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sábado, 27 de novembro de 2010

FILOSOFIA BRASIL - ANTONIO CICERO O construtivismo brasileiro

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O dado, aquilo constituído pelo passado cultural, é no Brasil tomado como tempo de subdesenvolvimento
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HÁ POUCOS dias li, não me lembro mais onde, que na verdade De Gaulle (1890-1970) jamais declarou que o Brasil não era um país sério.
Por outro lado, parece confirmado que seu compatriota Lévi-Strauss (1908-2009) chegou mesmo a dizer que "o Brasil é um país surrealista". Frequentemente ouço brasileiros afirmarem o mesmo que o antropólogo francês. Talvez tenham razão; mas quiçá seja exatamente por isso que, em comparação com o que ocorreu em Portugal, na Espanha ou na França, por exemplo, o surrealismo tenha vingado relativamente pouco nas artes brasileiras.
É que, como observa o poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843), nada aprendemos com maior dificuldade do que a usar livremente o que nos é natural. Afinal, não é a arte precisamente o oposto da natureza, como o artificial, do natural?
Tendo isso em mente, lembremo-nos também de que certo clichê bem representado, por exemplo, em filmes de Hollywood de algumas décadas atrás, faz do homem tropical um mero escravo da natureza circundante, dos vícios ou das paixões que ela lhe impõe, reduzindo-o à indolência e à passividade.
Se Hölderlin tem razão, não será exatamente por isso -CONTRA tal pretenso destino- que Hélio Oiticica (1937-1980), por exemplo, dizia sentir no âmago da alma brasileira uma "vontade construtiva geral"? Se eu estiver certo, o sentido mais profundo do uso da palavra "tropicália" feito por Oiticica e, em seguida, pelo movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil terá sido o de promover a reversão e/ou ironizar tal concepção estereotipada dos trópicos. De todo modo, é claro que o construtivismo brasileiro não poderia deixar de se opor tanto à submissão à natureza quanto ao surrealismo.
Com efeito, a arte brasileira e moderna canônica, em particular a partir da segunda metade do século 20 -desde a epopeia glauberiana do cinema novo à decantação joão-gilbertiana do samba e da bossa nova; desde o plano piloto dos arquitetos da visão e loucura de Brasília ao plano piloto dos poetas concretistas dos campos e espaços de São Paulo; desde a psicologia da composição de João Cabral aos relevos espaciais de Oiticica; desde os bichos geométricos de Lygia Clark ao filme "O Cinema Falado" (1986), de Caetano Veloso etc.-, tudo parece confirmar a "vontade construtiva geral".
O artista brasileiro moderno tende a desconfiar do dado imediato, isto é, do lugar da natureza, da cultura, da história em que os outros querem situá-lo no mundo. Entende-se: o dado, aquilo que é constituído pelo passado natural e cultural, é no Brasil tomado principalmente como o tempo do subdesenvolvimento, da dependência cultural, política e econômica, da escravatura. É da reação contra essa situação que surge a tendência construtiva de quase toda a nossa melhor arte. Nesse processo, não é o Brasil do passado que determina o Brasil moderno.
Ao contrário: é o Brasil moderno que reinventa o Brasil do passado.
Também nesse sentido tinha razão o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), ligado a artistas de vanguarda como Ferreira Gullar, Lygia Clark e Hélio Oiticica, quando sentenciou que "o Brasil é um país condenado ao moderno".
Para o artista brasileiro, pensar sobre o Brasil -pensar o Brasil- não pode deixar de ser reinventá-lo. E creio que grande parte dos artistas modernos, os vários modernismos desde 22, o concretismo, o neoconcretismo, a bossa nova, o tropicalismo e os artistas contemporâneos sempre se encontraram nessa mesma situação ante a tarefa da inventio Brasilis: da descoberta-invenção do Brasil.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

arte - Caos e Classicismo, (1918-1936)

ilviano Santiago – O Estado de S.Paulo
A primeira metade do século 20 permanecia como a época em que as vanguardas tiveram controle e domínio sobre a produção artística europeia e mundial. Gerados a partir das vésperas da 1.ª Grande Guerra, futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo e outros movimentos artísticos se afirmaram através de “manifestos” rebeldes ou anarquistas que, divulgados da Europa para as nações periféricas, se reproduziram em outros importantíssimos manifestos e movimentos artísticos de vanguarda, de que é exemplo o nosso Modernismo. Gilberto Mendonça Teles compilou os manifestos canônicos originados nas hoje chamadas vanguardas históricas e os publicou na antologia Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro (Vozes, 2009).

Consumado o clima de morte e horror prevalente durante a 1.ª Grande Guerra, artistas e teóricos da arte passam a discordar do controle e do domínio exercidos pela vanguarda sobre o grosso da produção artística europeia. Jean Cocteau é um dos que mais esbravejam. Haja vista a primazia das estátuas gregas em Sangue de Um Poeta (1930), filme dedicado à memória de Paolo Uccello e Piero della Francesca. O “rappel à l”ordre” (trocadilho com o termo jurídico “a ordem do dia”), de que fala Cocteau, coloca em pauta o retorno à arte moderna das imagens harmoniosas e perfeitas do classicismo grego e renascentista. (Lembre-se que no Manifesto Futurista, de 1909, Marinetti havia assentado que o automóvel de corrida “é mais belo que a Vitória de Samotrácia”.) Paradoxalmente, o cubista Pablo Picasso é um dos mais legítimos tribunos na ordem do dia clássica e neoclássica. Considerem-se o quadro La Source (1921) e as réplicas de Ingres. Foi essa a tese desenvolvida com talento e erudição por Kenneth E. Silver em Esprit de Corps: The Art of the Parisian Avant-G arde And The First World War, 1914-1925 (Princeton, 1992), cuja edição se encontra hoje esgotada.

Em 2010, Silver energiza o fluxo da contracorrente aberta pelo livro e alvoroça os arraiais artísticos nova-iorquinos. Primeiro, amplia o campo de trabalho para a Alemanha e a Itália. Segundo, destaca o modo como a estética clássica, posterior à 1.ª Guerra, é apropriada tardiamente pelos artistas fascistas e nazistas. Nela se banham a fim de realçar o cenário pomposo e civilizado que escamoteia as atrocidades que, às vésperas da 2.ª Grande Guerra, estão sendo cometidas por Mussolini e Hitler. Como curador da exposição Chaos & Classicism (1918-1936), Silver povoa com mármore, metal e imagens cinematográficas a interminável rampa circular do Museu Guggenheim em Nova York e recobre suas paredes com tons vermelhos e pastel.

A exposição se abre com Guerra, 15 gravuras de Otto Dix, combatente e artista pacifista alemão. Através da lembrança de corpos mutilados a conviverem com cadáveres em decomposição, vermes, lama e armas letais, Dix expressa o lamento de testemunha raivosa e involuntária do conflito bélico. Perversamente, Chaos & Classicism se fecha com o Prólogo ao filme Olympia (1936), dirigido por Leni Riefenstahl. Ao final dos minutos iniciais, hoje com trilha sonora tomada a Vangelis (youtube.com/watch?v=x6-0Cz73wwQ), a montagem sobrepõe à escultura Discóbolo, do grego Míron, imagens replicantes de atletas alemães contemporâneos. À porta do forno crematório, o 3.º Reich e as ruínas espetaculares do Partenon se harmonizam no elogio da performance desportiva. Já à venda nas boas livrarias brasileiras, o catálogo editado pelo Museu reproduz os trabalhos expostos. Estes se fazem acompanhar de ensaio recente de Silver e de estudos por três colegas seus.

