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A concentração de poder nas mãos de magistrados não eleitos ameaça o equilíbrio dos três Poderes e esvazia o princípio da soberania popular
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O deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) é acusado de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção e evasão fiscal. A Justiça tem indícios de que ele movimentou ilegalmente mais de US$ 400 milhões no exterior. No ano passado, seu nome foi incluído, por solicitação dos EUA, na lista de procurados pela Interpol.
Eleito em outubro, Maluf se livrou de ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já que o Tribunal de Justiça de São Paulo revertera uma condenação anterior por irregularidades na compra de frangos pela Prefeitura de São Paulo no ano de 1996.
Dois ex-governadores do Amapá, Waldez Góes e Pedro Paulo Dias, foram presos e indiciados na Operação Mãos Limpas da Polícia Federal por suspeita de participação numa organização criminosa que desviava recursos da União.
Esses recursos eram repassados à Secretaria de Educação do Amapá, provenientes do Fundeb e do Fundef. Segundo a PF e a Receita Federal, o esquema desviou recursos superiores a R$ 300 milhões.
Góes e Pedro Paulo não conseguiram se eleger ao Senado e ao governo do Estado, respectivamente, mas até agora podem ser considerados políticos de "ficha limpa".
Já eu e a deputada Janete Capiberibe fomos cassados em 2004 sob a acusação de termos comprado dois votos por R$ 26, em duas prestações (!!). Em 2010, nos candidatamos novamente e os registros foram aceitos pelo TRE do Amapá, mas cassados pelo TSE, que nos enquadrou na Lei da Ficha Limpa.
Eleitos -Janete com 28.147 votos, a deputada mais votada do Estado-, fomos impedidos de ser diplomados. O crime de que nos acusam foi uma armação perpetrada pelo PMDB dos senadores Gilvam Borges e José Sarney.
Isso ficou evidenciado pela denúncia de um comparsa de Borges, o cinegrafista Roberval Coimbra Araújo, que depois sofreria tentativa de assassinato. Mesmo que fôssemos culpados (e não o somos), a decisão do TSE nos deixa na insólita situação de pagar duas vezes pelo mesmo crime -o que representa subversão completa dos preceitos do Estado democrático de Direito.
No Brasil, a morosidade da Justiça tem obrigado os legisladores a criar novas leis para garantir um mínimo de transparência nos processos eleitorais. Foi o caso da Lei da Ficha Limpa, que nasceu de um justo clamor popular.
O projeto foi aprovado pelo Legislativo e sancionado pelo presidente da República no ano passado. Mas houve polêmica sobre a aplicabilidade da lei já nas eleições de 2010 e o caso está parado no Supremo Tribunal Federal. Uma vez que houve empate (5 x 5), a questão só será resolvida depois da nomeação de um novo ministro.
Mas seria o caso de perguntar: se políticos acusados de corrupção e de outros crimes já tivessem sido julgados em última instância, haveria necessidade de uma lei como essa? Não seria mais fácil agilizar a Justiça? Em muitas democracias, o descrédito do Executivo e do Legislativo provocou a migração do centro de gravidade do poder para o Judiciário -o que estudiosos denominam "judicialização da política".
Essa concentração de poder nas mãos de magistrados não eleitos ameaça o equilíbrio dos três Poderes e, mais grave ainda, esvazia e neutraliza o princípio da soberania popular, que constitui a pedra de toque de toda democracia.
O fato é que, se não enfrentarmos o desafio da "judicialização da política", corremos o risco de ver a soberania popular desfigurada e sacrificada no altar do formalismo.
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JOÃO CAPIBERIBE é senador eleito pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) no Amapá, Estado do qual foi governador de 1995 a 2002.
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
domingo, 19 de dezembro de 2010
justiça - JOSÉ EDUARDO CARDOZO - A corrupção é estrutural no Estado brasileiro
FUTURO TITULAR DA JUSTIÇA PROMETE COMBATER PROBLEMA, MAS DIZ QUE, QUANTO MAIS A PF AGE, CRESCE A SENSAÇÃO DE QUE A PRÁTICA SE AGRAVA
Sérgio Lima - 1.dez.2010/Folhapress
O futuro titular da pasta da Justiça no governo Dilma, o petista José Eduardo Cardozo
VALDO CRUZ
DE BRASÍLIA
ANA FLOR
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
Futuro ministro da Justiça, o petista José Eduardo Cardozo, 51, afirma que a corrupção é "estrutural" no Estado brasileiro e que seu combate será prioridade.
