligência visual e espacial. Mas ele alega que isso se dá em detrimento da capacidade de análise, reflexão e pensamento crítico. Ele cita alguns estudos experimentais para caracterizar o suposto efeito deletério do hipertexto e da internet sobre a apreensão e memorização de informações.
Um trabalho de 2003 realizado por uma dupla de pesquisadores da Universidade Cornell avaliou o desempenho de estudantes após assistirem a uma conferência. Alunos que puderam consultar seus laptops e navegar na internet durante a palestra tiveram nota pior que a daqueles que não puderam abrir seus computadores. Outros estudos avaliaram o desempenho de alunos em um teste de compreensão de um mesmo texto apresentado ora em versão linear, ora em formato hipertextual, com links, imagens e recursos de multimídia. A performance dos alunos que leram o texto corrido era significativamente melhor -a nota era inversamente proporcional ao número de links do texto.
EXPLOSÃO DE ESTÍMULOS A interpretação desses resultados é questionada pela neurocientista da UFRJ e colunista da Folha Suzana Herculano-Houzel. "Dizer que o aproveitamento do conhecimento é superficial na internet é uma visão muito enviesada", avalia. "Seria preciso perguntar a essas pessoas quanto elas aprenderam sobre os conteúdos pesquisados nos links que visitaram. A riqueza de informações associadas ao conteúdo estudado torna a experiência de leitura na web muito mais profunda do que superficial." Para a pesquisadora, a explosão de estímulos da internet favoreceria também a memorização.
"Quanto mais elementos você tiver para associar a uma informação nova, mais chance terá de fixar uma memória rica e detalhada."
A alegação de Suzana -uma entusiasta da internet, blogueira e consumidora de primeira hora de gadgets como o Kindle ou o iPad- vai na contramão do que sustenta o livro de Nicholas Carr. Para ele, a leitura dispersiva que fazemos na web compromete o processo que faz com que uma informação se transforme em uma memória duradoura. A consolidação das memórias pode ser impedida por fenômenos variados. Boxeadores que levam um soco caprichado, por exemplo, podem ter apagadas memórias de instantes anteriores ao golpe.
Para Carr, os tuítes, torpedos e e-mails que interrompem a leitura de um texto on-line podem ter um efeito similar ao de um bom cruzado no queixo sobre a consolidação das memórias. "A web é uma tecnologia do esquecimento", afirma, categórico.
A comparação decerto é exagerada. "É complicado comparar um traumatismo mecânico e outro de natureza cognitiva", avalia Roberto Lent. "Não creio que haja evidências de um dano físico dos circuitos cerebrais devido ao uso da internet."
Seja como for, a memorização de uma informação depende da atenção dedicada a ela no momento da aquisição. E a multiplicidade de estímulos da internet não favorece exatamente a concentração. Podemos navegar em várias janelas ao mesmo tempo, mas não temos o hardware necessário para processar simultaneamente tantas solicitações paralelas. Trocando em miúdos, nosso cérebro não é "multitask".
"Só conseguimos prestar atenção em uma coisa de cada vez, por uma limitação intrínseca ao cérebro", explica Suzana Herculano-Houzel. Mas ela não enxerga nisso uma ameaça a nosso desempenho cognitivo.
"Estamos sempre fazendo esse processo de filtragem e seleção daquilo em que vamos prestar atenção, com ou sem computador. Alguém que esteja estudando off-line alterna a atenção entre suas anotações, o livro que está lendo, a música ao fundo, o telefone que toca, uma pessoa que passa", compara.
RETROCESSO Já para Nicholas Carr, a cultura do multitask característica da internet representa uma ameaça à tradição da leitura profunda e solitária. A web estaria formando leitores incapazes de manter a atenção sustentada e de processar textos de fôlego. Para ele, o novo padrão de leitura imposto pela internet é um retrocesso em nossa história cultural. "Estamos deixando de ser cultivadores do conhecimento pessoal para nos tornar caçadores e coletores na floresta eletrônica de dados." Carr teme que a leitura concentrada volte a ser o hábito restrito a uma elite intelectual. A era da leitura em massa, aposta, terá sido apenas "uma breve anomalia em nossa história intelectual".
A visão apocalíptica de Carr foi contestada em artigo publicado no "New York Times" pelo psicólogo evolutivo canadense Steven Pinker, professor da Universidade Harvard. Para ele, se a internet fosse tão nociva para a nossa inteligência, não estaríamos vivendo um período de grande florescimento das ciências, da filosofia, da história e da crítica cultural.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), se alinha com a visão de Pinker. "A internet é extremamente libertadora para a ciência, para a democracia e para a sociedade. Mas a gente talvez ainda não saiba usar direito."
Usuário intensivo da web, Sidarta afirma que seu uso nos torna "viciados em novidade" e admite que precisa se esforçar para passar um domingo off-line ou para não ler e-mails no celular. "A rede é um ambiente riquíssimo, mas gera angústia, ansiedade e muitas decisões apressadas -a quantidade de coisas disponível pra ler é muito alta e o tempo de reflexão está diminuindo." Para Sidarta, autodisciplina é a chave para um uso razoável da internet. "É preciso saber se abster."
Já Martín Cammarota concorda com a afirmação que motivou o livro de Nicholas Carr -estamos de fato nos tornando mais rasos. Mas ele prefere enxergar na web um reflexo da ligeireza da cultura contemporânea, mais do que a raiz do mal. "A internet é só um sintoma da superficialidade da nossa vida, na qual cada vez mais se valoriza a forma em detrimento do conteúdo. Para ele, o problema reside mais em como usamos a rede. "Se você vai ao Google fazer uma pesquisa e se contenta com a leitura de um verbete da Wikipédia em vez de ir a uma biblioteca, o problema é seu, não da internet."
Estamos nos tornando leitores desconcentrados e pensadores rasos, incapazes de articular raciocínios complexos
Se a internet fosse tão nociva, não estaríamos num período de florescimento das ciências, da filosofia, da história e da crítica, segundo Pinker
RESUMO
O excesso de informações oferecidas na internet tem causado impacto negativo na nossa capacidade de reter informações, tornando-nos "rasos", segundo o jornalista Nicholas Carr no livro "The Shallows". Cientistas brasileiros comentam a tese de Carr e especulam sobre as consequências cerebrais de um mundo saturado de dados.
BERNARDO ESTEVES
HÁ TEMPOS VOCÊ não encara um livro de mais de 500 páginas. Na internet, evita artigos longos e, quando decide ler um, carrega na barra de rolagem e pula longos blocos de texto. É incapaz de manter a concentração por mais de dois parágrafos. Interrompe a leitura para visitar alguma das outras janelas em que está navegando simultaneamente. Antes de prosseguir, checa seu e-mail, vai ver um vídeo que recebeu de um amigo, responde um SMS que chegou pelo celular e confere as últimas atualizações das pessoas que acompanha no Twitter ou no Facebook.
A cena é típica entre usuários intensivos da internet. Desatenção e falta de foco são o custo cognitivo da imersão prolongada em um ambiente dispersivo como o da web - um grande "ecossistema de tecnologias da interrupção", na definição do blogueiro canadense Cory Doctorow. Mas pode sair bem mais salgada a conta a se pagar pela nossa adoção irreversível da internet, na avaliação do jornalista americano Nicholas Carr. Em seu último livro, ele argumenta que a rede está mudando -para pior- a forma como pensamos e a própria estrutura e funcionamento do nosso cérebro. Para ele, estamos nos tornando leitores desconcentrados e pensadores rasos, incapazes de articular raciocínios complexos.
SUPERFICIAIS Essa é a tese central de "The Shallows -What the Internet Is Doing to our Brains" ("Os Superficiais- o que a Internet Está Fazendo com nossos Cérebros"), a ser lançado no Brasil pela Ediouro. O livro leva adiante uma questão polêmica que ele levantou em um ensaio de grande repercussão na revista The Atlantic: "O Google está nos deixando mais burros?" Desde a publicação do artigo, em 2008, Carr vem acumulando argumentos para convencer seu leitor de que sim.
Ele sustenta que a internet está promovendo mudanças celulares em nosso cérebro, fortalecendo certos caminhos neurais e enfraquecendo outros. Uma das primeiras evidências que apresenta para sustentar sua tese é um estudo realizado em 2009 na Universidade da Califórnia em Los Angeles.
A equipe do psiquiatra Gary Small usou a técnica de ressonância magnética funcional para monitorar o cérebro de internautas iniciantes e experientes enquanto liam on-line e faziam buscas no Google. Os resultados mostraram que, nesse segundo grupo, as buscas no Google levavam à ativação de áreas cerebrais ligadas à tomada de decisões e ao raciocínio complexo.
Esse aumento da atividade cerebral não chega a representar uma surpresa. "O uso da web envolve atenção, aprendizagem, memória, tomada de decisões -é plausível que acarrete mudanças anatômicas no cérebro", avalia o neurocientista Roberto Lent, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
CÉREBRO MUTANTE Estranho seria que não houvesse qualquer mudança. Modificar o cérebro não é um privilégio da internet -acontece com qualquer processo de aprendizagem. "Quando você aprende a dirigir, uma área do seu cérebro que não era ativada vai se ativar", compara o neurocientista Martín Cammarota, do Centro de Memória da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). "O mesmo acontece com quem aprende a montar um quebra-cabeça, a fazer café ou a usar o Google."
Por definição, uma maior atividade cerebral não é ruim -pelo contrário. O próprio Carr reconhece que o uso da internet estimula a inteligência visual e espacial. Mas ele alega que isso se dá em detrimento da capacidade de análise, reflexão e pensamento crítico. Ele cita alguns estudos experimentais para caracterizar o suposto efeito deletério do hipertexto e da internet sobre a apreensão e memorização de informações.
Um trabalho de 2003 realizado por uma dupla de pesquisadores da Universidade Cornell avaliou o desempenho de estudantes após assistirem a uma conferência. Alunos que puderam consultar seus laptops e navegar na internet durante a palestra tiveram nota pior que a daqueles que não puderam abrir seus computadores. Outros estudos avaliaram o desempenho de alunos em um teste de compreensão de um mesmo texto apresentado ora em versão linear, ora em formato hipertextual, com links, imagens e recursos de multimídia. A performance dos alunos que leram o texto corrido era significativamente melhor -a nota era inversamente proporcional ao número de links do texto.
EXPLOSÃO DE ESTÍMULOS A interpretação desses resultados é questionada pela neurocientista da UFRJ e colunista da Folha Suzana Herculano-Houzel. "Dizer que o aproveitamento do conhecimento é superficial na internet é uma visão muito enviesada", avalia. "Seria preciso perguntar a essas pessoas quanto elas aprenderam sobre os conteúdos pesquisados nos links que visitaram. A riqueza de informações associadas ao conteúdo estudado torna a experiência de leitura na web muito mais profunda do que superficial." Para a pesquisadora, a explosão de estímulos da internet favoreceria também a memorização.
"Quanto mais elementos você tiver para associar a uma informação nova, mais chance terá de fixar uma memória rica e detalhada."
A alegação de Suzana -uma entusiasta da internet, blogueira e consumidora de primeira hora de gadgets como o Kindle ou o iPad- vai na contramão do que sustenta o livro de Nicholas Carr. Para ele, a leitura dispersiva que fazemos na web compromete o processo que faz com que uma informação se transforme em uma memória duradoura. A consolidação das memórias pode ser impedida por fenômenos variados. Boxeadores que levam um soco caprichado, por exemplo, podem ter apagadas memórias de instantes anteriores ao golpe.
Para Carr, os tuítes, torpedos e e-mails que interrompem a leitura de um texto on-line podem ter um efeito similar ao de um bom cruzado no queixo sobre a consolidação das memórias. "A web é uma tecnologia do esquecimento", afirma, categórico.
A comparação decerto é exagerada. "É complicado comparar um traumatismo mecânico e outro de natureza cognitiva", avalia Roberto Lent. "Não creio que haja evidências de um dano físico dos circuitos cerebrais devido ao uso da internet."
Seja como for, a memorização de uma informação depende da atenção dedicada a ela no momento da aquisição. E a multiplicidade de estímulos da internet não favorece exatamente a concentração. Podemos navegar em várias janelas ao mesmo tempo, mas não temos o hardware necessário para processar simultaneamente tantas solicitações paralelas. Trocando em miúdos, nosso cérebro não é "multitask".
"Só conseguimos prestar atenção em uma coisa de cada vez, por uma limitação intrínseca ao cérebro", explica Suzana Herculano-Houzel. Mas ela não enxerga nisso uma ameaça a nosso desempenho cognitivo.