Os artistas que pregam o retorno ao ideal clássico se definem como detratores da vanguarda futurista e expressionista. Retorno ao Ofício (Ritorno al Mestiere), ensaio de Giorgio De Chirico de 1919, tem grande repercussão na própria Itália e na Alemanha. Nele, aconselha o principiante a ter como modelo as estátuas clássicas. Ao reproduzi-las no papel, o jovem “aprende a nobreza e a religião do desenho”. Se por acaso não tiver a oportunidade de ir a museu, aconselha o pintor doublé de ensaísta, “compre uma reprodução em gesso e, no quarto, copie-a dez, vinte, cem vezes”. A teoria se faz prática no quadro Autoritratto (1922), no qual De Chirico exerce dupla e notável maestria sobre a tela bidimensional e a perspectiva. Pintado à esquerda, o busto esculpido de De Chirico olha à direita o rosto do artista também pintado, realisticamente. Este não tira os olhos do espectador. A significativa troca de olhares leva por título Se Ipsum (O Próprio, em latim). Ensaio e quadro servem para Silver assinalar o modo como a escultura se torna forma nobre nas artes entre as duas guerras. Em pleno domínio do espírito de vanguarda, a opção pelo ideal clássico se expressa na pintura por figuras humanas escultóricas (analisem-se as telas de Fernand Léger e Balthus), e tem o final aterrador nas imagens modelares e plácidas do filme Olympia.

Se Otto Dix é testemunha involuntária do caos bélico e De Chirico, crítico demolidor do vale-tudo vanguardista, é o pintor francês Amédée Ozenfant (1886-1966) quem dá os primeiros passos em direção a uma cultura pós-bélica que, por repelir a lembrança, se afirma conscientemente a favor do esquecimento. Em companhia do futuro Le Corbusier (então Charles-Edouard Jeanneret), Ozenfant baliza a reviravolta em Depois do Cubismo (1918). Ali se lê: “A guerra termina, tudo se organiza. Agora, só a ordem e a pureza iluminam e orientam a vida.” Criava-se o movimento purista e, em 1920, fundava-se a revista L”Esprit Nouveau, que repercutiu positivamente no Brasil.

Mário de Andrade é leitor apaixonado da revista, como atestam os sucessivos cotejos analisados por Maria Helena Grembecki em Mário de Andrade e L”Esprit Nouveau (IEB/USP, 1969). No prefácio ao livro, Antonio Candido reitera o papel exercido pela revista francesa na formação das ideias estéticas de Mário. Abrem-se outros caminhos na pesquisa sobre os primórdios da vanguarda brasileira.

Postado por Luis Favre

domingo, 24 de outubro de 2010

"Vou-me embora pra Pasárgada" de e por Manuel Bandeira



os sapos - manuel bandeira

Milo Manara - Bolero

PAC de Manguinhos ganha exposição no MoMA

Museu de Nova York exibe projeto em favela do Rio numa mostra sobre soluções para populações carentes




Gilberto Scofano

Entrega dos primeiros apartamentos do PAC em Manguinhos




Fernanda Godoy* e Célia Costa – O Globo
RIO e NOVA YORK. Onze projetos de arquitetura que atendem a habitantes de comunidades pobres, imigrantes e vítimas de exclusão social, entre eles os moradores do Complexo de Manguinhos, no Rio, ganharam o espaço nobre das galerias do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, e estão mostrando ao mundo visões inovadoras de urbanismo para populações carentes. O curador da exposição, o alemão Andres Lepik, admite que até os arquitetos selecionados ficaram surpresos ao serem convidados para expor trabalhos em um lugar que viam como elitista.

Um dos trabalhos escolhidos para a exposição “Escala pequena, mudança grande — novas arquiteturas de engajamento social” foi a Rambla de Manguinhos, dentro do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), desenvolvida pelo arquiteto argentino Jorge Mario Jáuregui, da Metrópolis Projetos Urbanos.

Envolvido com projetos em favelas desde 1993, Jáuregui desenhou uma estação de trem suspensa sobre uma estrutura de concreto, com uma grande área de lazer e recreação. O objetivo dele é integrara comunidade e combater a exclusão social dos moradores.

No vídeo que acompanha os desenhos e as fotos apresentados no MoMA, o arquiteto aparece percorrendo a comunidade a pé, conversando com os moradores. Jáuregui destaca que é preciso primeiro entender a estrutura do problema, para depois propor a solução.

Foi essa exatamente a abordagem que o museu buscou. Um critério fundamental para a seleção, em um processo que durou quase um ano, foi o de que os projetos já tivessem sido executados ou estivessem em andamento.

— Todos os arquitetos selecionados são pessoas com um profundo conhecimento da comunidade onde trabalham.

Não são pessoas que fazem uma visita de duas semanas e elaboram um projeto.

Queríamos mostrar trabalhos que tratassem dos problemas reais do mundo de hoje, não de debates acadêmicos ou da discussão de ideias — diz Lepik.

*Correspondente do Globo



Rambla também será tema de evento na Bélgica
Vice-governador diz que obras terão um grande impacto social

Inspirado na rambla de Barcelona, uma bela rua para passear, o projeto da Rambla de Manguinhos também será exposto no Festival Europalia, que vai acontecer na Antuérpia, na Bélgica, em setembro de 2011. Para Jorge Mario Jáuregui, a repercussão de seu trabalho é o reconhecimento de 15 anos dedicados ao urbanismo social. Na Antuérpia, no entanto, a exposição será da obra já concluída.

A foto de apresentação, segundo ele, mostrará pessoas usando a rambla.

— Será uma rua de pedestre com automóveis “domesticados”, obrigados a se comportar e a respeitar os pedestres.

É um projeto que mostra que as questões social e estética estão juntas — analisou Jáuregui.

O vice-governador Luiz Fernando Pezão ressaltou a importância do impacto social que as obras vão causar na comunidade.

— O projeto de Manguinhos leva urbanização e segurança à linha férrea. As ideias são fantásticas e todas serão premiadas. Também já são finalistas do prêmio de melhores práticas no aspecto social, que acontecerá em Dubai — disse o vicegovernador.

Teleférico em Caracas também está na mostra

No MoMA, o projeto de Manguinhos está na mesma sala daquele que conta a experiência da implantação de um teleférico em favelas de Caracas, um dos projetos sociais mais conhecidos do governo do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Em Bangladesh, na Ásia, e em Burkina Faso, na África, os projetos destacados são os de construção de escolas com materiais locais. Já na França, trata-se de outro tipo de tentativa de inclusão social: a dos imigrantes, com a remodelação de um prédio modernista na periferia de Paris.

Também há projetos habitacionais no Líbano, no Chile e nos Estados Unidos, próximo à fronteira com o México. A exposição tem uma área para quem quiser explorar melhor os projetos pela internet, em sites que podem ser acessadas por qualquer um, como o da Open Architecture Network ( www.openarchitecture-network.org).

Para Andres Lepik, a arquitetura pode servir como um ponto de partida para projetos mais amplos de transformação social, e o MoMA, como instituição, é uma boa plataforma para esse debate.