Em sua opinião, há uma visão "ilusória" de que há hoje mais corrupção do que no passado. Repetindo o que o próprio presidente Lula costuma dizer, diz que o problema ficou "mais visível" com a atuação da Polícia Federal. Em entrevista à Folha na última quinta-feira, Cardozo defendeu a reforma política -algo que seus antecessores tentaram, sem sucesso. Segundo ele, é preciso mudar o financiamento de campanhas porque não se pode descartar que, "num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição".
Folha - O governo Dilma fará a reforma política? José Eduardo Cardozo - Ela é imprescindível para o país e é a tendência da presidente eleita, Dilma Rousseff. Tenho uma série de convicções a respeito, mas, como ministro da Justiça, vou construir o que for possível. Estou absolutamente convencido de que o governo sozinho, sem diálogo com o Congresso e a sociedade, jamais fará uma reforma política. É tarefa inadiável.
Defendo com vigor o financiamento público.
Por quê?
Por várias razões. Nosso sistema não guarda nenhuma isonomia de quem disputa. O resultado de uma eleição é determinado pelo potencial financeiro. Na majoritária não diria que é tanto assim, mas na eleição proporcional isso é de uma evidência total. Quem tem grandes recursos financeiros tem mais condições de se eleger. É uma eleição que se faz sem um debate político aprofundado, programático.
O parlamentar fica preso a seus financiadores?
Não posso generalizar. Mas posso dizer que uma situação desse tipo agrava relações que não são boas para o processo democrático. Você tem no Brasil financiadores eleitorais que são corretos, sérios e éticos, e parlamentares que também o são. Mas tem também pessoas que se aproveitam de situações das mais perigosas e acabam complicando o sistema. Não se pode afastar a hipótese de que, num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição.
Sem um papel ativo do governo nada anda no Congresso. Como fazer?
Sem participação do governo federal e sem interação com a sociedade, que desperte energia para alavancar esse processo, é muito difícil. Terei uma posição privilegiada, submetido a uma presidente eleita que tem uma excelente visão sobre o tema.
Vamos fazer algo dialogado, em que se busque mais convergência do que divergência. Se conseguirmos fazê-la, talvez ela não saia exatamente como eu desejaria, mas pelo menos faremos aquilo que for possível.
É o melhor momento?
O primeiro ano de governo é quando você dá passos para fazer reformas estruturantes. A reforma política é uma delas. A tributária é outra.
A Polícia Federal é responsável por investigar corrupção. Qual será sua orientação?
Quanto mais se combate a corrupção, que é estrutural no Estado brasileiro, mais ela aparece. O combate à corrupção passa pela punição subjetiva dos envolvidos, mas também pelo ataque das causas estruturantes. O nosso sistema político gera, inexoravelmente, corrupção.
Se não tivéssemos tido no governo Lula uma Polícia Federal que tivesse atuado de forma republicana, talvez tivéssemos a ilusão de que a corrupção é menor.
Isso deu uma dimensão de que hoje existe mais corrupção. Não é verdade.
Como avalia o mensalão?
Diria que houve toda uma investigação, há um processo em curso na Justiça e acho que ela decidirá a respeito. Tenho afirmado que, ao menos na fase de investigação no Congresso. vi casos que considerei decisões injustas.
E cito um caso com grande tranquilidade, porque a pessoa não é da minha corrente política, que é o do José Dirceu. Eu analisei o caso, e ele foi condenado pela Câmara sem prova, foi uma condenação política. Afirmei na época, afirmo hoje e voltarei a afirmar depois. E não falo como petista, mas como advogado e professor de direito.
Sérgio Lima - 1.dez.2010/Folhapress
O futuro titular da pasta da Justiça no governo Dilma, o petista José Eduardo Cardozo
VALDO CRUZ
DE BRASÍLIA
ANA FLOR
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
Futuro ministro da Justiça, o petista José Eduardo Cardozo, 51, afirma que a corrupção é "estrutural" no Estado brasileiro e que seu combate será prioridade.