"Estamos sempre fazendo esse processo de filtragem e seleção daquilo em que vamos prestar atenção, com ou sem computador. Alguém que esteja estudando off-line alterna a atenção entre suas anotações, o livro que está lendo, a música ao fundo, o telefone que toca, uma pessoa que passa", compara.
RETROCESSO Já para Nicholas Carr, a cultura do multitask característica da internet representa uma ameaça à tradição da leitura profunda e solitária. A web estaria formando leitores incapazes de manter a atenção sustentada e de processar textos de fôlego. Para ele, o novo padrão de leitura imposto pela internet é um retrocesso em nossa história cultural. "Estamos deixando de ser cultivadores do conhecimento pessoal para nos tornar caçadores e coletores na floresta eletrônica de dados." Carr teme que a leitura concentrada volte a ser o hábito restrito a uma elite intelectual. A era da leitura em massa, aposta, terá sido apenas "uma breve anomalia em nossa história intelectual".
A visão apocalíptica de Carr foi contestada em artigo publicado no "New York Times" pelo psicólogo evolutivo canadense Steven Pinker, professor da Universidade Harvard. Para ele, se a internet fosse tão nociva para a nossa inteligência, não estaríamos vivendo um período de grande florescimento das ciências, da filosofia, da história e da crítica cultural.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), se alinha com a visão de Pinker. "A internet é extremamente libertadora para a ciência, para a democracia e para a sociedade. Mas a gente talvez ainda não saiba usar direito."
Usuário intensivo da web, Sidarta afirma que seu uso nos torna "viciados em novidade" e admite que precisa se esforçar para passar um domingo off-line ou para não ler e-mails no celular. "A rede é um ambiente riquíssimo, mas gera angústia, ansiedade e muitas decisões apressadas -a quantidade de coisas disponível pra ler é muito alta e o tempo de reflexão está diminuindo." Para Sidarta, autodisciplina é a chave para um uso razoável da internet. "É preciso saber se abster."
Já Martín Cammarota concorda com a afirmação que motivou o livro de Nicholas Carr -estamos de fato nos tornando mais rasos. Mas ele prefere enxergar na web um reflexo da ligeireza da cultura contemporânea, mais do que a raiz do mal. "A internet é só um sintoma da superficialidade da nossa vida, na qual cada vez mais se valoriza a forma em detrimento do conteúdo. Para ele, o problema reside mais em como usamos a rede. "Se você vai ao Google fazer uma pesquisa e se contenta com a leitura de um verbete da Wikipédia em vez de ir a uma biblioteca, o problema é seu, não da internet."
Estamos nos tornando leitores desconcentrados e pensadores rasos, incapazes de articular raciocínios complexos
Se a internet fosse tão nociva, não estaríamos num período de florescimento das ciências, da filosofia, da história e da crítica, segundo Pinker
quarta-feira, 16 de março de 2011
cartamaior - Os 128 anos da morte de Marx
No dia 14 de março de 1883, em Londres, morreu Karl Marx, aos 64 anos. Economista, historiador, sociólogo, filósofo e jornalista, Marx é um destes autores que não podem ser enquadrados em apenas uma área do conhecimento humano. O autor de "O Capital" apresentou ao mundo um estudo aprofundado sobre as origens e a lógica de desenvolvimento do capitalismo. Autor fundador da esquerda moderna, Marx já foi condenado ao esquecimento algumas vezes, mas as repetidas crises do capitalismo sempre renovam o interesse por sua obra.
Redação
No dia 14 de março de 1883, em Londres, morreu Karl Marx, aos 64 anos. Economista, historiador, sociólogo, filósofo e jornalista, Marx é um destes autores que não podem ser enquadrados em apenas uma área do conhecimento humano. O autor de "O Capital" apresentou ao mundo um estudo aprofundado sobre as origens e a lógica de desenvolvimento do capitalismo. Autor fundador da esquerda moderna, Marx já foi condenado ao esquecimento algumas vezes, mas as repetidas crises do capitalismo sempre renovam o interesse por sua obra.
Neste dia, lembramos sua obra e seu legado publicando o discurso proferido por seu companheiro de reflexão e de militância Friedrich Engels, durante o funeral de Marx (publicado pelo Diário da Liberdade e pelo Portal Luta de Classes, a partir de texto do Arquivo Marxista na Internet):
Discurso de Friedrich Engeles no funeral de Karl Marx
Em 14 de março, quando faltam 15 minutos para as 3 horas da tarde, deixou de pensar o maior pensador do presente. Ficou sozinho por escassos dois minutos, e sucedeu de encontramos ele em sua poltrona dormindo serenamente — dessa vez para sempre.
O que o proletariado militante da Europa e da América, o que a ciência histórica perdeu com a perda desse homem é impossível avaliar. Logo evidenciará-se a lacuna que a morte desse formidável espírito abriu.
Assim como Darwin em relação a lei do desenvolvimento dos organismos naturais, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da História humana: o simples fato, escondido sobre crescente manto ideológico, de que os homens reclamam antes de tudo comida, bebida, moradia e vestuário, antes de poderem praticar a política, ciência, arte, religião, etc.; que portanto a produção imediata de víveres e com isso o correspondente estágio econômico de um povo ou de uma época constitui o fundamento a parir do qual as instituições políticas, as instituições jurídicas, a arte e mesmo as noções religiosas do povo em questão se desenvolve, na ordem em elas devem ser explicadas – e não ao contrário como nós até então fazíamos.
Isso não é tudo. Marx descobriu também a lei específica que governa o presente modo de produção capitalista e a sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia iluminaram-se subitamente esses problemas, enquanto que todas as investigações passadas, tanto dos economistas burgueses quanto dos críticos socialistas, perderam-se na obscuridade.
Duas descobertas tais deviam a uma vida bastar. Já é feliz aquele que faz somente uma delas. Mas em cada área isolada que Marx conduzia pesquisa, e estas pesquisas eram feitas em muitas áreas, nunca superficialmente, em cada área, inclusive na matemática, ele fez descobertas singulares.
Tal era o homem de ciência. Mas isso não era nem de perto a metade do homem. A ciência era para Marx um impulso histórico, uma força revolucionária. Por muito que ele podia ficar claramente contente com um novo conhecimento em alguma ciência teórica, cuja utilização prática talvez ainda não se revelasse – um tipo inteiramente diferente de contentamento ele experimentava, quando tratava-se de um conhecimento que exercia imediatamente uma mudança na indústria, e no desenvolvimento histórica em geral. Assim por exemplo ele acompanhava meticulosamente os avanços de pesquisa na área de eletricidade, e recentemente ainda aquelas de Marc Deprez.
Pois Marx era antes de tudo revolucionário. Contribuir, de um ou outro modo, com a queda da sociedade capitalista e de suas instituições estatais, contribuir com a emancipação do moderno proletariado, que primeiramente devia tomar consciência de sua posição e de seus anseios, consciência das condições de sua emancipação – essa era sua verdadeira missão em vida. O conflito era seu elemento. E ele combateu com uma paixão, com uma obstinação, com um êxito, como poucos tiveram. Seu trabalho no 'Rheinische Zeitung' (1842), no parisiense 'Vorwärts' (1844), no 'Brüsseler Deutsche Zeitung' (1847), no 'Neue Rheinische Zeitung' (1848-9), no 'New York Tribune' (1852-61) – junto com um grande volume de panfletos de luta, trabalho em organização de Paris, Bruxelas e Londres, e por fim a criação da grande Associação Internacional de Trabalhadores coroando o conjunto – em verdade, isso tudo era de novo um resultado que deixaria orgulhoso seu criador, ainda que não tivesse feito mais nada.
E por isso era Marx o mais odiado e mais caluniado homem de seu tempo. Governantes, absolutistas ou republicanos, exilavam-no. Burgueses, conservadores ou ultra-democratas, competiam em caluniar-lhe. Ele desvencilhava-se de tudo isso como se fosse uma teia de aranha, ignorava, só respondia quando era máxima a necessidade. E ele faleceu reverenciado, amado, pranteado por milhões de companheiros trabalhadores revolucionários – das minas da Sibéria, em toda parte da Europa e América, até a Califórnia – e eu me atrevo a dizer: ainda que ele tenha tido vários adversários, dificilmente teve algum inimigo pessoal.
Seu nome atravessará os séculos, bem como sua obra!
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terça-feira, 8 de março de 2011
RUBEM ALVES - Filosofia, poesia e folia...
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O homem tem sentido muito pouca alegria: esse, somente, meus irmãos, é o nosso pecado original
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AOS QUE DANÇAM aos sons coloridos da fantasia, aos que fazem os corpos tremer, voar e mostrar, essas pitadas de filosofia, poesia e folia, escritas por Nietzsche, discípulo de Dionísio, deus do vinho, das festas, das orgias e do prazer...
Fantasiado de filosofo ele se junta aos cordões de foliões...
"Eu poderia crer somente num deus que dançasse. E quando vi o meu demônio eu o encontrei sério, rigoroso, profundo e solene: era o espírito da gravidade por ele todas as coisas afundam. Não se mata por meio do ódio. Mata-se por meio do riso. Venham, vamos matar o espírito de gravidade! Agora estou leve! Agora eu voo! Agora um deus dança através do meu corpo."
Num homem real se esconde uma criança... que deseja brincar...
"Somente na dança eu sei contar a parábola das coisas mais altas! Quanto a mim, gosto da vida: borboletas e bolhas de sabão e todas as coisas que, entre os homens, se assemelhem a elas. Vendo flutuar essas almas leves, tolas, moveis, pequenas isso seduz Zaratustra a lágrimas e canções."
O homem tem sentido muito pouca alegria: esse, somente, meus irmãos, é o nosso pecado original.
Um homem de verdade deseja duas coisas: perigo e brincar.
A maturidade de um homem consiste em achar de novo a seriedade que se tinha como criança ao brincar.
E vocês, para quem a vida é um trabalho furioso e agitação, não estão cansados da vida? Não estão maduros para a pregação da morte? Todos vocês, que amam o trabalho furioso, o que é rápido, novo e estranho na verdade vocês acham difícil suportar vocês mesmos. O seu trabalho é uma fuga, uma vontade de se esquecerem de vocês mesmos. Se acreditassem mais na vida, não se agitariam tanto. Mas vocês não têm conteúdo suficiente em vocês mesmos para esperar e nem mesmo tempo para a preguiça.
Digo-lhes: é preciso ter caos dentro de si mesmo para ser capaz de dar à luz uma estrela dançante.
As palavras e os sons, não são eles pontes iridescentes e etéreas entre coisas eternamente separadas? Os nomes e os sons não foram dados às coisas para que nós as achássemos mais refrescantes? A fala é uma deliciosa loucura. Por meio dela o homem dança sobre todas as coisas.
O fundo do meu mar é tranquilo: quem poderia imaginar que nele vivem monstros brincalhões? Minhas profundezas são imperturbáveis. Mas elas cintilam com enigmas e risos nadantes.
Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as crianças, sou ainda um sábio, e também para os espinhos e papoulas vermelhas.
Foi-se a penumbra hesitante da minha primavera! Foi-se a maldade dos meus flocos de neve no verão. Tornei-me verão inteiramente, meio-dia de verão! Verão nas esferas altas com fontes frescas e silêncio abençoado. Oh! Venham meus amigos, para que o silêncio se torne mais abençoado ainda!
O deleite do artista naquilo que é passageiro, a alegria do artista que desafia todo sofrimento, é meramente uma imagem brilhante de nuvens e céu espelhada no lago negro da tristeza.
O homem tem sentido muito pouca alegria: esse, somente, meus irmãos, é o nosso pecado original
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AOS QUE DANÇAM aos sons coloridos da fantasia, aos que fazem os corpos tremer, voar e mostrar, essas pitadas de filosofia, poesia e folia, escritas por Nietzsche, discípulo de Dionísio, deus do vinho, das festas, das orgias e do prazer...
Fantasiado de filosofo ele se junta aos cordões de foliões...
"Eu poderia crer somente num deus que dançasse. E quando vi o meu demônio eu o encontrei sério, rigoroso, profundo e solene: era o espírito da gravidade por ele todas as coisas afundam. Não se mata por meio do ódio. Mata-se por meio do riso. Venham, vamos matar o espírito de gravidade! Agora estou leve! Agora eu voo! Agora um deus dança através do meu corpo."
Num homem real se esconde uma criança... que deseja brincar...