— A arquitetura não é uma forma de design dirigida a 2% de privilegiados — diz o curador.

domingo, 3 de outubro de 2010

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS - Na terra de Humberto Mauro

Cataguases, 2010

LUIZ RUFFATO

NASCI EM CATAGUASES, interior de Minas Gerais, onde volto pelo menos uma vez por ano para rever minha irmã e a família dela, únicos parentes na cidade, já que a maioria dos Ruffato, originários de uma antiga colônia italiana chamada Rodeiro, encontra-se radicada em Ubá (MG).
No começo de agosto deste ano, no entanto, lá estive por um motivo diferente: participar do 2º Festival Ver e Fazer Cinema, que reuniu estudantes de cinco países (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde) para a realização de sete curtas-metragens (cinco documentários e duas narrativas de ficção), tutorados por nomes como Maurice Capovilla, Luiz Carlos Lacerda (Bigode), Emilio Gallo, Joel Pizzini, Gustavo Jardim e Guilherme Fiúza.
Durante o evento, demo-nos conta de que o Cine-Teatro Edgard, um dos vários monumentos modernistas da cidade, inaugurado em 1953, com projeto de Aldary Toledo e Carlos Leão, embora tombado pelo patrimônio público nacional, está caindo aos pedaços. E ali mesmo iniciou-se um movimento pela recuperação do edifício, um marco simbólico de uma cidade que se orgulha de ter sido o berço do cinema brasileiro, projetada que foi pelos filmes de Humberto Mauro (1897-1983) e seu Ciclo de Cataguases, ainda na década de 1920.
No entanto, muito além de prédio modernista ou símbolo cultural, o Cine-Teatro Edgard é, para mim, a manifestação viva de um terrível e mortal pecado, a inveja.
Invejava o seu Sebastião, xará do meu pai, que, com seu carrinho estrategicamente posicionado na esquina da praça Rui Barbosa, perfumava as noites de sexta-feira, sábado e domingo com o olor de sua pipoca quentinha e saborosa, atiçando os frequentadores que lotavam as filas para comprar ingresso no Cine-Teatro Edgard...
Enquanto isso, a outra praça, a da Igreja (hoje Santuário) de Santa Rita de Cássia, ficava às moscas, e nem mesmo a colorida fonte luminosa ajudava-nos, eu e meu pai, a vender a nossa pipoca tão ou mais gostosa e cheirosa que a do concorrente. Terminada a missa, todos saíam apressados para o footing na praça vizinha...
Inveja também dos garotos que, levados pelas mãos dos pais, assistiam aos filmes nas matinês de domingo, orgulhosos de sua roupa domingueira, de seu sorvete, algodão-doce ou pacote de bala de goma. Invejava, ao mesmo tempo, os meninos mais velhos, que, ainda que de calças curtas, conseguiam entrar nos filmes "proibidos para menores de 14 anos", saindo de lá sérios, como quem viajou pelo mundo e viu coisas...
Invejava os que sorrateiramente ocupavam, nas tardes de sábado e domingo, a calçada ao lado do cinema com pilhas de revistas. Eu não tinha dinheiro para as matinês, nem idade para os filmes "proibidos para menores de 14 anos" e nem revistas para trocar...
No entanto, um dia, já trabalhando como caixeiro de botequim, separei uns trocados para enfim conhecer o Cine-Teatro Edgard por dentro. Era uma quarta-feira, de ingresso mais barato, e eu matava aula. Aguardei ansioso abrirem as portas, vigiando o movimento a partir de um banco próximo: evitava ser o primeiro. Afinal, passei pelo bilheteiro e me vi no hall, namorando com fingimento a vitrine de balas.
Adiava o momento em que teria que ultrapassar a enorme cortina vermelha -as mãos e os pés suando por não saber com o que iria me deparar. No momento exato em que pisei o tapete vermelho que conduziria meus pés à sala de projeção, as luzes se apagaram, alguém esbarrou em mim, e tateando busquei na escuridão um lugar em meio a dezenas de poltronas vazias. E compreendi pela primeira vez a solidão a que irremediavelmente estava condenado.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

"Toda arte flutua num mar de palavras"

Joseph Kosuth, norte-americano que inventou a arte conceitual, repudia forma e mercado em nome das ideias

Artista está na Bienal de São Paulo com painéis que ampliam definições dos pontos cardeais, trabalho feito em 1967

SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Joseph Kosuth tira uma caneta preta do bolso e pinta por cima de manchas brancas, falhas na impressão de seus quatro painéis expostos na Bienal de São Paulo. Um segurança corre para impedir, e Kosuth reage brandindo sua credencial de artista.
São dois lados da figura estranha que é Kosuth. Aquele homem que repudiou a forma, de rosto desconhecido mesmo para quem conhece sua obra, tentava ali corrigir justo a forma de seu trabalho.
No café do Museu de Arte Moderna, até os curadores da Bienal perguntavam quem era o senhor todo de preto, de chapéu, óculos e bolsa também negros, que olhava pela janela as esculturas no jardim do parque Ibirapuera.
Kosuth é o americano que no auge do expressionismo abstrato dos anos 50, aquele dos respingos alucinados de Jackson Pollock e campos de cor de Mark Rothko, rompeu com a pintura, a escultura e com tudo que veio antes.
Do nada, queria uma arte calcada na linguagem, na exploração semântica. Tentava rever a secura asfáltica da vida em forma de obra de arte.
Isso quer dizer que Kosuth opera no intervalo -também semântico- entre ver e olhar. "Arte se baseia em falácias", resume. "Sabemos que ver não é o mesmo que olhar, que alguém pode nunca olhar de verdade para algo que está vendo há dez anos."
Ou ouvindo. Seus primeiros trabalhos, que inventou quando pensava que tudo já tinha sido feito, eram ampliações de definições de palavras extraídas do dicionário em letreiros preto e branco.
Transformavam a palavra escrita e ouvida em objeto visual escancarado como revelação, enunciados com a pretensão de anular nuances e distorções dos significados.
"Acreditava que um artista devesse fugir à tradição", lembra. "Ser artista é fazer perguntas sobre o significado da arte e estar engajado na produção de significados, isso deve ser a tarefa sempre."
Kosuth então se desvencilhou da forma. Na busca por esses significados, consultou primeiro os dicionários, depois os livros de filosofia. Quase toda sua obra são palavras, em painéis monocromáticos, como os da Bienal, ou escritas em néon, mas nunca figura, paisagem, cor.
"Quando alguém faz um trabalho figurativo, arrisca ter a obra abraçada pelo público, acolhida demais", diz Kosuth. "Perde a potência, a capacidade de fazer perguntas, despreza o dever primordial de levantar questões."
Sem usar as próprias palavras, Kosuth avança sobre o discurso dos outros, de Nietzsche e Wittgenstein a Hitler e Kafka, para sublinhar também o trabalho dos outros, esculturas renascentistas, Picasso, Duchamp.