Em sua opinião, há uma visão "ilusória" de que há hoje mais corrupção do que no passado. Repetindo o que o próprio presidente Lula costuma dizer, diz que o problema ficou "mais visível" com a atuação da Polícia Federal. Em entrevista à Folha na última quinta-feira, Cardozo defendeu a reforma política -algo que seus antecessores tentaram, sem sucesso. Segundo ele, é preciso mudar o financiamento de campanhas porque não se pode descartar que, "num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição".
Folha - O governo Dilma fará a reforma política? José Eduardo Cardozo - Ela é imprescindível para o país e é a tendência da presidente eleita, Dilma Rousseff. Tenho uma série de convicções a respeito, mas, como ministro da Justiça, vou construir o que for possível. Estou absolutamente convencido de que o governo sozinho, sem diálogo com o Congresso e a sociedade, jamais fará uma reforma política. É tarefa inadiável.
Defendo com vigor o financiamento público.
Por quê?
Por várias razões. Nosso sistema não guarda nenhuma isonomia de quem disputa. O resultado de uma eleição é determinado pelo potencial financeiro. Na majoritária não diria que é tanto assim, mas na eleição proporcional isso é de uma evidência total. Quem tem grandes recursos financeiros tem mais condições de se eleger. É uma eleição que se faz sem um debate político aprofundado, programático.
O parlamentar fica preso a seus financiadores?
Não posso generalizar. Mas posso dizer que uma situação desse tipo agrava relações que não são boas para o processo democrático. Você tem no Brasil financiadores eleitorais que são corretos, sérios e éticos, e parlamentares que também o são. Mas tem também pessoas que se aproveitam de situações das mais perigosas e acabam complicando o sistema. Não se pode afastar a hipótese de que, num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição.
Sem um papel ativo do governo nada anda no Congresso. Como fazer?
Sem participação do governo federal e sem interação com a sociedade, que desperte energia para alavancar esse processo, é muito difícil. Terei uma posição privilegiada, submetido a uma presidente eleita que tem uma excelente visão sobre o tema.
Vamos fazer algo dialogado, em que se busque mais convergência do que divergência. Se conseguirmos fazê-la, talvez ela não saia exatamente como eu desejaria, mas pelo menos faremos aquilo que for possível.
É o melhor momento?
O primeiro ano de governo é quando você dá passos para fazer reformas estruturantes. A reforma política é uma delas. A tributária é outra.
A Polícia Federal é responsável por investigar corrupção. Qual será sua orientação?
Quanto mais se combate a corrupção, que é estrutural no Estado brasileiro, mais ela aparece. O combate à corrupção passa pela punição subjetiva dos envolvidos, mas também pelo ataque das causas estruturantes. O nosso sistema político gera, inexoravelmente, corrupção.
Se não tivéssemos tido no governo Lula uma Polícia Federal que tivesse atuado de forma republicana, talvez tivéssemos a ilusão de que a corrupção é menor.
Isso deu uma dimensão de que hoje existe mais corrupção. Não é verdade.
Como avalia o mensalão?
Diria que houve toda uma investigação, há um processo em curso na Justiça e acho que ela decidirá a respeito. Tenho afirmado que, ao menos na fase de investigação no Congresso. vi casos que considerei decisões injustas.
E cito um caso com grande tranquilidade, porque a pessoa não é da minha corrente política, que é o do José Dirceu. Eu analisei o caso, e ele foi condenado pela Câmara sem prova, foi uma condenação política. Afirmei na época, afirmo hoje e voltarei a afirmar depois. E não falo como petista, mas como advogado e professor de direito.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Conversa Afiada - Quem é a juíza que condenou Abdelmassih
O Conversa Afiada reproduz artigo da juíza Kenarik Boujikian Felippe, que condenou ontem o médico Roger Abdelmassih a 278 anos de prisão – clique aqui para ler: “Abdelmassih pega 278 anos. Gilmar deixa ele solto”.
Justiça não é revanchismo
Kenarik Boujikian Felippe*
É grotesco falar em “revanchismo”, ato pessoal de desforra por ofensa recebida, em referência à responsabilização dos atos inumanos, catalogados como crimes de lesa-humanidade, praticados por agentes do Estado ou pessoas que atuaram com sua autorização, apoio ou consentimento no período da ditadura instaurada em 1964. Trata-se de tema de Estado, e sua correspondência é justiça.