"Somente na dança eu sei contar a parábola das coisas mais altas! Quanto a mim, gosto da vida: borboletas e bolhas de sabão e todas as coisas que, entre os homens, se assemelhem a elas. Vendo flutuar essas almas leves, tolas, moveis, pequenas isso seduz Zaratustra a lágrimas e canções."
O homem tem sentido muito pouca alegria: esse, somente, meus irmãos, é o nosso pecado original.
Um homem de verdade deseja duas coisas: perigo e brincar.
A maturidade de um homem consiste em achar de novo a seriedade que se tinha como criança ao brincar.
E vocês, para quem a vida é um trabalho furioso e agitação, não estão cansados da vida? Não estão maduros para a pregação da morte? Todos vocês, que amam o trabalho furioso, o que é rápido, novo e estranho na verdade vocês acham difícil suportar vocês mesmos. O seu trabalho é uma fuga, uma vontade de se esquecerem de vocês mesmos. Se acreditassem mais na vida, não se agitariam tanto. Mas vocês não têm conteúdo suficiente em vocês mesmos para esperar e nem mesmo tempo para a preguiça.
Digo-lhes: é preciso ter caos dentro de si mesmo para ser capaz de dar à luz uma estrela dançante.
As palavras e os sons, não são eles pontes iridescentes e etéreas entre coisas eternamente separadas? Os nomes e os sons não foram dados às coisas para que nós as achássemos mais refrescantes? A fala é uma deliciosa loucura. Por meio dela o homem dança sobre todas as coisas.
O fundo do meu mar é tranquilo: quem poderia imaginar que nele vivem monstros brincalhões? Minhas profundezas são imperturbáveis. Mas elas cintilam com enigmas e risos nadantes.
Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as crianças, sou ainda um sábio, e também para os espinhos e papoulas vermelhas.
Foi-se a penumbra hesitante da minha primavera! Foi-se a maldade dos meus flocos de neve no verão. Tornei-me verão inteiramente, meio-dia de verão! Verão nas esferas altas com fontes frescas e silêncio abençoado. Oh! Venham meus amigos, para que o silêncio se torne mais abençoado ainda!
O deleite do artista naquilo que é passageiro, a alegria do artista que desafia todo sofrimento, é meramente uma imagem brilhante de nuvens e céu espelhada no lago negro da tristeza.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
pt - política - filosofia - Carta Maior - O que é ser de esquerda, hoje?
O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à desconcentração das terras e à socialização do poder político e econômico.
Luiz Marques
A “modernidade” nasceu com o Renascimento, a Reforma e a conquista das Américas. Encerrou-se com os horrores das duas Guerras Mundiais. Começou então a gincana intelectual para achar uma expressão adequada à sociedade que sobreveio. “Pós-industrial”, arriscou-se nos anos 50. “Pós-moderna”, insinuou-se nos 80. “Era nova”, comemorou-se no auge da globalização teleguiada pelo capital financeiro, nos 90. Esses termos suscitaram discussões e confusões semânticas na academia e nos cafés, o que esvaziou o potencial analítico de cada um. Mas ajudaram a compreender a crise dos paradigmas modernos e suas negatividades intrínsecas.
Que paradigmas? 1) a economia de mercado, que acelerou a urbanização do ser humano, desembocando no neoliberalismo e na violência no cotidiano das metrópoles; 2) o progresso nas ciências e nas técnicas de manipulação da matéria não-viva (exploração da energia atômica) e viva (descoberta do DNA, práticas de clonagem), com desenlaces imprevisíveis, indo de uma possível hecatombe a servidões jamais imaginadas; 3) os esforços seculares da opinião pública para controlar o poder político, que não consideraram o fato de a mídia induzir em larga escala o juízo da cidadania, através da radiofonia, da televisão e dos jornais, que a propriedade cruzada agrava; 4) a conversão do indivíduo em vértice social e moral da sociedade, que não levou em conta que a massificação (heteronomia) corrói a livre consciência (autonomia) e; 5) a preeminência do eurocentrismo na avaliação de outras culturas, que conduziu ao colonialismo.
A lição a ser tirada, conforme o filósofo francês Pierre Fougeyrollas (A crise dos paradigmas modernos e o novo pensamento, 2007), remete a uma forma de pensar comprometida com a espécie e o planeta. “Cósmica”, para reintegrar a humanidade no cosmos. “Lúdica”, para estampar a criatividade poética e artística na abordagem do real. “Demiúrgica”, para apropriar-se do existente e promover uma recriação de tudo, com espírito ecumênico. “Interativa”, para subverter as hierarquias clássicas do conhecimento, conectando intuições e conceitos, ideias e imagens. Os eixos estratégicos do “novo pensamento” decorrem de um olhar realista sobre o presente.
Esse programa traduz a luta dos movimentos sociais e ambientalistas que reúnem-se nas edições do Fórum Social Mundial e, para 2012, já preparam um rol de intervenções visando a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que marcará duas décadas da Eco-92. O modelo de desenvolvimento ocidental (o modo de produção e de consumo), baseado na dominação da natureza, sem nenhum planejamento democrático, esgotou-se. Urge um mundo de fraternidade. Como pregou São Francisco de Assis, ao celebrar o Irmão Sol (Fratello Sole) e a Irmã Lua (Sorella Luna). Ou como indicou Marx, no terceiro volume d'O Capital, ao definir o socialismo como a sociedade onde “os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas com a natureza”. No caso, a emotiva prece cristã e o prognóstico ateu coincidem.
Ecossocialismo
Publicado em 2002, o “Manifesto Ecossocialista Internacional” conjuga o socialismo e o ecologismo, de maneira orgânica. “Na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social estão relacionados e deveriam ser encarados como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais”, lê-se no documento. Os desequilíbrios são o preço pago pela incontrolável dinâmica da acumulação, da ânsia de rentabilidade que não pode ser cancelada, da suposição de que os recursos naturais são infinitos, do ideal de enriquecimento pessoal. “Cresça ou morra”, é o lema do capitalismo. Seja “vencedor”, não “perdedor”, é o imperativo do mercado. No entanto, a lógica do produtivismo é insuportável. Orientada pelo valor de troca em detrimento do valor de uso, a produção ilimitada causa danos ambientais de proporções irreparáveis.
“Não se trata de opor os 'maus' capitalistas ecocidas aos 'bons' capitalistas verdes: é o próprio sistema, ancorado na concorrência impiedosa, nas exigências de lucro rápido, que é o destruidor do meio ambiente”, sublinha Michael Löwy. Sob certo aspecto, a falsa subdivisão apareceu no Protocolo de Kyoto (1997), que empregou dois mecanismos na tentativa de conter as emissões de carbono na atmosfera, o Cap and Trade: um teto máximo de emissões e um mercado de troca de títulos de direito de emissão de carbono no hemisfério Sul, para compensar a poluição provocada pelas nações industrializadas do Norte. Com o que o carbono atmosférico virou uma commodity.Forjado nas leis do mercado, o artifício para sensibilizar (a rigor, chantagear) o “empreendorismo” fracassou e as emissões aumentaram três vezes mais. A autonomização da economia não permite a sua subordinação a um controle social, político ou ético-ambiental.
O resultado é a profusão de bens desnecessários, e a escassez daqueles necessários às demandas sociais e ao equilíbrio ecológico. A política econômica capitalista é alinhavada por valores monetários. Não se rege por nenhuma consciência de espécie e tampouco planetária. Por isso, acarreta riscos iminentes para o futuro. “Se a primeira contradição do capitalismo se dá entre as forças produtivas e as relações de produção, a segunda ocorre entre as forças produtivas e as condições de produção (trabalhadores, espaço urbano, natureza)”, observou James O'Connor, editor da revista norte-americana Capitalism, Nature and Socialism. Hoje, não existe a contradição principal e a secundária, elas apresentam-se imbricadas. O ecossocialismo pugna em ambas as frentes.
O marxismo renovou-se ao encontrar a ecologia, a problemática de gênero e raça. Não se confirmou a assertiva de que suas categorias teóricas (os modos de produção e a formação econômico-social) seriam demasiado esquemáticas para apreender a sobreposição das esferas ideológica, política e econômica, e a articulação dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem os suportes de sustentabilidade da produção. O marxismo revelou-se aberto às oposições não-classistas e comedido em relação à noção de “progresso”. Atento às forças destrutivas do capitalismo. Reside aí a contribuição do ecologismo à práxismarxista. Em contrapartida, os movimentos ecologistas que estenderam as mãos ao marxismo somaram, à denúncia do produtivismo, a percepção crítica sobre as estruturas sócio-econômicas que impulsionam a ganância.
Ecologia de mercado
Não raros, circunscrevem as mobilizações ecológicas aos temas pontuais, sem contextualizá-las em uma totalidade significativa. Apostam em um “capitalismo limpo”, que combine a “responsabilidade social”, apregoada pelos que elidiram do Estado a obrigação de políticas para erradicar a pobreza, e a “responsabilidade verde”, destacada com ridículas medalhas ao mérito para as empresas que adotam uma praça ou um canteiro de plantas. Abstêm-se de pressionar o aparelho estatal para que tome iniciativas em prol dos setores sociais desfavorecidos e do combalido meio ambiente. Propõem “ecotaxas” aos infratores da legalidade, se tanto. Preocupam-se com os “excessos”, não com o que rotiniza a predação. Tais inhapas são absorvidas pelo status quo, passando a impressão que a ameaça sobre a Terra (Gaia, no dizer de um pioneiro, José Lutzenberger) pode ser revertida com um marketingde “varejo”, prescindindo das políticas de “atacado”.
Se essa parcela de ativistas exprime um discernimento precário ao agir, o mesmo ocorre quando o movimento operário alia-se ao lobby da indústria automobilística para forçar vantagens fiscais. O automóvel, glamourizado e erotizado pela publicidade, é um símbolo do american way of life, da incitação ao consumo individual. Calcula-se que 45% do território de Los Angeles esteja reservado aos carros, incluindo a área viária e os estacionamentos. Em São Paulo, chega-se a algo em torno de 35%. Politicamente correto é investir no transporte coletivo de qualidade, em faixas segregadas para ônibus, trens de superfície, metrôs e bicicletas nas cidades para evitar os congestionamentos, bem como pleitear ferrovias para desafogo dos pesados caminhões de carga nas estradas, que engordam as estatísticas de acidentes com vítimas. Tragédias, aliás, que não se resolvem em mesas redondas com as associações de construtores de veículos automotivos e os consumidores para estudar os dispositivos de freios, o raiado dos pneus, etc. Resolvem-se com o participacionismo social, desde que este postule um outro modo de vida, sob um horizonte civilizacional que supere o fetichismo da mercadoria de rodas.
Os verdes tendem a abstrair da história a defesa ambiental, tecendo uma responsabilização genérica, como se um ascensorista de elevador tivesse idêntica parcela de envolvimento que o proprietário de uma fábrica de celulose. “A culpa é do homem”, são as manchetes jornalísticas nos cadernos especiaissobrea agenda do crescimento sustentável. Vale salientar, contudo, que os ambientalistas europeus fizeram a leitura correta das eleições presidenciais brasileiras. Declararam apoio a Dilma Rousseff, no segundo turno, para que “o voto libertário em Marina Silva paradoxalmente não se transformasse em uma catástrofe para as mulheres, para os direitos humanos e para os direitos da natureza... José Serra não é um socialdemocrata de centro... Por trás dele, a direita mobiliza o que há de pior... preconceitos sexistas, machistas e homofóbicos, junto com interesses econômicos escusos e míopes”. Entre os signatários, Dany Cohn Bendit (Alemanha), Alain Lipietz (França), Philippe Lamberts (Bélgica), Monica Frassoni (Itália).
O bom senso (que veio do frio) não contagiou Marina que, ao invés de dramatizar o momento em que decidia-se a continuidade do projeto representado pelo governo Lula (avanços sociais, participação cidadã, política externa soberana) ou a volta ao neoliberalismo (privatizações, desemprego, corrupção, submissão à Alca e aos EUA), optaram pela neutralidade. Com o que, dois terços dos eleitores do PV penderam para o candidato do atraso, sem um gesto sequer da dirigente-mor para impedir o deslizamento político. A pequenez tirou do partido o papel de educador das massas, despolitizou as escolhas e fez tábua rasa das duras batalhas contra as desigualdades sociais e regionais. Ao contrário de situar os verdes nativos como uma pretensa alternativa, o vergonhoso silêncio erigiu-os em tristes bengalas auxiliares da reação nas urnas.