MAR DE PALAVRAS
"Toda a arte flutua num mar de palavras", afirma. "Artistas formais parecem não entender às vezes que mesmo a forma pura tem um significado, que não operam num vácuo, e por isso um trabalho formal acaba virando só decoração muito cara."
Nas palavras ácidas de Kosuth, é um "rabicho adiposo da modernidade achar que arte é esforço decorativo". E no encalço dessa gordura formal, ele viu surgir formas distintas de olhar para a arte.
"Emergiram histórias paralelas da arte, a história da arte tradicional e a história do mercado da arte", resume. "Damien Hirst e Jeff Koons são figuras emblemáticas dessa história do mercado, mas não contribuíram para um corpo de ideias."
Kosuth acredita que erraram a mão quando quiseram ser sexy demais, do mesmo jeito que Andy Warhol e Roy Liechtenstein, que começaram no preto e branco e então caíram na tentação da cor.
"Artistas não devem ser amados pelas formas, mas pela ideia por trás do trabalho", resmunga Kosuth, que ainda se veste todo de preto.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"El Alma Nunca Piensa Sin Imagen" (a alma nunca pensa sem imagem)

Título da obra censurada do artista argentino Roberto Jacoby, que simula uma campanha eleitoral usando imagens dos candidatos Dilma Rouseff (PT) e José Serra (PSDB). Os artistas, trajando camisetas vermelhas com o nome "Dilma" e a estrela do PT, "fazem uma espécie de campanha para a candidata, segundo os censores...Se fosse a favor de Serra, seria tudo liberado?

sábado, 18 de setembro de 2010

Argentino faz obra gigante ''pró-Dilma''

Argentino faz obra gigante ''pró-Dilma''


Não são só as telas do pernambucano Gil Vicente que estão causando barulho antes mesmo de a Bienal começar. Da Argentina, o também artista plástico Roberto Jacoby trouxe para São Paulo dois retratos gigantes dos candidatos à Presidência José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), ele com a cara raivosa e ela aparentando alegria, e mais de 20 cabos eleitorais, que usarão camisas vermelhas com os dizeres "Brigada argentina por Dilma".


Durante a mostra, Jacoby e sua equipe pretendem distribuir panfletos e broches pró-Dilma e armar um palanque em plena Bienal. "Estamos convencidos da necessidade de Dilma no poder para o bem da América Latina", disse Jacoby ao Estado. Mas fazer campanha política em plena Bienal de arte vale? "O tema da Bienal é arte política. Estou apenas respondendo a um chamado dos curadores dessa exposição", afirmou o argentino.


Jacoby desconhecia a polêmica em torno das obras do colega Gil Vicente. "Sou contra qualquer tipo de censura e sei que a legislação brasileira também é."


Discussão. Além de despertar a curiosidade de quem já viu a montagem no prédio da Bienal, Jacoby não recebeu nenhum tipo de notificação de qualquer entidade. "Não vejo como poderia ter problema com autoridades brasileiras", disse o artista argentino. Mas sabe que sua obra vai incomodar e levantar discussão. "Arte tem de produzir polêmica, é a melhor resposta para um artista. Se não há discussão, a obra está morta", concluiu.Do Estadão

OAB VIRA CENSORA DA ARTE

OAB pede para Bienal de SP retirar obra polêmica
Série "Inimigos" retrata artista atentando contra a vida de figuras públicas

Ordem dos Advogados ameaça processar instituição caso quadros de Gil Vicente sejam mantidos

GUSTAVO FIORATTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo divulgou ontem nota pública pedindo para que os trabalhos do artista pernambucano Gil Vicente sejam excluídos da Bienal de São Paulo, que abre no próximo dia 25.
Os dez desenhos da série "Inimigos" retratam o próprio artista atentando contra a vida de figuras públicas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o papa Bento 16 e o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, por exemplo, aparecem sob a mira de uma pistola. O presidente Lula, por sua vez, com uma faca na garganta.
"Essas obras fazem apologia à violência e ao crime, revelam o desprezo do autor pelas figuras humanas e demonstram um desrespeito contra as instituições públicas", diz o presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D'Urso. "Se elas não forem retiradas, a curadoria da Bienal corre o risco de estar cometendo crime."

RISCO DE PROCESSO
Segundo D'Urso, o pedido ainda não é judicial. Mas, caso a curadoria da Bienal decida manter as obras, a OAB deve encaminhar solicitação de abertura de processo pelo Ministério Público.
Agnaldo Farias, um dos curadores desta edição da mostra, diz que as obras não serão retiradas. Segundo ele, a OAB-SP está incentivando um ato de censura.
"Esse trabalho é uma ficção, ela vem do imaginário. Na dramaturgia, também há inúmeros casos de representação de atentados contra instituições públicas. A OAB de São Paulo vai pedir para que esses autores não sejam mais exibidos também?", questiona Farias.

OPINIÃO TACANHA
"A representação artística deve ter limites. Se as figuras retratadas não fossem reconhecíveis, aí sim poderíamos tratá-las na esfera da ficção", rebate D'Urso.
O criminalista Alberto Zacharias Toron considera "tacanha" a opinião do presidente da OAB. "Falar em incitação ao crime é de uma grande incompreensão sobre o papel da arte", argumenta o advogado, doutor em direito penal pela USP, ex-diretor do conselho federal da própria OAB.
Segundo Toron, a liberdade de expressão do artista é garantida pela constituição do país.
Segundo o autor das obras, que tem 2 m por 1,5 m e são feitas com carvão, elas não foram pensadas para incitar a violência.
"Eu não mataria ninguém, nem quero que outras pessoas façam isso. A violência que eu retrato parte do próprio mundo político contra um país inteiro", explica Vicente.
O trabalho, reitera o artista, fala diretamente sobre uma insatisfação. "Nada muda na mão de políticos. O país continua cheio de miseráveis. A morte que eu apoio dessas pessoas é simbólica."
Gil Vicente diz que não comparece às urnas desde que iniciou a criação da série "Inimigos", em 2005. "Eu tenho consciência de que ter esperança nessas figuras é bobagem. Não vou mais cair nessa", afirma.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Argentino usa paixão por PT em instalação que integra a 29ª Bienal de São Paulo , no parque Ibirapuera

RICARDO WESTIN
DE SÃO PAULO

Perto de 160 artistas do mundo todo darão forma à 29ª Bienal de São Paulo. A concorrência será grande, mas o argentino Roberto Jacoby já sabe que terá muitos holofotes voltados para si.
Jacoby, 66, é fã incondicional do Partido dos Trabalhadores brasileiro, e essa paixão será o chamariz de sua instalação nesta edição da Bienal, que será aberta no sábado da semana que vem.
No espaço que lhe coube no prédio do parque Ibirapuera, ele acaba de montar duas fotos gigantescas -de 4 m de altura e 5 m de largura cada uma- que mostram um carrancudo José Serra (PSDB) e uma radiante Dilma Rousseff (PT).
Ao longo dos dois meses e meio da megaexposição internacional de arte, Jacoby terá cerca de 25 "cabos eleitorais" argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata à Presidência da República.
Eles também são artistas e estão ajudando Jacoby na montagem da instalação. Todos estarão uniformizados com uma camiseta vermelha com os dizeres "Dilma" na frente e "Brigada Argentina por Dilma" nas costas.
"Somos a favor da continuidade do governo do PT, que tem sido importante para a democracia e a unidade na América Latina", explica, empolgado, Roberto Jacoby.
Essas fotos de Dilma e Serra foram tiradas da internet e escolhidas por terem os direitos autorais liberados.

AMBÍGUA LIGAÇÃO
Para o artista argentino, a presença de Dilma Rousseff na Bienal é inevitável. Por determinação dos organizadores, a "estreita e ambígua ligação entre arte e política" é o mote que deve permear todas as obras.
A instalação de Jacoby leva o título "A Alma Nunca Pensa sem Imagem". Ali, além de verem os candidatos, os visitantes assistirão a palestras sobre arte e filosofia, ouvirão leituras dramáticas e participarão de oficinas de arte. Nas oficinas de serigrafia e desenho, aprenderão a fazer cartazes do PT.
"Tudo é artístico", diz Jacoby. "Estou trazendo para dentro, na forma de arte, o que acontece lá fora." Procurados pela Folha, os curadores da Bienal não quiseram falar dos "cabos eleitorais".