Acolhido o pleito social e político de necessidade de construção da democracia, sobreveio a Lei da Anistia, que reconheceu a injustiça da situação de fato e da aplicação das leis penais vigentes para os que se opuseram ao regime militar e é exclusiva para aqueles que cometeram crimes políticos e conexos. Mas ainda não resgatamos a verdade e a memória nem fizemos justiça, o que se choca com o ideário de consolidação do Estado democrático de Direito.
O Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece a modernização da legislação para a promoção do direito à memória e à verdade, como diretriz. Revisão imprescindível, pois há muito entulho autoritário, atinente à lei de segurança nacional, aos arquivos secretos etc. No tocante à impunidade dos torturadores, desnecessária a alteração da lei de anistia.
A OAB ingressou em 2008 com ação para que o STF interprete a lei e declare que ela não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, na medida em que aqueles delitos não são considerados políticos, tampouco conexos. O processo está com o procurador-geral da República desde fevereiro de 2009 e, devolvido, o ministro relator, Eros Grau, poderá colocá-lo em julgamento.
A sociedade clama ao Supremo a resposta necessária para a construção da paz. Não aceita a impunidade e não almeja vindita. Encaminha apelo, lançado pelo Comitê contra a Anistia aos Torturadores, assinado, entre outros, por Antonio Candido, Chico Buarque de Holanda, Aloysio Nunes Ferreira, Chico Whitaker, Alberto Silva Franco, Marilena Chaui, Leandro Konder, Hélio Bicudo, Boaventura de Sousa Santos e mais 11 mil pessoas (www.ajd.org.br).
Quer justiça, dentro dos parâmetros da dignidade humana, estabelecidos na Constituição, em convenções e em tratados internacionais.
Os regimes ditatoriais da América Latina adotaram um sistema penal paralelo e subterrâneo. Impuseram penas sem processo, cometeram homicídios, desaparecimentos forçados, torturas, suplícios, sequestros, crimes sexuais, tudo com requintes de crueldade.
Para enfrentar esse legado de violência, vários países já compreenderam o sentido do direito penal internacional. Revelam a verdade, resgatam a memória e examinam as violações ocorridas no período ditatorial à luz da Justiça, e o fazem na perspectiva de que os crimes contra a humanidade protegem bens jurídicos que extrapolam os limites do direito penal nacional e atinge a comunidade internacional. Atinge a humanidade.
É necessário que o passado de violação e impunidade não continue a ser o parâmetro do presente para que possamos consolidar a democracia e, no futuro, viver em um Brasil que não abrace a cultura autoritária de violência no seu dia a dia.
Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus. Crimes que não atingiram apenas aquelas pessoas e povos, mas toda a humanidade.
Sobre a dor e o sangue deles é que foram forjadas as normas internacionais que não admitem a impunidade dos crimes contra a humanidade, que protegem direitos inderrogáveis acolhidos pelo direito internacional, tratando-se de “ius cogens”, normas que vinculam independentemente da vontade dos sujeitos da relação jurídica e que todos os países signatários, como o Brasil, têm a obrigação internacional de investigar e punir -e para os quais não há anistia ou prescrição.
Afirmar que houve anistia para os torturadores é ética e juridicamente insustentável. Fere o patamar civilizatório em que a humanidade se encontra. Justiça! Já não é sem tempo.
*Kenarik Boujikian Felippe é juíza de direito em São Paulo, é co-fundadora e secretária da Associação Juízes para a Democracia.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 9 de janeiro de 2010
Justiça não é revanchismo
Kenarik Boujikian Felippe*
É grotesco falar em “revanchismo”, ato pessoal de desforra por ofensa recebida, em referência à responsabilização dos atos inumanos, catalogados como crimes de lesa-humanidade, praticados por agentes do Estado ou pessoas que atuaram com sua autorização, apoio ou consentimento no período da ditadura instaurada em 1964. Trata-se de tema de Estado, e sua correspondência é justiça.
Acolhido o pleito social e político de necessidade de construção da democracia, sobreveio a Lei da Anistia, que reconheceu a injustiça da situação de fato e da aplicação das leis penais vigentes para os que se opuseram ao regime militar e é exclusiva para aqueles que cometeram crimes políticos e conexos. Mas ainda não resgatamos a verdade e a memória nem fizemos justiça, o que se choca com o ideário de consolidação do Estado democrático de Direito.
O Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece a modernização da legislação para a promoção do direito à memória e à verdade, como diretriz. Revisão imprescindível, pois há muito entulho autoritário, atinente à lei de segurança nacional, aos arquivos secretos etc. No tocante à impunidade dos torturadores, desnecessária a alteração da lei de anistia.
A OAB ingressou em 2008 com ação para que o STF interprete a lei e declare que ela não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, na medida em que aqueles delitos não são considerados políticos, tampouco conexos. O processo está com o procurador-geral da República desde fevereiro de 2009 e, devolvido, o ministro relator, Eros Grau, poderá colocá-lo em julgamento.
A sociedade clama ao Supremo a resposta necessária para a construção da paz. Não aceita a impunidade e não almeja vindita. Encaminha apelo, lançado pelo Comitê contra a Anistia aos Torturadores, assinado, entre outros, por Antonio Candido, Chico Buarque de Holanda, Aloysio Nunes Ferreira, Chico Whitaker, Alberto Silva Franco, Marilena Chaui, Leandro Konder, Hélio Bicudo, Boaventura de Sousa Santos e mais 11 mil pessoas (www.ajd.org.br).
Quer justiça, dentro dos parâmetros da dignidade humana, estabelecidos na Constituição, em convenções e em tratados internacionais.
Os regimes ditatoriais da América Latina adotaram um sistema penal paralelo e subterrâneo. Impuseram penas sem processo, cometeram homicídios, desaparecimentos forçados, torturas, suplícios, sequestros, crimes sexuais, tudo com requintes de crueldade.
Para enfrentar esse legado de violência, vários países já compreenderam o sentido do direito penal internacional. Revelam a verdade, resgatam a memória e examinam as violações ocorridas no período ditatorial à luz da Justiça, e o fazem na perspectiva de que os crimes contra a humanidade protegem bens jurídicos que extrapolam os limites do direito penal nacional e atinge a comunidade internacional. Atinge a humanidade.
É necessário que o passado de violação e impunidade não continue a ser o parâmetro do presente para que possamos consolidar a democracia e, no futuro, viver em um Brasil que não abrace a cultura autoritária de violência no seu dia a dia.
Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus. Crimes que não atingiram apenas aquelas pessoas e povos, mas toda a humanidade.
Sobre a dor e o sangue deles é que foram forjadas as normas internacionais que não admitem a impunidade dos crimes contra a humanidade, que protegem direitos inderrogáveis acolhidos pelo direito internacional, tratando-se de “ius cogens”, normas que vinculam independentemente da vontade dos sujeitos da relação jurídica e que todos os países signatários, como o Brasil, têm a obrigação internacional de investigar e punir -e para os quais não há anistia ou prescrição.
Afirmar que houve anistia para os torturadores é ética e juridicamente insustentável. Fere o patamar civilizatório em que a humanidade se encontra. Justiça! Já não é sem tempo.
*Kenarik Boujikian Felippe é juíza de direito em São Paulo, é co-fundadora e secretária da Associação Juízes para a Democracia.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 9 de janeiro de 2010
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
A substituta de Gilson Dipp no CNJ - a crítica necessária
Enviado por luisnassif, qui, 30/09/2010 - 12:28
Do Estadão
'Sou juíza que teme precisar da Justiça'
Recém-nomeada, a magistrada diz que o Judiciário está '100 anos atrasado' e que espera combater a morosidade do sistema, da qual ela própria se diz vítima
30 de setembro de 2010 | 0h 00
Felipe Recondo / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça
A nova corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, é uma vítima da morosidade do Judiciário brasileiro. Há quatro anos, após a morte de seu pai, ela espera que a Justiça conclua o inventário. Mas, como ela mesma define, este foi mais um caso que caiu nas "teias do Poder Judiciário". Por isso, diz que prefere resolver seus problemas sem a intervenção da Justiça. "Eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça", afirma.
Eliana é responsável por corrigir eventuais desvios dos magistrados e trabalhar justamente para que problemas como a morosidade se resolvam. Ela substitui o ministro Gilson Dipp e terá dois anos de mandato. Dentre os exemplos de morosidade do Judiciário, a ministra cita o julgamento da Lei da Ficha Limpa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que terminou empatado na semana passada. "Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário."