Esquerda versus Direita
Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita, 1994), mentor da “Terceira Via”, tentou uma síntese superior entre o conservadorismo e o socialismo, os quais teriam sido abatidos pela marcha da globalização e a expansão da reflexividade social. O campo da política, assim, haveria se alterado e cedido terreno aos paradoxos do neoliberalismo. Sua sugestão para “repensar” o Welfare State (o Estado de bem-estar social) foi acolhida pelo primeiro-ministro britânico, e em nada diferenciou-se do receituário de Thatcher/Major. Tony Blair manteve a legislação que flexibilizava e desregulamentava o contrato de trabalho e, com cinismo, explicitou em um discurso a essência da Third Way: “flexibilização sim, mas com fair play”. O livro do sociólogo inglês mostra o quanto a esquerda desceu ao inferno no período, rendendo-se ao Consenso de Washington.
Coube a Norberto Bobbio (Direita e esquerda, 1994) defender a atualidade da díade política que remonta à Revolução Francesa. A esquerda teria como epicentro o valor da “igualdade” (as pessoas são mais iguais que desiguais, socialmente). A direita, o valor da “liberdade” (as pessoas são mais desiguais que iguais, naturalmente). A importância da reflexão, lançada numa época em que o capitalismo triunfante trombeteava o “fim das ideologias”, esteve em (re)legitimar a dualidade político-ideológica. O opúsculo do jurista italiano teve 200 mil exemplares vendidos e 19 traduções em um curto prazo. Como Fênix, o pássaro da mitologia grega, a esquerda renascia depois de assassinada pelas agências internacionais de notícias, que viram na queda do Muro de Berlim (1989) a domesticação da utopia e o desaparecimento da rebeldia e da esperança.
Mas o princípio da igualdade não exaure a conceituação sobre o que significa externar uma atitude anticapitalista. No final do século 19, ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense, a equanimidade de gênero, as afirmações étnicas, o respeito às diferenças, a integração dos países latino-americanos, a inversão de prioridades na administração pública e, ainda, a democracia participativa, cuja inspiração acha-se condensada na máxima de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A partir dos anos 70, surgiu a questão ecológica.
O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à desconcentração das terras e à socialização do poder político e econômico. Aquela, desde priscas eras, reitera uma contrariedade ao pagamento de impostos. Não porque sejam regressivos ou recolhidos com critérios tributários que penalizam as classes trabalhadoras. Mas porque, com a ascensão de governos democrático-populares na América Latina, os fundos públicos são redirecionados por políticas republicanas à dignificação da vida da população. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, cantava Raul Seixas. Isso, para preservar a coerência com a “justiça social” no enfrentamento à “ordem estabelecida”. Acrescente-se, no metafórico aniversário de 31 anos do PT.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Luiz Marques
A “modernidade” nasceu com o Renascimento, a Reforma e a conquista das Américas. Encerrou-se com os horrores das duas Guerras Mundiais. Começou então a gincana intelectual para achar uma expressão adequada à sociedade que sobreveio. “Pós-industrial”, arriscou-se nos anos 50. “Pós-moderna”, insinuou-se nos 80. “Era nova”, comemorou-se no auge da globalização teleguiada pelo capital financeiro, nos 90. Esses termos suscitaram discussões e confusões semânticas na academia e nos cafés, o que esvaziou o potencial analítico de cada um. Mas ajudaram a compreender a crise dos paradigmas modernos e suas negatividades intrínsecas.
Que paradigmas? 1) a economia de mercado, que acelerou a urbanização do ser humano, desembocando no neoliberalismo e na violência no cotidiano das metrópoles; 2) o progresso nas ciências e nas técnicas de manipulação da matéria não-viva (exploração da energia atômica) e viva (descoberta do DNA, práticas de clonagem), com desenlaces imprevisíveis, indo de uma possível hecatombe a servidões jamais imaginadas; 3) os esforços seculares da opinião pública para controlar o poder político, que não consideraram o fato de a mídia induzir em larga escala o juízo da cidadania, através da radiofonia, da televisão e dos jornais, que a propriedade cruzada agrava; 4) a conversão do indivíduo em vértice social e moral da sociedade, que não levou em conta que a massificação (heteronomia) corrói a livre consciência (autonomia) e; 5) a preeminência do eurocentrismo na avaliação de outras culturas, que conduziu ao colonialismo.
A lição a ser tirada, conforme o filósofo francês Pierre Fougeyrollas (A crise dos paradigmas modernos e o novo pensamento, 2007), remete a uma forma de pensar comprometida com a espécie e o planeta. “Cósmica”, para reintegrar a humanidade no cosmos. “Lúdica”, para estampar a criatividade poética e artística na abordagem do real. “Demiúrgica”, para apropriar-se do existente e promover uma recriação de tudo, com espírito ecumênico. “Interativa”, para subverter as hierarquias clássicas do conhecimento, conectando intuições e conceitos, ideias e imagens. Os eixos estratégicos do “novo pensamento” decorrem de um olhar realista sobre o presente.
Esse programa traduz a luta dos movimentos sociais e ambientalistas que reúnem-se nas edições do Fórum Social Mundial e, para 2012, já preparam um rol de intervenções visando a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que marcará duas décadas da Eco-92. O modelo de desenvolvimento ocidental (o modo de produção e de consumo), baseado na dominação da natureza, sem nenhum planejamento democrático, esgotou-se. Urge um mundo de fraternidade. Como pregou São Francisco de Assis, ao celebrar o Irmão Sol (Fratello Sole) e a Irmã Lua (Sorella Luna). Ou como indicou Marx, no terceiro volume d'O Capital, ao definir o socialismo como a sociedade onde “os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas com a natureza”. No caso, a emotiva prece cristã e o prognóstico ateu coincidem.
Ecossocialismo
Publicado em 2002, o “Manifesto Ecossocialista Internacional” conjuga o socialismo e o ecologismo, de maneira orgânica. “Na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social estão relacionados e deveriam ser encarados como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais”, lê-se no documento. Os desequilíbrios são o preço pago pela incontrolável dinâmica da acumulação, da ânsia de rentabilidade que não pode ser cancelada, da suposição de que os recursos naturais são infinitos, do ideal de enriquecimento pessoal. “Cresça ou morra”, é o lema do capitalismo. Seja “vencedor”, não “perdedor”, é o imperativo do mercado. No entanto, a lógica do produtivismo é insuportável. Orientada pelo valor de troca em detrimento do valor de uso, a produção ilimitada causa danos ambientais de proporções irreparáveis.
“Não se trata de opor os 'maus' capitalistas ecocidas aos 'bons' capitalistas verdes: é o próprio sistema, ancorado na concorrência impiedosa, nas exigências de lucro rápido, que é o destruidor do meio ambiente”, sublinha Michael Löwy. Sob certo aspecto, a falsa subdivisão apareceu no Protocolo de Kyoto (1997), que empregou dois mecanismos na tentativa de conter as emissões de carbono na atmosfera, o Cap and Trade: um teto máximo de emissões e um mercado de troca de títulos de direito de emissão de carbono no hemisfério Sul, para compensar a poluição provocada pelas nações industrializadas do Norte. Com o que o carbono atmosférico virou uma commodity.Forjado nas leis do mercado, o artifício para sensibilizar (a rigor, chantagear) o “empreendorismo” fracassou e as emissões aumentaram três vezes mais. A autonomização da economia não permite a sua subordinação a um controle social, político ou ético-ambiental.
O resultado é a profusão de bens desnecessários, e a escassez daqueles necessários às demandas sociais e ao equilíbrio ecológico. A política econômica capitalista é alinhavada por valores monetários. Não se rege por nenhuma consciência de espécie e tampouco planetária. Por isso, acarreta riscos iminentes para o futuro. “Se a primeira contradição do capitalismo se dá entre as forças produtivas e as relações de produção, a segunda ocorre entre as forças produtivas e as condições de produção (trabalhadores, espaço urbano, natureza)”, observou James O'Connor, editor da revista norte-americana Capitalism, Nature and Socialism. Hoje, não existe a contradição principal e a secundária, elas apresentam-se imbricadas. O ecossocialismo pugna em ambas as frentes.
O marxismo renovou-se ao encontrar a ecologia, a problemática de gênero e raça. Não se confirmou a assertiva de que suas categorias teóricas (os modos de produção e a formação econômico-social) seriam demasiado esquemáticas para apreender a sobreposição das esferas ideológica, política e econômica, e a articulação dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem os suportes de sustentabilidade da produção. O marxismo revelou-se aberto às oposições não-classistas e comedido em relação à noção de “progresso”. Atento às forças destrutivas do capitalismo. Reside aí a contribuição do ecologismo à práxismarxista. Em contrapartida, os movimentos ecologistas que estenderam as mãos ao marxismo somaram, à denúncia do produtivismo, a percepção crítica sobre as estruturas sócio-econômicas que impulsionam a ganância.
Ecologia de mercado
Não raros, circunscrevem as mobilizações ecológicas aos temas pontuais, sem contextualizá-las em uma totalidade significativa. Apostam em um “capitalismo limpo”, que combine a “responsabilidade social”, apregoada pelos que elidiram do Estado a obrigação de políticas para erradicar a pobreza, e a “responsabilidade verde”, destacada com ridículas medalhas ao mérito para as empresas que adotam uma praça ou um canteiro de plantas. Abstêm-se de pressionar o aparelho estatal para que tome iniciativas em prol dos setores sociais desfavorecidos e do combalido meio ambiente. Propõem “ecotaxas” aos infratores da legalidade, se tanto. Preocupam-se com os “excessos”, não com o que rotiniza a predação. Tais inhapas são absorvidas pelo status quo, passando a impressão que a ameaça sobre a Terra (Gaia, no dizer de um pioneiro, José Lutzenberger) pode ser revertida com um marketingde “varejo”, prescindindo das políticas de “atacado”.
Se essa parcela de ativistas exprime um discernimento precário ao agir, o mesmo ocorre quando o movimento operário alia-se ao lobby da indústria automobilística para forçar vantagens fiscais. O automóvel, glamourizado e erotizado pela publicidade, é um símbolo do american way of life, da incitação ao consumo individual. Calcula-se que 45% do território de Los Angeles esteja reservado aos carros, incluindo a área viária e os estacionamentos. Em São Paulo, chega-se a algo em torno de 35%. Politicamente correto é investir no transporte coletivo de qualidade, em faixas segregadas para ônibus, trens de superfície, metrôs e bicicletas nas cidades para evitar os congestionamentos, bem como pleitear ferrovias para desafogo dos pesados caminhões de carga nas estradas, que engordam as estatísticas de acidentes com vítimas. Tragédias, aliás, que não se resolvem em mesas redondas com as associações de construtores de veículos automotivos e os consumidores para estudar os dispositivos de freios, o raiado dos pneus, etc. Resolvem-se com o participacionismo social, desde que este postule um outro modo de vida, sob um horizonte civilizacional que supere o fetichismo da mercadoria de rodas.
Os verdes tendem a abstrair da história a defesa ambiental, tecendo uma responsabilização genérica, como se um ascensorista de elevador tivesse idêntica parcela de envolvimento que o proprietário de uma fábrica de celulose. “A culpa é do homem”, são as manchetes jornalísticas nos cadernos especiaissobrea agenda do crescimento sustentável. Vale salientar, contudo, que os ambientalistas europeus fizeram a leitura correta das eleições presidenciais brasileiras. Declararam apoio a Dilma Rousseff, no segundo turno, para que “o voto libertário em Marina Silva paradoxalmente não se transformasse em uma catástrofe para as mulheres, para os direitos humanos e para os direitos da natureza... José Serra não é um socialdemocrata de centro... Por trás dele, a direita mobiliza o que há de pior... preconceitos sexistas, machistas e homofóbicos, junto com interesses econômicos escusos e míopes”. Entre os signatários, Dany Cohn Bendit (Alemanha), Alain Lipietz (França), Philippe Lamberts (Bélgica), Monica Frassoni (Itália).
O bom senso (que veio do frio) não contagiou Marina que, ao invés de dramatizar o momento em que decidia-se a continuidade do projeto representado pelo governo Lula (avanços sociais, participação cidadã, política externa soberana) ou a volta ao neoliberalismo (privatizações, desemprego, corrupção, submissão à Alca e aos EUA), optaram pela neutralidade. Com o que, dois terços dos eleitores do PV penderam para o candidato do atraso, sem um gesto sequer da dirigente-mor para impedir o deslizamento político. A pequenez tirou do partido o papel de educador das massas, despolitizou as escolhas e fez tábua rasa das duras batalhas contra as desigualdades sociais e regionais. Ao contrário de situar os verdes nativos como uma pretensa alternativa, o vergonhoso silêncio erigiu-os em tristes bengalas auxiliares da reação nas urnas.