PATROCÍNIO
A Brigada Argentina por Dilma foi organizada só para a Bienal. Segundo Jacoby, não é ligada ao PT.
Os simpatizantes argentinos chegaram a pedir patrocínio ao Partido dos Trabalhadores. A ideia era, com o dinheiro, encher uma parede com estrelas vermelhas. O PT respondeu que não poderia contribuir porque a propaganda eleitoral está proibida em prédios públicos.
Essa instalação recebeu R$ 40 mil dos organizadores. A Bienal arrecadou R$ 30 milhões de empresas privadas, incentivadas pela renúncia fiscal da Lei Rouanet.
Os "brigadistas" ficam animados quando falam do presidente Lula, mas admitem que sabem pouco de Dilma.
"O que conheço é o que está na internet. Sei que é economista, muito capaz, estudiosa e se transformou em especialista em energia elétrica num país tão grande como o Brasil", afirma Jacoby. "De Serra, não sei muito."
Sobre as suspeitas que se levantam sobre a candidata na quebra de sigilos fiscais, minimiza: "Em todos os países há escândalos. Na Argentina, é a mesma coisa". O artista vê semelhanças entre Dilma e a presidente Cristina Kirchner: "Sofrem preconceito por serem mulheres e progressistas e por apoiarem os sindicatos e os sem terra".

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A desintegração de Frida Kahloar

ARTE

Uma vida romanesca

A desintegração de Frida Kahlo

RESUMO
A trajetória de Frida Kahlo (1907-54) é narrada na biografia "Diego e Frida", escrita pelo Prêmio Nobel de Literatura J.M.G. Le Clézio, sobre a artista mexicana e seu marido Diego Rivera, e num álbum de fotografias inéditas. Vida e obra de Frida se tornam objetos de culto e idolatria, ecoando aspectos da cultura contemporânea.

ALCINO LEITE NETO

"YO SOY LA DESINTEGRACIÓN", escreveu Frida Kahlo em seu diário. Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón passou boa parte de sua vida na cama e em hospitais, entre dores terríveis e intervenções cirúrgicas sucessivas (mais de 20). A série de padecimentos físicos da artista mexicana ao longo de seus 47 anos de vida é inumerável. Eis alguns deles:
1. Nasceu em 1907 com um tipo de malformação congênita da bacia, estreita demais para assegurar no futuro uma gravidez sem problemas;
2. Aos três anos, contraiu poliomielite; a doença deixou sua perna direita e seu pé esquerdo um tanto atrofiados;
3. Com quase 18 anos, foi vítima de um acidente de trânsito, no qual fraturou a coluna vertebral em 3 pontos e a perna esquerda em 11, teve parte do fêmur rompido, quebrou costelas e o osso pélvico, o pé direito foi esmagado e um balaústre de ônibus atravessou seu ventre até a vagina. "Foi assim que perdi minha virgindade", disse;
4. Incapaz de gerar filhos, teve três abortos, um espontâneo e dois realizados cirurgicamente;
5. Em 1953, uma gangrena levou à amputação da perna direita; sufocada por dores de todo tipo, ela as amenizava com morfina, maconha e altas doses de Demerol;
6. Em 1954, contraiu uma forte pneumonia, causa de sua morte em 13 de julho.
Engana-se, entretanto, quem pensa que sua vida seja tão desinteressante quanto um boletim médico e tão piedosa quanto uma telenovela. Ao contrário. É preciso ter nervos e colhões para acompanhar a trajetória desta mulher que foi contemporânea da Revolução Mexicana (1910) e de um dos períodos mais flamejantes da história das Américas; engajou-se na juventude no Partido Comunista; esteve ao lado por mais de 20 anos de um dos titãs da arte moderna, o intranquilo e insaciável Diego Rivera, com quem se casou duas vezes (em 1929 e em 1940); flertou com Trótski e Georgia O'Keefe; conviveu com alguns dos principais artistas de sua época e construiu uma pintura atípica e enigmática, violenta e patética, assim definida por André Breton: "É uma fita em volta de uma bomba".
Se houve uma vida propriamente romanesca na arte do século 20, esta foi a de Frida Kahlo. Sua existência contém todos os elementos para uma narrativa apaixonante: a série de tragédias vivida pelo corpo, sim, mas também a paixão política, a luta contra os "artepuristas" e a arte burguesa, a expectativa de redenção social e espiritual depositada na pintura e principalmente a história de amor obsessiva e atribulada que viveu com Diego Rivera (1886-1957). "Amo Diego mais do que a minha própria pele", escreveu a artista.
É esta história incomum que o escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, 70, Prêmio Nobel de Literatura de 2008, narra em "Diego e Frida" [trad. Vera Lúcia dos Reis, Record, 240 págs., R$ 39,90]. Como diz o título, o livro tem dois personagens, e o autor toma o cuidado de não se desviar demais para um dos polos da história. Mas o leitor há de perceber que são os dramas de Frida Kahlo que mais encantam o autor e conduzem a narrativa.
Le Clézio, que viveu no México e é um amante do país e de suas culturas pré-colombianas, envereda com muita segurança pelos labirintos da história mexicana moderna e da vida do casal de artistas. Sua biografia, porém, é de segunda mão, construída a partir de outros livros, sem um trabalho de pesquisa inédito e pessoal. Personalíssima é a maneira como ele conta essa história, com toda a liberdade que lhe permite a literatura e sem represar, afinal, a exaltação política que compartilha com os personagens.
Nada escapa ao olhar de (grande) romancista de Le Clézio, tanto no plano de conjunto quanto nos detalhes -sejam os hábitos cotidianos, como as roupas de Frida e o ascetismo gastronômico de seu marido, sejam os reveses sentimentais ou os momentos picantes e rocambolescos, como a fuga de Rivera para os EUA, suspeito de um atentado frustrado contra Trótski. Outros personagens fascinantes, como os fotógrafos Edward Weston e Tina Modotti, os escritores André Breton e Paul Éluard, e ainda Nelson Rockfeller e Henry Ford, atravessam a narrativa.
Le Clézio também não se priva de abordar criticamente a obra de ambos -e o livro resulta num verdadeiro elogio da pintura dela e, mais ainda, numa apologia do moralismo dele. Nos capítulos finais, o autor "sobe o tom" político da narrativa, apresentando os dois artistas como emblemas de uma arte humanista e revolucionária.
Há algo de anacrônico em tudo isso, e por vezes a escrita de Le Clézio transborda no puro kitsch -em frases como: "A revolução é como o nascimento do amor. Tudo pode acontecer". Outras vezes, ele se lambuza de sentimentalismo ou imerge numa espécie de esoterismo político, em que culturas e mitos indígenas abrem portas para a redenção do homem.
Entretanto, por isso mesmo, por se construir no caminho oposto ao de nossa época cética e apática, por seu convite a compreender a arte como uma forma de rebelião social e de extravasamento íntimo radical, por sua indiferença em relação aos percalços pós-modernos da escrita, este livro se torna uma leitura desafiadora e palpitante.
"Diego e Frida" não é a única obra a respeito da artista mexicana que chegou às livrarias brasileiras recentemente. Há também o belo álbum "Frida Kahlo - Suas Fotos" [org. Pablo Ortiz Monasterio, trad. Gênese Andrade e Otacílio Nunes, Cosac Naify, 524 págs., R$ 120], com parte da coleção de aproximadamente 6 mil imagens guardadas pela pintora e que, por impedimentos testamentais, só veio à luz agora, mais de 50 anos após a sua morte.
As cerca de 400 fotos do álbum são o complemento ilustrativo ideal ao livro de Le Clézio. Os personagens da biografia estão todos ali, em retratos que provam o gosto de Frida pela fotografia e o valor que atribuía aos retratos como testemunhos de sua vida.
Tal gosto Frida herdou do pai, Carl Wilhelm Kahlo, alemão que imigrou para o México no final do século 19 e ali se estabeleceu como fotógrafo, adotando o prenome Guillermo. Um capítulo do livro -e um dos seus pontos altos- é dedicado justamente à série de autorretratos do pai, obsessão compartilhada pela filha, que fez de si mesma, de seu rosto e de seu corpo, o tema por excelência dos quadros. "Sua pintura pode ser descrita como um grande autorretrato, um autorretrato total múltiplo, desaforado", escreve o crítico Mauricio Ortiz num dos sete ensaios que fazem parte da obra -nem todos eles relevantes.
Outros capítulos são dedicados à mãe da pintora, à Casa Azul (onde viveu), ao seu "corpo dilacerado", aos seus amores e às imagens políticas que guardou -da Revolução Russa, de Stálin, de Hitler, dos judeus no final da Segunda Guerra etc. A pintora e Rivera conviveram não apenas com grandes nomes das artes plásticas, mas também da fotografia, como Tina Modotti, Edward Weston, Manuel Alvarez Bravo, Gisèle Freund e Nickolas Muray, cujas imagens o casal colecionou ao longo da vida.
Todos esses fotógrafos retrataram Frida, fascinados por sua poderosa fotogenia, em particular Muray, que foi amante da pintora e fez dela um conjunto notável de imagens, num hospital em Nova York. Há também fotos feitas pela própria pintora, que aprendeu os segredos da câmera ainda criança, com seu pai. E aos brasileiros pode interessar o fato de que a coleção contenha imagens de Pierre Verger feitas no México e dois retratos elegantes da poeta Adalgisa Nery, datados de 1945, quando seu marido, Lourival Fontes, foi embaixador no país.
É certo que, além do valor documental, essas fotos formam uma volumosa coleção de fetiches, poderoso combustível para a idolatria crescente em torno de Frida Kahlo (parecida, em menor escala, à que cerca Clarice Lispector). É inevitável.
Apesar das antipatias de boa parte da crítica de artes plásticas em relação à pintora, há em seus quadros confessionais e alegóricos, com sua mitologia extravagante e esotérica, alguma coisa que fala diretamente ao coração da atualidade -fenômeno que já não pode ser explicado apenas pelas campanhas de valorização da artista movidas pela intelligentsia feminista.
As utopias se esvaziaram, as revoluções sociais caíram em desuso, os comunismos apodreceram, mas a "desintegração" de Frida Kahlo permanece um drama e um desafio dos quais ainda somos contemporâneos.