Esquerda versus Direita
Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita, 1994), mentor da “Terceira Via”, tentou uma síntese superior entre o conservadorismo e o socialismo, os quais teriam sido abatidos pela marcha da globalização e a expansão da reflexividade social. O campo da política, assim, haveria se alterado e cedido terreno aos paradoxos do neoliberalismo. Sua sugestão para “repensar” o Welfare State (o Estado de bem-estar social) foi acolhida pelo primeiro-ministro britânico, e em nada diferenciou-se do receituário de Thatcher/Major. Tony Blair manteve a legislação que flexibilizava e desregulamentava o contrato de trabalho e, com cinismo, explicitou em um discurso a essência da Third Way: “flexibilização sim, mas com fair play”. O livro do sociólogo inglês mostra o quanto a esquerda desceu ao inferno no período, rendendo-se ao Consenso de Washington.
Coube a Norberto Bobbio (Direita e esquerda, 1994) defender a atualidade da díade política que remonta à Revolução Francesa. A esquerda teria como epicentro o valor da “igualdade” (as pessoas são mais iguais que desiguais, socialmente). A direita, o valor da “liberdade” (as pessoas são mais desiguais que iguais, naturalmente). A importância da reflexão, lançada numa época em que o capitalismo triunfante trombeteava o “fim das ideologias”, esteve em (re)legitimar a dualidade político-ideológica. O opúsculo do jurista italiano teve 200 mil exemplares vendidos e 19 traduções em um curto prazo. Como Fênix, o pássaro da mitologia grega, a esquerda renascia depois de assassinada pelas agências internacionais de notícias, que viram na queda do Muro de Berlim (1989) a domesticação da utopia e o desaparecimento da rebeldia e da esperança.
Mas o princípio da igualdade não exaure a conceituação sobre o que significa externar uma atitude anticapitalista. No final do século 19, ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense, a equanimidade de gênero, as afirmações étnicas, o respeito às diferenças, a integração dos países latino-americanos, a inversão de prioridades na administração pública e, ainda, a democracia participativa, cuja inspiração acha-se condensada na máxima de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A partir dos anos 70, surgiu a questão ecológica.
O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à desconcentração das terras e à socialização do poder político e econômico. Aquela, desde priscas eras, reitera uma contrariedade ao pagamento de impostos. Não porque sejam regressivos ou recolhidos com critérios tributários que penalizam as classes trabalhadoras. Mas porque, com a ascensão de governos democrático-populares na América Latina, os fundos públicos são redirecionados por políticas republicanas à dignificação da vida da população. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, cantava Raul Seixas. Isso, para preservar a coerência com a “justiça social” no enfrentamento à “ordem estabelecida”. Acrescente-se, no metafórico aniversário de 31 anos do PT.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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política - A esquerda e o capitalismo, por Gourevitch - blog do nassif
Enviado por luisnassif, sex, 18/02/2011 - 11:26
Por JB Costa
Entrevista muito boa com um pensador que traduz bem a atual perplexidade acerca da dicotomia capital-trabalho, um dos últimos baluartes que teima em sobreviver para justificar o embate ideológico esquerda-direita.
Do Valor
"Governo de esquerda atrai mais o capital"
Cristian Klein | De São Paulo
18/02/2011
"Os capitalistas não necessariamente lêem meus artigos". A frase do cientista político Peter Gourevitch vem em tom de brincadeira, quando questionado se os temores do mercado foram demasiadamente injustificáveis e irracionais em relação à possibilidade de chegada ao poder no Brasil do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Tudo que viria depois, a manutenção dos cânones da política econômica, um governo afável ao capital, Gourevitch já previa.
Professor da Universidade da Califórnia, ele analisou a economia de 85 países, entre 1975 a 2004, e chegou à conclusão que vai contra a visão tradicional: a de que governos de esquerda espantam os investidores estrangeiros. Nesta entrevista, Gourevitch mostra por que não. Autor de um clássico sobre a relação entre política e grandes crises econômicas ("Politics in Hard Times", de 1986), ele é um dos convidados da conferência "Whatever Happened to North-South?", organizada pela Associação Internacional de Ciência Política (IPSA), pelo European Consortium for Political Research (ECPR) e pela Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), e que termina amanhã, na USP. Hoje, às 15h30, Gourevitch falará sobre os impactos da crise econômica de 2008.
Valor: O senhor defende que os governos de esquerda são os mais atraentes para os investidores. Isso contraria a tese tradicional de que o "capital vota com os pés", ou seja, de que a reação do grande capital é se retirar quando um governo de esquerda chega ao poder. Esse senso comum está errado?
Peter Gourevitch: Sim, é exatamente ao contrário. Mas o meu argumento é que os governos de esquerda são bons para os investidores estrangeiros. O capital doméstico é refratário a ele. Há mais tensão entre o capital doméstico e o trabalho do que entre este e o capital estrangeiro. O trabalhador quer que haja investimento que lhe proporcione a criação de mais empregos. O argumento tradicional da esquerda, de que capital e trabalho estão sempre em conflito, nem sempre é verdade. Depende de qual tipo de capital estamos falando e de qual tipo de trabalho.
Valor: Qual é a lógica que explica seu achado?
Gourevitch: É que o capital doméstico não quer o capital estrangeiro. A grande tensão em muitos países, especialmente da América Latina, é que o que é bom para a nação nem sempre é bom para o capital doméstico, que não quer a concorrência estrangeira. É protecionismo. No México, por exemplo, Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, controla totalmente as telecomunicações e o que resulta disso é que há pouca competição, os preços são altos e há dificuldade em absorver investimentos externos. O capital nacional, no mundo inteiro, não gosta de competição. E usa o nacionalismo para proteger seus interesses. A esquerda segue a mesma linha.
Valor: De que modo?
Gourevitch: A esquerda propaga a ideia de que "não gostamos do mercado e por isso apoiamos políticas regulatórias" que restringem a competição. Não acho que isso seja bom para a esquerda. Ela poderia fazer bem melhor se apoiasse mais os investimentos estrangeiros, a competição, que levariam a mais empregos, a mais prosperidade. A esquerda também é protecionista. Isso é ruim, mas também não ocorre em todas as situações, não é um comportamento uniforme. A esquerda, na verdade, fica muito feliz quando o capital estrangeiro investe e cria empregos.
Valor: Apesar disso, o que vemos é que os partidos de direita se associam à defesa de uma maior liberalização dos mercados.
Gourevitch: Sim, mas não é verdade. Eles flertam. Mas o que eles realmente fazem? Os partidos de direita se dividem entre aqueles que acreditam que a competição e o capital estrangeiro são uma boa coisa, e aqueles que não os querem. Há muitas situações que países como o Brasil enfrentam e cujas escolhas não se encaixam em dicotomias como esquerda e direita e capital e trabalho.
Valor: Por exemplo?
Gourevitch: Lula é o maior exemplo do que estou falando. Quis agradar os trabalhadores, os mais pobres, mas também assumiu uma estratégia de atrair investimentos estrangeiros.
Valor: O senhor afirma que os governos de esquerda contribuem para reduzir a influência e a concentração dos grupos econômicos nacionais, pela proteção a acionistas minoritários, e isso atrai os investimentos. Como isso se dá?
Gourevitch: Mais uma vez, depende de quem estamos falando, de que tipo de investidor estrangeiro. Os fundos de pensão do exterior são muito favoráveis às proteções aos acionistas porque não querem investir em grandes empresas familiares nas quais não têm proteção. As grandes empresas familiares, que são a maioria na maior parte da América Latina, não querem dar proteções aos minoritários. Bancos privados podem gostar, mas não investidores institucionais.
Valor: O capital nacional, no entanto, nem sempre é refratário a investimentos estrangeiros...
Gourevitch: Sim, depende. Não, necessariamente. Se você é dono de uma mina, de uma fonte de recursos naturais, pode, por exemplo, ficar muito feliz com a chegada de investimentos externos que melhorem a malha de transportes para você escoar sua produção.
Valor: Há alguma outra tendência geral, além da atratividade dos governos de esquerda para o capital externo?
Gourevitch: Acho que a distinção entre esquerda e direita não dá conta dos conflitos. Porque você tem uma aliança - na maior parte dos países, incluindo os da América Latina - entre o capital doméstico e o trabalho que busca proteger de forma obsessiva a nação. O nacionalismo é a forma pela qual esta aliança se expressa.
Valor: Em 2002, o mercado brasileiro entrou em polvorosa, com a expectativa da eleição de Lula. A reação foi irracional?
Gourevitch: Eles estavam com medo. Lula surgiu na política com um discurso mais radical. E os capitalistas não necessariamente leem meus artigos (risos). Mas eu me lembro que essa expectativa da chegada dele ao poder gerou um debate grande. No entanto, lá fora, não foram poucos os que se perguntavam por que tanto medo se Lula era um político moderado. E eu mesmo alertava: as condições são seguras, Lula não é Hugo Chávez.
Valor: Logo, o seu argumento não serve para qualquer governo de esquerda.
Gourevitch: Exato. Não dá para dizer esquerda é ruim e direita é bom. Há um tipo de esquerda que os investidores não gostam assim como há um tipo de direita que eles também não querem.
Valor: De que esquerda eles não gostam?
Gourevitch: Hugo Chávez, porque ele não está promovendo empreendimentos privados para desenvolver o país. Ele usa o poder estatal para objetivos políticos e pessoais e não respeita o que os homens de negócio querem fazer. Eles acham que há muito personalismo ali. Eles não gostam de [Fidel] Castro, Chávez, mas gostam de governos de esquerda moderados, como a Bachelet, no Chile, os Kirchner, na Argentina, e Lula.
Valor: E de quais governos de direita eles não gostam?
Gourevitch: Os corruptos e igualmente personalistas, como o de [Ferdinando] Marcos, nas Filipinas, há alguns anos.
Valor: Uma tese bastante difundida é a de quando o capital externo investe em países ricos em recursos naturais, como o petróleo, ele não tem como sair e precisa ficar e lutar, aumentando a chance de quebra de regime e autoritarismo. Como isso se encaixa em seu argumento?
Gourevitch: É verdade. Isso é muito comum. É a maldição do petróleo. Países ricos em óleo não têm um desempenho muito bom no longo prazo porque eles não desenvolvem seu sistema político na mesma proporção de suas riquezas econômicas. É muito fácil retirar petróleo e fazer com ele o que se bem entende. É o que acontece com Hugo Chávez. Se ele tivesse menos óleo teria que se comportar mais cuidadosamente. Teria que se preocupar com o que as pessoas querem, com o que os homens de negócio querem, que é treinamento educacional, infraestrutura etc.
Valor: Quais são as políticas mais típicas que os governos de esquerda fazem para atrair o capital externo?
Gourevitch: Eles tentam estabilizar a economia, criar políticas decentes para o mercado, mostrar que também investem em educação, tentam facilitar a vida econômica, reforçam o investimento social, em infraestrutura, em comunicações, estradas, treinamento. Tentam fazer o país atraente.
Valor: E os governos de direita, como agem?
Gourevitch: Para a direita o importante é que o Estado não crie mais impostos e que tudo mais se resolva pela iniciativa privada
Por JB Costa
Entrevista muito boa com um pensador que traduz bem a atual perplexidade acerca da dicotomia capital-trabalho, um dos últimos baluartes que teima em sobreviver para justificar o embate ideológico esquerda-direita.
Do Valor
"Governo de esquerda atrai mais o capital"
Cristian Klein | De São Paulo
18/02/2011
"Os capitalistas não necessariamente lêem meus artigos". A frase do cientista político Peter Gourevitch vem em tom de brincadeira, quando questionado se os temores do mercado foram demasiadamente injustificáveis e irracionais em relação à possibilidade de chegada ao poder no Brasil do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Tudo que viria depois, a manutenção dos cânones da política econômica, um governo afável ao capital, Gourevitch já previa.
Professor da Universidade da Califórnia, ele analisou a economia de 85 países, entre 1975 a 2004, e chegou à conclusão que vai contra a visão tradicional: a de que governos de esquerda espantam os investidores estrangeiros. Nesta entrevista, Gourevitch mostra por que não. Autor de um clássico sobre a relação entre política e grandes crises econômicas ("Politics in Hard Times", de 1986), ele é um dos convidados da conferência "Whatever Happened to North-South?", organizada pela Associação Internacional de Ciência Política (IPSA), pelo European Consortium for Political Research (ECPR) e pela Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), e que termina amanhã, na USP. Hoje, às 15h30, Gourevitch falará sobre os impactos da crise econômica de 2008.
Valor: O senhor defende que os governos de esquerda são os mais atraentes para os investidores. Isso contraria a tese tradicional de que o "capital vota com os pés", ou seja, de que a reação do grande capital é se retirar quando um governo de esquerda chega ao poder. Esse senso comum está errado?
Peter Gourevitch: Sim, é exatamente ao contrário. Mas o meu argumento é que os governos de esquerda são bons para os investidores estrangeiros. O capital doméstico é refratário a ele. Há mais tensão entre o capital doméstico e o trabalho do que entre este e o capital estrangeiro. O trabalhador quer que haja investimento que lhe proporcione a criação de mais empregos. O argumento tradicional da esquerda, de que capital e trabalho estão sempre em conflito, nem sempre é verdade. Depende de qual tipo de capital estamos falando e de qual tipo de trabalho.
Valor: Qual é a lógica que explica seu achado?
Gourevitch: É que o capital doméstico não quer o capital estrangeiro. A grande tensão em muitos países, especialmente da América Latina, é que o que é bom para a nação nem sempre é bom para o capital doméstico, que não quer a concorrência estrangeira. É protecionismo. No México, por exemplo, Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, controla totalmente as telecomunicações e o que resulta disso é que há pouca competição, os preços são altos e há dificuldade em absorver investimentos externos. O capital nacional, no mundo inteiro, não gosta de competição. E usa o nacionalismo para proteger seus interesses. A esquerda segue a mesma linha.
Valor: De que modo?
Gourevitch: A esquerda propaga a ideia de que "não gostamos do mercado e por isso apoiamos políticas regulatórias" que restringem a competição. Não acho que isso seja bom para a esquerda. Ela poderia fazer bem melhor se apoiasse mais os investimentos estrangeiros, a competição, que levariam a mais empregos, a mais prosperidade. A esquerda também é protecionista. Isso é ruim, mas também não ocorre em todas as situações, não é um comportamento uniforme. A esquerda, na verdade, fica muito feliz quando o capital estrangeiro investe e cria empregos.
Valor: Apesar disso, o que vemos é que os partidos de direita se associam à defesa de uma maior liberalização dos mercados.
Gourevitch: Sim, mas não é verdade. Eles flertam. Mas o que eles realmente fazem? Os partidos de direita se dividem entre aqueles que acreditam que a competição e o capital estrangeiro são uma boa coisa, e aqueles que não os querem. Há muitas situações que países como o Brasil enfrentam e cujas escolhas não se encaixam em dicotomias como esquerda e direita e capital e trabalho.
Valor: Por exemplo?
Gourevitch: Lula é o maior exemplo do que estou falando. Quis agradar os trabalhadores, os mais pobres, mas também assumiu uma estratégia de atrair investimentos estrangeiros.
Valor: O senhor afirma que os governos de esquerda contribuem para reduzir a influência e a concentração dos grupos econômicos nacionais, pela proteção a acionistas minoritários, e isso atrai os investimentos. Como isso se dá?
Gourevitch: Mais uma vez, depende de quem estamos falando, de que tipo de investidor estrangeiro. Os fundos de pensão do exterior são muito favoráveis às proteções aos acionistas porque não querem investir em grandes empresas familiares nas quais não têm proteção. As grandes empresas familiares, que são a maioria na maior parte da América Latina, não querem dar proteções aos minoritários. Bancos privados podem gostar, mas não investidores institucionais.
Valor: O capital nacional, no entanto, nem sempre é refratário a investimentos estrangeiros...
Gourevitch: Sim, depende. Não, necessariamente. Se você é dono de uma mina, de uma fonte de recursos naturais, pode, por exemplo, ficar muito feliz com a chegada de investimentos externos que melhorem a malha de transportes para você escoar sua produção.
Valor: Há alguma outra tendência geral, além da atratividade dos governos de esquerda para o capital externo?
Gourevitch: Acho que a distinção entre esquerda e direita não dá conta dos conflitos. Porque você tem uma aliança - na maior parte dos países, incluindo os da América Latina - entre o capital doméstico e o trabalho que busca proteger de forma obsessiva a nação. O nacionalismo é a forma pela qual esta aliança se expressa.
Valor: Em 2002, o mercado brasileiro entrou em polvorosa, com a expectativa da eleição de Lula. A reação foi irracional?
Gourevitch: Eles estavam com medo. Lula surgiu na política com um discurso mais radical. E os capitalistas não necessariamente leem meus artigos (risos). Mas eu me lembro que essa expectativa da chegada dele ao poder gerou um debate grande. No entanto, lá fora, não foram poucos os que se perguntavam por que tanto medo se Lula era um político moderado. E eu mesmo alertava: as condições são seguras, Lula não é Hugo Chávez.
Valor: Logo, o seu argumento não serve para qualquer governo de esquerda.
Gourevitch: Exato. Não dá para dizer esquerda é ruim e direita é bom. Há um tipo de esquerda que os investidores não gostam assim como há um tipo de direita que eles também não querem.
Valor: De que esquerda eles não gostam?
Gourevitch: Hugo Chávez, porque ele não está promovendo empreendimentos privados para desenvolver o país. Ele usa o poder estatal para objetivos políticos e pessoais e não respeita o que os homens de negócio querem fazer. Eles acham que há muito personalismo ali. Eles não gostam de [Fidel] Castro, Chávez, mas gostam de governos de esquerda moderados, como a Bachelet, no Chile, os Kirchner, na Argentina, e Lula.
Valor: E de quais governos de direita eles não gostam?
Gourevitch: Os corruptos e igualmente personalistas, como o de [Ferdinando] Marcos, nas Filipinas, há alguns anos.
Valor: Uma tese bastante difundida é a de quando o capital externo investe em países ricos em recursos naturais, como o petróleo, ele não tem como sair e precisa ficar e lutar, aumentando a chance de quebra de regime e autoritarismo. Como isso se encaixa em seu argumento?
Gourevitch: É verdade. Isso é muito comum. É a maldição do petróleo. Países ricos em óleo não têm um desempenho muito bom no longo prazo porque eles não desenvolvem seu sistema político na mesma proporção de suas riquezas econômicas. É muito fácil retirar petróleo e fazer com ele o que se bem entende. É o que acontece com Hugo Chávez. Se ele tivesse menos óleo teria que se comportar mais cuidadosamente. Teria que se preocupar com o que as pessoas querem, com o que os homens de negócio querem, que é treinamento educacional, infraestrutura etc.
Valor: Quais são as políticas mais típicas que os governos de esquerda fazem para atrair o capital externo?
Gourevitch: Eles tentam estabilizar a economia, criar políticas decentes para o mercado, mostrar que também investem em educação, tentam facilitar a vida econômica, reforçam o investimento social, em infraestrutura, em comunicações, estradas, treinamento. Tentam fazer o país atraente.
Valor: E os governos de direita, como agem?
Gourevitch: Para a direita o importante é que o Estado não crie mais impostos e que tudo mais se resolva pela iniciativa privada
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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
política - filosofia - VLADIMIR SAFATLE - O século 21 começa
No início do século 19, Napoleão enviou tropas à colônia do Haiti. O objetivo era retomar o poder da mão de escravos rebelados comandados por Toussaint Louverture e, com isso, reinstaurar a escravidão. Num estudo clássico, Cyril James conta o momento em que os soldados franceses, imbuídos dos ideais da Revolução Francesa, ouvem a "Marselhesa" ser cantada por seus oponentes, os negros.
Desnorteados, os franceses se perguntam como era afinal possível ouvir suas próprias vozes vindas do outro lado da batalha. Afinal, contra quem eles estavam lutando, a não ser contra seus próprios ideais? Aquela experiência foi decisiva para quebrar-lhes o espírito de combate. A derrota foi uma consequência natural.
Esse pequeno fato histórico nos ensina o que acontece quando uma ideia encontra seu próprio tempo. Ela demonstra que estava presente em vários lugares, à espera do melhor momento para dizer claramente seu nome.
Quando os franceses ouvem suas próprias músicas vindas do campo inimigo eles, no fundo, descobrem que não são os verdadeiros autores de tais músicas. Quem as compôs foi uma ideia que usa os povos para se expressar. Quando isso fica evidente, então um momento histórico se abre impulsionado pela efetivação de exigências de universalidade.
Por isso, talvez seja o caso de dizer que, enfim, assistimos o começo do século 21.
Um fato como o 11 de setembro nunca poderia servir de marco para uma época, já que ele era um contra-acontecimento que serviu apenas para realimentar os piores preconceitos, medos e arcaísmos que deveriam ter sido há muito ultrapassados. Durante esses dez últimos anos, vivemos em um tempo morto e suspenso.
O verdadeiro fato que tem a força de inaugurar uma nova época são as revoltas no mundo árabe. O desespero de alguns analistas em lê-las através de esquemas e dicotomias velhos de mais de 30 anos, em tentar ressuscitar o fantasma da fracassada revolução iraniana, apenas demonstra como eles não estão preparados para enxergar o novo.
Como disse bem o sociólogo Olivier Roy, o que estamos vendo nesses países é a subida em cena de uma "geração pós-islâmica", que, tal como os escravos haitianos, se deixaram mobilizar por valores que precisavam, há muito, se deslocar para outros campos a fim de mostrar sua verdadeira força.
Que 84% dos jovens egípcios digam querer "democracia" é uma prova de novidade que só o preconceito xenófobo de alguns é incapaz de enxergar.
É claro que tais revoltas ainda estão longe da democracia liberal. Melhor assim. Já está na hora de livrarmos a democracia de suas amarras vindas do liberalismo. Talvez essa se transforme em uma das grandes tarefas deste século 21 que enfim começa.
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VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna
Desnorteados, os franceses se perguntam como era afinal possível ouvir suas próprias vozes vindas do outro lado da batalha. Afinal, contra quem eles estavam lutando, a não ser contra seus próprios ideais? Aquela experiência foi decisiva para quebrar-lhes o espírito de combate. A derrota foi uma consequência natural.
Esse pequeno fato histórico nos ensina o que acontece quando uma ideia encontra seu próprio tempo. Ela demonstra que estava presente em vários lugares, à espera do melhor momento para dizer claramente seu nome.
Quando os franceses ouvem suas próprias músicas vindas do campo inimigo eles, no fundo, descobrem que não são os verdadeiros autores de tais músicas. Quem as compôs foi uma ideia que usa os povos para se expressar. Quando isso fica evidente, então um momento histórico se abre impulsionado pela efetivação de exigências de universalidade.
Por isso, talvez seja o caso de dizer que, enfim, assistimos o começo do século 21.
Um fato como o 11 de setembro nunca poderia servir de marco para uma época, já que ele era um contra-acontecimento que serviu apenas para realimentar os piores preconceitos, medos e arcaísmos que deveriam ter sido há muito ultrapassados. Durante esses dez últimos anos, vivemos em um tempo morto e suspenso.
O verdadeiro fato que tem a força de inaugurar uma nova época são as revoltas no mundo árabe. O desespero de alguns analistas em lê-las através de esquemas e dicotomias velhos de mais de 30 anos, em tentar ressuscitar o fantasma da fracassada revolução iraniana, apenas demonstra como eles não estão preparados para enxergar o novo.
Como disse bem o sociólogo Olivier Roy, o que estamos vendo nesses países é a subida em cena de uma "geração pós-islâmica", que, tal como os escravos haitianos, se deixaram mobilizar por valores que precisavam, há muito, se deslocar para outros campos a fim de mostrar sua verdadeira força.
Que 84% dos jovens egípcios digam querer "democracia" é uma prova de novidade que só o preconceito xenófobo de alguns é incapaz de enxergar.
É claro que tais revoltas ainda estão longe da democracia liberal. Melhor assim. Já está na hora de livrarmos a democracia de suas amarras vindas do liberalismo. Talvez essa se transforme em uma das grandes tarefas deste século 21 que enfim começa.
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VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna
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VLADIMIR SAFATLE
sábado, 29 de janeiro de 2011
humor e filosofia - Uma carta de Henfil
blog
luisnassif, sab, 29/01/2011 - 18:15
Por René Amaral Junior
Uma Carta de Henfil
Henfil
São Paulo, 1º de setembro de 1978.
Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês.
Henfil
luisnassif, sab, 29/01/2011 - 18:15
Por René Amaral Junior
Uma Carta de Henfil
Henfil
São Paulo, 1º de setembro de 1978.
Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês.
Henfil
filosofia - PSICANÁLISE - Obra-prima de Freud ainda assombra a contemporaneidade - VLADIMIR SAFATLE
Livro fundamental, "O Mal-Estar na Civilização" ecoou profundamente na maneira de compreendermos a vida
Durante décadas, o público leitor brasileiro foi obrigado a conviver com péssimas traduções dos textos de Sigmund Freud (1856-1939), um dos pensadores mais decisivos do século 20. Agora, com a disponibilização da obra freudiana para o domínio público, a Companhia das Letras oferece uma tradução segura das obras completas, feita por um tradutor que já havia mostrado sua competência com textos de Nietzsche (1844-1900) e Brecht (1898-1956), Paulo César de Souza.
O novo volume da coleção traz, além das "Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise", o fundamental "O Mal-Estar na Civilização".
Não seria exagero dizer que este é certamente um dos textos mais influentes da contemporaneidade.
Sua maneira de descrever as patologias do processo civilizatório e o preço que pagamos para socializar nossas pulsões e desejos encontrou eco profundo na maneira de compreendermos a estrutura de nossas formas de vida.
Isto demonstra que, independentemente do fato de acreditarmos ou não na psicanálise como prática clínica, boa parte dos esquemas de autocompreensão das sociedades ocidentais são profundamente marcados por uma cultura psicanalítica.
Se nos perguntarmos sobre a razão para tamanha influência, talvez a melhor resposta seria: com a noção de "mal-estar", Freud nomeou uma modalidade de sofrimento social que parece assombrar a modernidade.
SOFRIMENTO
Duas ideias aqui são importantes. Primeiro, a noção de que aquilo que chamamos de "sofrimento psíquico" está profundamente vinculado ao impacto, em nossas vidas, dos imperativos da vida social. Daí a ideia de que todo sofrimento psíquico é um modo de expor experiências sociais malogradas.
Segundo, através da análise deste mal-estar, Freud demonstrou que o verdadeiro risco da civilização ocidental não vem de fora. Na verdade, seu maior inimigo é ela mesma. Como dirá Walter Benjamin (1892-1940), profundamente inspirado por Freud: "Todo documento de civilização é um documento de barbárie".
Isto significa, entre outras coisas, que o próprio processo de formação das individualidades impõe cisões (entre, por exemplo, pulsões e vontade racional), petrifica comportamentos, cria expectativas de reparação (através da constituição de figuras fantasmáticas de autoridade) que explicam boa parte do comportamento regressivo que, periodicamente, submerge nossas sociedades.
No entanto, o ensinamento de Freud nunca foi abandonar a civilização em prol de alguma moral naturalista.
Ele nos ensinou, na verdade, a tentar manejar uma dialética complicada onde o que é perdido inicialmente pelo processo civilizatório deve ser posteriormente reintegrado em um novo patamar. Isto impõe uma desconfiança prudente a respeito de nossos próprios valores, uma necessidade de fazer coisas que sabemos que, posteriormente, deverão ser feitas de outra forma.
Assim, Freud será sempre aquele que nos lembrou que nosso "mal-estar" diante da civilização é talvez nosso sentimento mais verdadeiro.
Durante décadas, o público leitor brasileiro foi obrigado a conviver com péssimas traduções dos textos de Sigmund Freud (1856-1939), um dos pensadores mais decisivos do século 20. Agora, com a disponibilização da obra freudiana para o domínio público, a Companhia das Letras oferece uma tradução segura das obras completas, feita por um tradutor que já havia mostrado sua competência com textos de Nietzsche (1844-1900) e Brecht (1898-1956), Paulo César de Souza.
O novo volume da coleção traz, além das "Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise", o fundamental "O Mal-Estar na Civilização".
Não seria exagero dizer que este é certamente um dos textos mais influentes da contemporaneidade.
Sua maneira de descrever as patologias do processo civilizatório e o preço que pagamos para socializar nossas pulsões e desejos encontrou eco profundo na maneira de compreendermos a estrutura de nossas formas de vida.
Isto demonstra que, independentemente do fato de acreditarmos ou não na psicanálise como prática clínica, boa parte dos esquemas de autocompreensão das sociedades ocidentais são profundamente marcados por uma cultura psicanalítica.
Se nos perguntarmos sobre a razão para tamanha influência, talvez a melhor resposta seria: com a noção de "mal-estar", Freud nomeou uma modalidade de sofrimento social que parece assombrar a modernidade.
SOFRIMENTO
Duas ideias aqui são importantes. Primeiro, a noção de que aquilo que chamamos de "sofrimento psíquico" está profundamente vinculado ao impacto, em nossas vidas, dos imperativos da vida social. Daí a ideia de que todo sofrimento psíquico é um modo de expor experiências sociais malogradas.
Segundo, através da análise deste mal-estar, Freud demonstrou que o verdadeiro risco da civilização ocidental não vem de fora. Na verdade, seu maior inimigo é ela mesma. Como dirá Walter Benjamin (1892-1940), profundamente inspirado por Freud: "Todo documento de civilização é um documento de barbárie".
Isto significa, entre outras coisas, que o próprio processo de formação das individualidades impõe cisões (entre, por exemplo, pulsões e vontade racional), petrifica comportamentos, cria expectativas de reparação (através da constituição de figuras fantasmáticas de autoridade) que explicam boa parte do comportamento regressivo que, periodicamente, submerge nossas sociedades.
No entanto, o ensinamento de Freud nunca foi abandonar a civilização em prol de alguma moral naturalista.
Ele nos ensinou, na verdade, a tentar manejar uma dialética complicada onde o que é perdido inicialmente pelo processo civilizatório deve ser posteriormente reintegrado em um novo patamar. Isto impõe uma desconfiança prudente a respeito de nossos próprios valores, uma necessidade de fazer coisas que sabemos que, posteriormente, deverão ser feitas de outra forma.
Assim, Freud será sempre aquele que nos lembrou que nosso "mal-estar" diante da civilização é talvez nosso sentimento mais verdadeiro.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
filosofia : Habermas - mídia e poder - FUTURO DOS JORNAIS - O valor da notícia
Por Jürgen Habermas em 28/12/2010
Reproduzido da Folha de S.Paulo, 27/5/2007; publicado originalmente no jornal alemão Süddeutsche Zeitung, tradução de Samuel Titan Jr.
Semanas atrás [N. da R: Base maio de 2007], a página de economia do jornal alemão Die Zeit assustou seus leitores com a manchete "O quarto poder corre perigo?". Tratava-se da notícia alarmante de que o Süddeutsche Zeitung rumava para um futuro econômico de incertezas.
A maioria dos acionistas quer se ver livre do jornal; caso as coisas se encaminhem para um leilão, é possível que um dos dois bons diários supra-regionais da Alemanha [o outro é o Frankfurter Allgemeine] caia nas mãos de investidores privados, fundos de investimento ou conglomerados de mídia.
Haverá quem diga: "Business as usual" [negócios, como sempre]. O que poderia haver de alarmante no fato de que os proprietários queiram fazer uso de seu direito de se desfazer de seus negócios, sejam quais forem seus motivos?
A crise dos jornais, desencadeada no começo de 2002 pelo colapso do mercado publicitário, ficou para trás – no Süddeutsche Zeitung e em outros órgãos de imprensa da mesma dimensão. As famílias que agora se dispõem a vender sua participação detêm 62,5% das ações e escolheram um momento propício.
Apesar da concorrência digital e dos novos hábitos de leitura, os lucros vêm aumentando.
Deixando de lado a boa conjuntura econômica, os lucros se devem sobretudo a medidas de racionalização com impacto direto sobre o desempenho e a margem de manobra das redações. Notícias bombásticas à maneira do jornalismo norte-americano ditam a tendência atual.
Assim, por exemplo, o Boston Globe, um dos poucos jornais de centro-esquerda dos EUA, teve que renunciar a todos os seus correspondentes no estrangeiro, enquanto os grandes encouraçados da imprensa nacional – como o Washington Post e o New York Times – temem a capitulação diante de fundos ou conglomerados ávidos por "sanear" jornais em vista de taxas de lucro descabidas; no caso do Los Angeles Times, esse já é fato consumado.
Jugo do lucro
Há três semanas, o Die Zeit voltou à carga, falando de um "ataque de Wall Street à imprensa dos EUA".
O que há por trás desse tipo de manchete? Certamente, o temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação, sem comprometer taxas de lucro aceitáveis.
Mas os lucros em alta não serão uma confirmação de que jornais ‘enxutos’ satisfazem melhor os desejos de seus consumidores?
Conceitos vagos como "profissional", "arrojado" ou "sério" não servem apenas para velar a preeminência concedida ao leitor adulto, que sabe o que quer?
A imprensa terá o direito de, sob o pretexto da "qualidade", cercear a liberdade de escolha de seus leitores?
Por que forçar a leitura de reportagens áridas em vez de infotainment [fusão, em inglês, das palavras "information" e "entertainment", informação e entretenimento], comentários objetivos e argumentos circunstanciados, ao invés de encenações apelativas de personalidades e acontecimentos?
A objeção que se manifesta nessas questões se baseia na suposição polêmica de que os consumidores escolhem com autonomia, segundo suas preferências pessoais. Mas essa espécie de verdade acaciana certamente induz ao erro quando se trata de uma mercadoria tão peculiar quanto a informação política e cultural. Pois essa mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus consumidores.
Formação em massa
Não há dúvida de que leitores, ouvintes e espectadores seguem suas preferências ao fazer uso dos meios de comunicação: querem se divertir ou se distrair, querem se informar ou tomar parte em debates públicos.
Mas, quando se interessam por um programa político ou cultural, quando recebem a "bênção matinal realista" da leitura de jornais, todos se expõem – com alguma medida de autopaternalismo- a um processo de aprendizado de resultados imprevisíveis.
No curso de uma leitura, novas preferências, convicções ou juízos podem se formar.
A metapreferência que orienta uma tal leitura se dirige então àquelas prioridades que se exprimem na auto-imagem de um jornalismo independente e que fundamentam o prestígio da imprensa de qualidade.
A polêmica sobre o caráter peculiar da mercadoria "informação e formação" faz pensar no slogan que fez furor quando do surgimento da televisão: essa nova mídia não seria mais que "uma torradeira com imagens".
Pensava-se que a produção e o consumo de programas televisivos podiam ser deixados inteiramente a cargo do mercado. Desde então, as empresas de comunicação cuidam de fornecer programas para seus espectadores enquanto vendem a atenção do público a seus anunciantes.
Sempre que imperou sem peias, esse modo de organização causou danos políticos e culturais. O sistema "híbrido" de televisão [na Alemanha] é uma tentativa de remediar o mal.
E as leis locais, as decisões de tribunais federais e os princípios de programação das emissoras públicas refletem a noção de que as mídias eletrônicas não devem satisfazer apenas as necessidades mais comercializáveis dos consumidores.
Ouvintes e espectadores não são apenas consumidores mas também cidadãos com direito à participação cultural, à observação da vida política e à voz na formação de opinião.
Com base nesses direitos, não é o caso de deixar programas voltados a tais necessidades fundamentais da população à mercê da conveniência publicitária ou do apoio de patrocinadores.
Mais ainda, as taxas que financiam esses serviços também não devem variar ao sabor dos orçamentos locais, isto é, da conjuntura econômica – é o que argumentam algumas emissoras num processo contra os governos locais, em trâmite no Supremo Tribunal Federal alemão.
A idéia de uma reserva pública voltada para a mídia eletrônica pode ser interessante.
Mas algo assim poderia servir de modelo para a organização de jornais e revistas "sérios", como o Süddeutsche Zeitung ou o Frankfurter Allgemeine Zeitung, Die Zeit ou Der Spiegel, para não falar das revistas mensais mais ambiciosas?
Efeito político
O resultado de um estudo sobre fluxos de comunicação pode ter interesse nesse contexto: ao menos no âmbito da comunicação política – ou seja, para o leitor enquanto cidadão –, a imprensa de qualidade desempenha um papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do jornalismo "argumentativo".
Suponhamos que uma dessas redações caia nas mãos de investidores que trabalham com lucros rápidos e prazos curtos: a reestruturação e o enxugamento nesses lugares estratégicos não tardarão a pôr em risco os padrões jornalísticos e a afetar em cheio a vida política.
Pois a comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz, coisas que não se obtêm sem custos.
A esfera pública não teria mais como opor resistência às tendências populistas e não seria mais capaz de desempenhar funções que lhe cabem no quadro de um Estado democrático de Direito.