Se houve uma vida propriamente romanesca na arte do século 20, esta foi a de Frida Kahlo. Sua existência contém todos os elementos para uma narrativa apaixonante

Além do valor documental, essas fotos formam uma volumosa coleção de fetiches, poderoso combustível para a idolatria crescente em torno de Frida Kahlo

domingo, 29 de agosto de 2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A arte de copiar

Fábrica no Paraná reproduz clássicos da história da arte, de Da Vinci e Velázquez a Klimt, e diz ser fiel até ao azul de Portinari

fsp

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A PINHAIS (PR)

Três impressoras cospem no ritmo de um metro por hora telas cheias de cor, quase no mesmo tom das obras originais de Cândido Portinari.
Seria uma sala vazia, estéril e muda não fosse o zumbido dos cartuchos de tinta indo e vindo sobre o tecido. Funcionários usam lupas para checar os micropontos de cor, vendo se não destoam da tela feita à mão pelo artista.
Em Pinhais, polo industrial nos arredores de Curitiba, um galpão ao lado de uma fábrica de materiais hospitalares e um supermercado é uma espécie de ateliê mecanizado, sem artista.
Originais são fotografados ou escaneados, passam por um estudo de cor para impressão e saem emoldurados e embalados para lojas de decoração em todo o país.
Linhas de montagem estampam sobre tecido até mil reproduções por mês de obras de Portinari, Goya, Velázquez, Klimt e, agora, Da Vinci, mais recente aquisição do acervo de réplicas da Recriar, com "A Última Ceia".
Chegou em tempo para a temporada de vendas do fim do ano, em que esse tema sai mais do que todos os outros. Impressas sobre tela, copiando a textura dos originais, as réplicas têm preços que vão de R$ 90 até R$ 3.000.
Não é ilegal esse tipo de reprodução, mas o artista, se vivo, precisa estar de acordo -e muitas vezes recebe parte do lucro. No caso de autores mortos, o contrato é fechado com seus herdeiros ou com museus que têm os direitos de reprodução da imagem.
"Dá para imitar 98% do quadro, só que, a olho nu, para um leigo, vira 100%", diz o dono da fábrica, João Rezende, ex-exportador de pneus. "No exterior, é raro não encontrar ambientes decorados", diz. "Qualquer pires, xícara, parede tem arte."
De volta ao Brasil desde que abandonou o comércio de pneus, Rezende aperfeiçoou a técnica de estampar obras de arte em todo tipo de coisa, de chinelos de dedo a jogos de mesa.
"Tem artista que interpreta que arte aplicada em produto é muito bom, ajuda a valorizar o original", diz Rezende. "E jamais foi meu objetivo competir com o original, temos fins decorativos."

Técnica reproduz até os fios de cabelo
Acordo com a família Portinari obriga fábrica a copiar o azul que é assinatura do artista e também falhas e defeitos

Empresário argumenta com decoradores que obra do modernista é mais sofisticada do que natureza-morta e floral


DO ENVIADO A PINHAIS (PR)

Numa viagem de negócios, João Rezende foi parar na Coreia. Ficou impressionado com as fabriquetas de móveis que, num só dia, faziam centenas de cadeiras, empilhadas na frente da loja para vender ao cair da tarde.
"Mesmo naquele fundo de quintal, dava para fazer uma coisa sofisticada", lembra o dono da Recriar. "Tinha coisa dali indo para a Europa."
Ele aprendeu bem a ideia de juntar indústria e ilusão de exclusividade. Faz cinco anos que ele é o homem que copia. De Da Vinci a Portinari, seu negócio é reproduzir grandes clássicos da arte.
"Portinari é hoje 40% do nosso movimento", diz o empresário. "Mas o foco da decoração brasileira está sempre nos abstratos, florais."
Logo na entrada do galpão onde funciona a Recriar, reproduções dos personagens da Turma da Mônica e grandes cartazes publicitários denunciam outras esferas de atuação de sua fábrica.
Mas Rezende confia na lábia de vendedor para convencer decoradores que uma cópia de "O Lavrador de Café" é mais sofisticada que uma natureza-morta ou padrões geométricos genéricos.

RICO REAL E NOVO RICO
"Consumidor de arte no Brasil ou é rico real ou é novo rico", define o empresário. "Quem compra é classe B e a parte culta da classe C, gente que gosta de Louis Vuitton."
Portinari entrou então como grife nesse panteão de nomes bonitos e cobiçados.
Depois de fechar um acordo com João Cândido Portinari, o filho do artista, Rezende conta que passaram meses tentando imitar as cores originais de todas as telas.
"Tem um azul diferente das escalas de cor que existem", diz Rezende. "O azul Portinari ferrou a gente."
Essa é a cor que aparece nos azulejos da igreja da Pampulha, no céu profundo atrás de seus retirantes, nas paisagens de "Meninos Soltando Pipa", "O Mestiço" e no caixão de "Enterro", tela roubada há duas semanas de um museu em Pernambuco.
Na sala de impressão, funcionários comparam as cores do pano impresso com as da mesma tela num monitor.
Enquanto corrige problemas na obra de outros artistas, o acordo com os Portinari obriga a empresa a ser fiel até às falhas no quadro, como uma parte mofada ou um fio de cabelo grudado na tinta.
"Vem dar uma olhadinha nos pelos do Portinari, checar o DNA dele", provoca Rezende, apontando para o monitor. "Toda essa sujeirinha branca são itens de definição da imagem, eu consigo ver como a tinta se comportou."
Caso tenha se comportado mal, a impressão pode ser interrompida. Uma tela dobrada na mesa de centro da sala, reprodução da azulejaria da Pampulha, foi descartada por não ter o mesmo azul que está no catálogo raisonné, índice geral de obras do artista.
Cópias do catálogo estão espalhadas pela fábrica. Best-sellers do artista, como "O Lavrador de Café", têm provas impressas em versão menor, do tamanho de uma folha de papel. No canto, têm o número de controle da tela, igual ao que está no catálogo.
Rezende alinha todos eles sobre uma mesa para mostrar seu acervo de réplicas. "Esta é a maior mostra de Portinari de todos os tempos", anuncia, orgulhoso.
E, se dependesse dele, Portinari saltaria dos quadros para adereços de mesa, porta-chaves e outros objetos.
Na fábrica, há até testes de telas do artista em suportes de prato, mas a família ainda não liberou a produção.
Talvez por achar que andam levando ao pé da letra demais a frase de Portinari que dizia que "pintura que se desliga do povo não é arte".

Catálogo ajuda na luta contra os falsários
SILAS MARTÍ
ENVIADO A PINHAIS (PR)

Toda imperfeição, sujeira, parte mofada ou fio de cabelo das telas de Portinari aparece na reprodução que sai da fábrica rumo às lojas de decoração. É quase tudo igual, com uma exceção: nenhuma tela é reproduzida no seu tamanho original.
Essa é uma das exigências da família do artista para controlar a falsificação de suas obras ou evitar que uma dessas reproduções passe por original numa venda a algum desavisado.
Ajuda a combater os falsários a publicação de um catálogo raisonné do artista, um registro geral de toda a sua produção. No caso de Portinari, é um volume que vem sendo compilado ao longo dos últimos 30 anos.
"Qualquer obra que não esteja no catálogo é suspeita", afirma João Cândido Portinari. "Essa publicação é um freio às falsificações."
Tarsila do Amaral é outra artista vítima de falsários, em especial de seus desenhos, que acabou sendo preservada pela publicação de seu catálogo raisonné.
"Isso acaba evitando muitos absurdos", diz Aracy Amaral, crítica de arte que trabalhou no volume sobre a modernista


(SILAS MARTÍ


Exposição explica falsificações em 41 telas
Mostra na National Gallery, em Londres, revela erros em atribuir obras a artistas famosos
fsp
VAGUINALDO MARINHEIRO
DE LONDRES

O que aparelhos de raios x, computadores e processos com nomes complicados têm a ver com arte? Uma exposição na National Gallery, em Londres, quer provar que isso tem muito a contribuir para nossa apreciação das obras dos séculos 15, 16 e 17.
"Close Examination: Fakes, Mistakes and Discoveries" usa 41 quadros do acervo da galeria para mostrar exatamente o que o nome da exposição anuncia: falsificações, erros e descobertas.
Em seis salas, há obras e explicações técnicas de como, por exemplo, uma inocente mulher de cabelos castanhos, na janela, foi, na realidade, pintada como uma loira com ares lascivos.
A revelação aconteceu por acaso. O quadro "Mulher na Janela" passava por restauração quando se descobriu que o que parecia ser um desgaste da tinta era, na verdade, a pintura original.
Uma das hipóteses para a alteração é que o quadro tenha sido vítima do conservadorismo da época vitoriana. Tampouco se sabe o autor do original ou das alterações.

NOVAS TECNOLOGIAS
O curador da mostra é Ashok Roy, diretor do departamento científico da National Gallery. O departamento foi criado em 1942 e hoje conta com sete profissionais.
Roy afirma que este é um trabalho contínuo, uma vez que, a cada dia, novas técnicas se tornam disponíveis, sendo, muitas vezes, necessário refazer a investigação com o auxílio delas.
No processo, o departamento científico analisa os pigmentos usados nas obras -o que pode determinar se um quadro é do século 15 ou uma cópia recente-, as técnicas usadas por um determinado pintor -o que também determina falsificações- e até se foram pintadas na Espanha ou na Itália.

VELÁZQUEZ FALSO
Por exemplo, a exibição mostra uma tela que, por muitos anos, foi atribuída a Velázquez. Ela mostra um soldado morto e era considerada uma obra-prima do pintor. Tanto que serviu de inspiração para Edouard Manet pintar "O Tesoureiro Morto".
A ciência deu seu veredicto: não era obra do espanhol; ela deve ter sido pintada na Itália e é quase impossível conhecer, hoje, seu autor.
Há ainda o caso de duas telas adquiridas no fim do século 19 como sendo de Sandro Botticelli. Uma mostra Vênus com três crianças. A outra é o famoso quadro "Vênus e Marte". O primeiro custou mais caro, mas "Vênus e os Três Meninos", rebatizado de "Uma Alegoria", é de um contemporâneo de Botticelli, não do mestre florentino.
Colocadas lado a lado, hoje, parece fácil saber que uma é obra de um gênio e que a outra é um pastiche. Mas, antes de a tecnologia nos dar essa certeza, o quadro enganou muita gente


Ciclo sobre crenças aborda crise na política
Organizada por Adauto Novaes, série de palestras começa na quinta em SP

Quarta edição do evento "Mutações" terá conferências com Sergio Paulo Rouanet, Antonio Cicero e estrangeiros

DO RIO

Desde "O Silêncio dos Intelectuais", realizado em 2005 sob o calor das denúncias do mensalão, os ciclos de conferências organizados pelo filósofo Adauto Novaes não são observados em função dos acontecimentos do momento.
Mas é enganoso pensar que "Mutações - A Invenção das Crenças", que começa na próxima quinta-feira em São Paulo no Sesc Vila Mariana -e passará pelo Rio, por Belo Horizonte e por Brasília-, não tangencie temas como a campanha presidencial.
"A crença na política é fundamental, mas ela está em baixa hoje. O que vemos hoje é uma discussão sobre quem será o melhor gestor, o melhor administrador. Não se apresentam plataformas políticas. É uma luta pelo poder. E essa não é uma situação particular do Brasil", diz Novaes.
O francês Jean-Pierre Dupuy, por exemplo, falará de "Sagração da Economia, Violência sem Limite". A crença excessiva na economia seria uma das responsáveis pela queda da política.
A crença que mais será abordada pelos 22 conferencistas é na ciência e na tecnologia. O tema já predominou nos outros três ciclos da série "Mutações", realizados entre 2007 e 2009 -o do ano passado, "A Experiência do Pensamento", sairá em livro neste ano.
"Acredita-se hoje na ciência e na tecnologia como se pudessem desvendar todos os segredos do homem e do mundo", ressalta Novaes.