Vivemos em sociedades pluralistas. O processo de decisão democrático só pode ultrapassar as cisões profundas entre visões de mundo opostas se houver algum vínculo legitimador aos olhos de todos os cidadãos.
O processo de decisão deve conjugar inclusão (isto é, a participação universal em pé de igualdade) e condução discursiva do conflito de opiniões.
Pois tão-somente a discussão deliberativa fundamenta a suposição de que, no longo prazo, os processos democráticos propiciam resultados mais ou menos racionais.
A formação de opinião por via democrática tem uma dimensão epistêmica, uma vez que envolve a crítica de afirmações e juízos errôneos.
Esse é o papel de uma esfera pública dotada de vitalidade discursiva.
Esse papel se evidencia intuitivamente tão logo se tenha em mente a diferença entre o conflito público de opiniões concorrentes e a divulgação de pesquisas de opinião.
Opiniões que se formam por meio de discussão e polêmica são, a despeito de toda dissonância, filtradas por informações e argumentos, enquanto as pesquisas de opinião apenas invocam opiniões latentes em estado bruto ou inerte.
Mediação
É claro que os fluxos díspares de comunicação numa esfera pública dominada pelos meios de comunicação de massa não permitem o tipo de discussão ou consulta regrada que tem lugar em tribunais ou sessões parlamentares.
Mas isso também não é necessário, pois a esfera pública é apenas um dos elos relevantes: ela faz as vezes de mediação entre discursos e discussões nos foros do Estado, de um lado, e as conversas episódicas ou informais de eleitores potenciais, de outro.
A esfera pública dá sua contribuição à legitimação democrática da ação estatal ao selecionar temas de relevância política, elabora-os polemicamente e os vincula a correntes de opinião divergentes.
Por essa via, a comunicação pública estimula e orienta a formação da opinião e do voto, ao mesmo tempo em que exige transparência e prontidão do sistema político.
Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia.
Quando se trata de gás, eletricidade ou água, o Estado tem a obrigação de prover as necessidades energéticas da população.
Por que não seria igualmente obrigado a prover essa outra espécie de ‘energia’, sem a qual o próprio Estado democrático pode acabar avariado?
O Estado não comete nenhuma "falha sistêmica" quando intervém em casos específicos para tentar preservar esse bem público que é a imprensa de qualidade.
Melhores resultados
O problema é apenas de ordem pragmática: como se alcançam os melhores resultados?
Em certo momento, o governo [do Estado] de Hessen concedeu ao jornal Frankfurter Rundschau um crédito subsidiado – sem sucesso. Mas as subvenções diretas são apenas um dos meios disponíveis.
Outros caminhos são as fundações com participação pública ou a renúncia fiscal para famílias envolvidas no ramo.
Nenhuma dessas soluções está livre de problemas. E ainda é preciso aclimatar a idéia de subvenções a jornais e revistas.
Em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal.
Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos dispersos no mercado.
Agora, como antes, a crítica adorniana da indústria cultural constitui o ponto central. A observação cética é indispensável, pois nenhuma democracia pode se dar ao luxo de uma falha de mercado nesse setor.
Reproduzido da Folha de S.Paulo, 27/5/2007; publicado originalmente no jornal alemão Süddeutsche Zeitung, tradução de Samuel Titan Jr.
Semanas atrás [N. da R: Base maio de 2007], a página de economia do jornal alemão Die Zeit assustou seus leitores com a manchete "O quarto poder corre perigo?". Tratava-se da notícia alarmante de que o Süddeutsche Zeitung rumava para um futuro econômico de incertezas.
A maioria dos acionistas quer se ver livre do jornal; caso as coisas se encaminhem para um leilão, é possível que um dos dois bons diários supra-regionais da Alemanha [o outro é o Frankfurter Allgemeine] caia nas mãos de investidores privados, fundos de investimento ou conglomerados de mídia.
Haverá quem diga: "Business as usual" [negócios, como sempre]. O que poderia haver de alarmante no fato de que os proprietários queiram fazer uso de seu direito de se desfazer de seus negócios, sejam quais forem seus motivos?
A crise dos jornais, desencadeada no começo de 2002 pelo colapso do mercado publicitário, ficou para trás – no Süddeutsche Zeitung e em outros órgãos de imprensa da mesma dimensão. As famílias que agora se dispõem a vender sua participação detêm 62,5% das ações e escolheram um momento propício.
Apesar da concorrência digital e dos novos hábitos de leitura, os lucros vêm aumentando.
Deixando de lado a boa conjuntura econômica, os lucros se devem sobretudo a medidas de racionalização com impacto direto sobre o desempenho e a margem de manobra das redações. Notícias bombásticas à maneira do jornalismo norte-americano ditam a tendência atual.
Assim, por exemplo, o Boston Globe, um dos poucos jornais de centro-esquerda dos EUA, teve que renunciar a todos os seus correspondentes no estrangeiro, enquanto os grandes encouraçados da imprensa nacional – como o Washington Post e o New York Times – temem a capitulação diante de fundos ou conglomerados ávidos por "sanear" jornais em vista de taxas de lucro descabidas; no caso do Los Angeles Times, esse já é fato consumado.
Jugo do lucro
Há três semanas, o Die Zeit voltou à carga, falando de um "ataque de Wall Street à imprensa dos EUA".
O que há por trás desse tipo de manchete? Certamente, o temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação, sem comprometer taxas de lucro aceitáveis.
Mas os lucros em alta não serão uma confirmação de que jornais ‘enxutos’ satisfazem melhor os desejos de seus consumidores?
Conceitos vagos como "profissional", "arrojado" ou "sério" não servem apenas para velar a preeminência concedida ao leitor adulto, que sabe o que quer?
A imprensa terá o direito de, sob o pretexto da "qualidade", cercear a liberdade de escolha de seus leitores?
Por que forçar a leitura de reportagens áridas em vez de infotainment [fusão, em inglês, das palavras "information" e "entertainment", informação e entretenimento], comentários objetivos e argumentos circunstanciados, ao invés de encenações apelativas de personalidades e acontecimentos?
A objeção que se manifesta nessas questões se baseia na suposição polêmica de que os consumidores escolhem com autonomia, segundo suas preferências pessoais. Mas essa espécie de verdade acaciana certamente induz ao erro quando se trata de uma mercadoria tão peculiar quanto a informação política e cultural. Pois essa mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus consumidores.
Formação em massa
Não há dúvida de que leitores, ouvintes e espectadores seguem suas preferências ao fazer uso dos meios de comunicação: querem se divertir ou se distrair, querem se informar ou tomar parte em debates públicos.
Mas, quando se interessam por um programa político ou cultural, quando recebem a "bênção matinal realista" da leitura de jornais, todos se expõem – com alguma medida de autopaternalismo- a um processo de aprendizado de resultados imprevisíveis.
No curso de uma leitura, novas preferências, convicções ou juízos podem se formar.
A metapreferência que orienta uma tal leitura se dirige então àquelas prioridades que se exprimem na auto-imagem de um jornalismo independente e que fundamentam o prestígio da imprensa de qualidade.
A polêmica sobre o caráter peculiar da mercadoria "informação e formação" faz pensar no slogan que fez furor quando do surgimento da televisão: essa nova mídia não seria mais que "uma torradeira com imagens".
Pensava-se que a produção e o consumo de programas televisivos podiam ser deixados inteiramente a cargo do mercado. Desde então, as empresas de comunicação cuidam de fornecer programas para seus espectadores enquanto vendem a atenção do público a seus anunciantes.
Sempre que imperou sem peias, esse modo de organização causou danos políticos e culturais. O sistema "híbrido" de televisão [na Alemanha] é uma tentativa de remediar o mal.
E as leis locais, as decisões de tribunais federais e os princípios de programação das emissoras públicas refletem a noção de que as mídias eletrônicas não devem satisfazer apenas as necessidades mais comercializáveis dos consumidores.
Ouvintes e espectadores não são apenas consumidores mas também cidadãos com direito à participação cultural, à observação da vida política e à voz na formação de opinião.
Com base nesses direitos, não é o caso de deixar programas voltados a tais necessidades fundamentais da população à mercê da conveniência publicitária ou do apoio de patrocinadores.
Mais ainda, as taxas que financiam esses serviços também não devem variar ao sabor dos orçamentos locais, isto é, da conjuntura econômica – é o que argumentam algumas emissoras num processo contra os governos locais, em trâmite no Supremo Tribunal Federal alemão.
A idéia de uma reserva pública voltada para a mídia eletrônica pode ser interessante.
Mas algo assim poderia servir de modelo para a organização de jornais e revistas "sérios", como o Süddeutsche Zeitung ou o Frankfurter Allgemeine Zeitung, Die Zeit ou Der Spiegel, para não falar das revistas mensais mais ambiciosas?
Efeito político
O resultado de um estudo sobre fluxos de comunicação pode ter interesse nesse contexto: ao menos no âmbito da comunicação política – ou seja, para o leitor enquanto cidadão –, a imprensa de qualidade desempenha um papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do jornalismo "argumentativo".
Suponhamos que uma dessas redações caia nas mãos de investidores que trabalham com lucros rápidos e prazos curtos: a reestruturação e o enxugamento nesses lugares estratégicos não tardarão a pôr em risco os padrões jornalísticos e a afetar em cheio a vida política.
Pois a comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz, coisas que não se obtêm sem custos.
A esfera pública não teria mais como opor resistência às tendências populistas e não seria mais capaz de desempenhar funções que lhe cabem no quadro de um Estado democrático de Direito.
Vivemos em sociedades pluralistas. O processo de decisão democrático só pode ultrapassar as cisões profundas entre visões de mundo opostas se houver algum vínculo legitimador aos olhos de todos os cidadãos.
O processo de decisão deve conjugar inclusão (isto é, a participação universal em pé de igualdade) e condução discursiva do conflito de opiniões.
Pois tão-somente a discussão deliberativa fundamenta a suposição de que, no longo prazo, os processos democráticos propiciam resultados mais ou menos racionais.
A formação de opinião por via democrática tem uma dimensão epistêmica, uma vez que envolve a crítica de afirmações e juízos errôneos.
Esse é o papel de uma esfera pública dotada de vitalidade discursiva.
Esse papel se evidencia intuitivamente tão logo se tenha em mente a diferença entre o conflito público de opiniões concorrentes e a divulgação de pesquisas de opinião.
Opiniões que se formam por meio de discussão e polêmica são, a despeito de toda dissonância, filtradas por informações e argumentos, enquanto as pesquisas de opinião apenas invocam opiniões latentes em estado bruto ou inerte.
Mediação
É claro que os fluxos díspares de comunicação numa esfera pública dominada pelos meios de comunicação de massa não permitem o tipo de discussão ou consulta regrada que tem lugar em tribunais ou sessões parlamentares.
Mas isso também não é necessário, pois a esfera pública é apenas um dos elos relevantes: ela faz as vezes de mediação entre discursos e discussões nos foros do Estado, de um lado, e as conversas episódicas ou informais de eleitores potenciais, de outro.
A esfera pública dá sua contribuição à legitimação democrática da ação estatal ao selecionar temas de relevância política, elabora-os polemicamente e os vincula a correntes de opinião divergentes.
Por essa via, a comunicação pública estimula e orienta a formação da opinião e do voto, ao mesmo tempo em que exige transparência e prontidão do sistema político.
Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia.
Quando se trata de gás, eletricidade ou água, o Estado tem a obrigação de prover as necessidades energéticas da população.
Por que não seria igualmente obrigado a prover essa outra espécie de ‘energia’, sem a qual o próprio Estado democrático pode acabar avariado?
O Estado não comete nenhuma "falha sistêmica" quando intervém em casos específicos para tentar preservar esse bem público que é a imprensa de qualidade.
Melhores resultados
O problema é apenas de ordem pragmática: como se alcançam os melhores resultados?
Em certo momento, o governo [do Estado] de Hessen concedeu ao jornal Frankfurter Rundschau um crédito subsidiado – sem sucesso. Mas as subvenções diretas são apenas um dos meios disponíveis.
Outros caminhos são as fundações com participação pública ou a renúncia fiscal para famílias envolvidas no ramo.
Nenhuma dessas soluções está livre de problemas. E ainda é preciso aclimatar a idéia de subvenções a jornais e revistas.
Em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal.
Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos dispersos no mercado.
Agora, como antes, a crítica adorniana da indústria cultural constitui o ponto central. A observação cética é indispensável, pois nenhuma democracia pode se dar ao luxo de uma falha de mercado nesse setor.
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