CIÊNCIA-PODER
Ele afirma, no entanto, que não há nenhuma "visão doutrinária da anticiência". Isto soaria absurdo diante de tantos avanços, como as pesquisas com células-tronco.
"Fazemos uma distinção entre ciência-saber e ciência-poder. Queremos discutir os limites da ciência-poder. A ciência faz coisas, mas não costuma pensar sobre elas."
A expressão "vazio do pensamento" é recorrente na fala de Novaes e base de "Mutações". Num tempo em que predomina a técnica e em que tudo se dá em extrema velocidade, pensar se tornou um luxo tido como dispensável.
Sobram as opiniões, fartamente distribuídas nos meios de comunicação.
Marcelo Coelho, colunista da Folha, abordará o assunto e a ideia de "formadores de opinião" na conferência "Opinião e Crença".
É significativo que o ciclo comece com uma palestra que trate de arte: José Miguel Wisnik combinará Fernando Pessoa, Machado de Assis e Guimarães Rosa em "A Crença no Espelho".
O conceito de "coisas vagas" (arte, filosofia etc.), do escritor francês Paul Valéry (1871-1945), é um dos fundamentos do ciclo.
A razão, que foi imaginada no século 18, pelo iluminismo, como capaz de superar todas as crenças, estará em conferências como as de Sergio Paulo Rouanet e do ensaísta e colunista da Folha Antonio Cicero.
O franco-tunisiano Abdelwahab Meddeb, que falará de islamismo, e o francês François Jullien, que abordará as relações entre crenças orientais e ocidentais, são as novidades entre os palestrantes. (LUIZ FERNANDO VIANNA


ANÁLISE

Formação de jovens deixou de fora o "samba duro" de Zeca
LUIZ FERNANDO VIANNA
DO RIO

Embora um tanto vagas, as frases de Zeca Pagodinho reabrem um mal-estar que parecia esquecido.
Quando uma nova geração de intérpretes começou a surgir na Lapa carioca, no final da década de 90, era praticamente impossível ouvi-los cantando a turma de Zeca -Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Fundo de Quintal.
Fascinados pela descoberta dos antigos sambistas, eles privilegiavam os mestres ligados a escolas de samba (Cartola, Candeia, Dona Ivone Lara), à Lapa (Wilson Batista, Geraldo Pereira), à tradição do samba urbano (Noel Rosa, Ary Barroso), chegando no máximo a Paulinho da Viola e João Nogueira.
Depois de se formarem nessa escola, alguns deles pularam para compor os próprios sambas, caso da pioneira Teresa Cristina.
Um ou outro -até mais de São Paulo do que do Rio- pode torcer o nariz para o sucesso de Zeca e para a produção industrial de Arlindo, vendo-os como comerciais. Mas não é o caso da maioria.
O chamado pagode surgiu no início dos anos 80, na quadra do bloco Cacique de Ramos, a partir de rodas feitas após jogos de futebol nas quais o alvo principal era a empolgação.
Como ninguém, a princípio, planejava construir carreira, havia espaço para novidades como o repique de mão (por Ubirany, um dos criadores do Fundo de Quintal), o tantã (por Sereno) e o banjo com afinação de cavaquinho (por Almir Guineto), que contribuíram para reincendiar o samba, não só acelerando um pouco o andamento mas revitalizando o partido-alto -os versos improvisados, as rodas, os desafios.
A maioria dos jovens, não suburbanos, prefere algo mais suave, mais salão do que quintal, não o "samba duro" que Zeca exalta

ATÉ O SORRISO DISSIMULADO DA MONALISA APROVOU ESSE PRIVILÉGIO!

JAIRO MARQUES

A muvuca de "Mona Lisa"

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As filas reservadas para deficientes servem para igualar as oportunidades entre as pessoas
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JÁ TINHAM me avisado que o salão onde repousa a mais famosa obra de Leonardo da Vinci, a "Mona Lisa", no Museu do Louvre, em Paris, era mais disputado que ingresso para show do Cauby Peixoto com a Angela Maria, mas, mesmo assim, fiquei surpreso quando botei minhas rodas na porta do local. Era gente demais para quadro de menos.
Cadeirantes costumam ser avessos a muvucas. Normalmente, em grandes aglomerações de pessoas, corro o risco de alguém cair sentado em meu colo e eu perder minha inocência. Isso sem falar no fato de que quase não vejo nada à minha frente, além de bundas dos mais variados tipos e tamanhos. Contudo, não poderia deixar de tentar me aproximar daquele sorrisinho dissimulado estando eu na capital francesa.
Minha namorada foi na frente, tentado abrir caminho na multidão aflita para tirar um retrato de "La Gioconda". Eu fui um pouco atrás, procurando evitar o inevitável: dar um totó em várias canelas com o pedal da cadeira de rodas. Quando já estávamos bem pertinho da glória, digo, da "Mona", o que mais temia aconteceu: um grupo de brasileiros surge resistente a abrir espaço.
O mais intrigante é que os meus compatriotas nem estavam preocupados em ver os detalhes da obra, eles queriam mesmo era tirar fotografias com a tela ao fundo, o que não deixa de ser legítimo, é claro.
"Benhê, tenta pegar o meu rosto ao lado do rosto dela. Nããão, assim eu não apareço direito! Tira outra e vê se não treme a mão", ordenava ao marido uma moça de cabelos negros, longos, mas com menos discrição que a modelo italiana. "Espera só um pouquinho, que deixo você passar, tá, menino?", disse em bom português minha conterrânea, enquanto sorria de olho na máquina fotográfica e na performance do "retratista" amador.
Quando fui visto pelos seguranças do museu no meio daquela confusão, imediatamente o caminho foi aberto. Desfizeram o cordão de isolamento e me puxaram para ficar bem no gargarejo da tela mundialmente reconhecida. "Você também vem para cá", recomendou o guarda a minha namorada.
De repente, estamos longe do empurra-empurra e diante daquele balaio de sensações e impressões que envolvem a pintura. Atrás de nós, uma multidão se espremendo para um melhor ângulo de visão. Para mim, estava promovida, naquele momento, a igualdade de oportunidade. Jamais poderia ter apreciado "Mona Lisa" sem aquela prioridade ou "privilégio".
As filas reservadas para deficientes, muitas vezes, servem para igualar as oportunidades entre as pessoas ou mesmo para garantir a segurança de todos. Uma pessoa que usa muletas, por exemplo, tem menos equilíbrio e pode se esborrachar no chão se levar um sacode durante a espera.
O direito à prioridade não é para dar vantagem. É para tentar diminuir a desvantagem. Uso dele sempre com parcimônia para não ser tachado de folgadão, mas há momentos em que abrir mão desse direito é como ter de resistir ao sorriso de "Mona Lisa".
Saiba mais sobre acessibilidade em Paris e veja a muvuca de "Mona Lisa", no blog. Sugestões: jairo.marques@grupofolha.com.br.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O HOMEM-COISA: look so god, look so good

look so god
look so good

parece tão deus
aparência tão boa

(Parafraseando andhy warhol)

com críticas do GODPLAYER, sentado à direita.