Que imagem a senhora tinha do Judiciário antes de chegar à corregedoria?
Eu sou uma crítica do Poder Judiciário. E seria uma incoerência não vir para a corregedoria num momento em que a vida me permitiu fazer alguma coisa para combater a burocracia que eu critico. Com dez dias apenas de atividade, estou vendo muito mais do que eu sabia. Eu sabia da disfunção, do atraso do Judiciário. Mas aqui tomei consciência de que não existem culpados específicos. Essa disfunção vem da disfunção estatal.
Por que isso ocorre?
Cada Estado tinha uma Justiça absolutamente independente. Eles se organizavam como queriam. Não havia controle das pessoas que organizavam a Justiça. A partir daí pudemos detectar que tínhamos 27 feudos. Tinham independência como Poder e são geridos por grupos de desembargadores que não se alternam no poder. Essas circunstâncias específicas do Poder Judiciário e que a lei estabeleceu (vitaliciedade e inamovibilidade dos magistrados) para dar maior garantia ao jurisdicionado começou a fazer mal ao próprio Judiciário.
Quem é prejudicado por isso?
Toda essa disfunção deságua nas mãos dos jurisdicionados com o atraso dos processos. Estamos 100 anos atrasados em tudo: nos prédios, nos funcionários, nas práticas de serviço público, na informática - ainda existem magistrados que não usam computador ou usam apenas como máquina de escrever. São essas práticas que levam a essa disfunção. E essa disfunção é de um tamanho inacreditável. Só em São Paulo temos 16 milhões de processos. E isso com um custo Brasil imenso. Quando se entra no Judiciário não se tem expectativa de quando se sai, quanto vai custar o processo.
Se for possível resolver uma pendência sem precisar da Justiça, a senhora prefere?
Com certeza. Hoje, eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça. Eu temo precisar da Justiça.
Isso é insolúvel?
Nada é insolúvel. Eu sou extremamente otimista. Agora, nós não resolveremos o Poder Judiciário com menos de 10 anos. Não resolveremos. Porque todos os controles da sociedade, e que estão nas mãos do Judiciário, estão com problemas.
Por exemplo?
A política carcerária. Nós temos problemas gravíssimos. Isso não é só do Judiciário. É do Executivo também. Pelo fato de o Executivo não realizar a política pública necessária, o juiz vai se desinteressando pelos presos pelos quais é responsável. O juiz virou um assinador de papel. Ele assina a carta de guia, manda o preso para a penitenciária e estamos encerrados. Ele não examina, não conduz, não acompanha.
Mas não é possível resolver isso mais rapidamente?
Eu acho que a Justiça só se resolve a longo prazo. Casos episódicos nós podemos resolver. Eu estou com um pedido para São Paulo de alguém que está há 24 anos na Justiça brigando com o irmão. E depois de ganhar em todas as instâncias, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde houve nada mais nada menos que seis embargos de declaração, recursos para que o processo não saísse de dentro do Supremo. Agora, a parte vencida molhou a mão do juiz para que a execução não se complete. Essa é a realidade.
Qual é o tamanho da corrupção do Judiciário?
Num momento em que se tem um órgão esfacelado do ponto de vista administrativo, de funcionalidade, de eficiência, temos um campo fértil para a corrupção. Começa-se a vender facilidades em razão das dificuldades do sistema. Para julgar um processo, às vezes um funcionário, para ajudar alguém, chega para o juiz e pergunta se ele pode julgar determinado processo. Aí vem um bilhetinho de um colega, eu mesmo faço a toda hora: "Na medida do possível dê um pedido de preferência para um baiano aflito que está querendo ser julgado." Essas coisas começam a acontecer. E quem não tem amigo para fazer um bilhetinho para o juiz?
E como se acaba com a corrupção?
Acaba-se com a corrupção na medida em que se possa chegar às causas dessa corrupção. Parte disso é fruto da intimidade indecente entre o público e o privado, entre a atividade judicante e política e a interferência dos políticos nos tribunais. Só se acaba com a corrupção combatendo as causas, não as consequências. Punir os corruptos é como fazer uma barragem para ele não propagar seu comportamento deletério.
E as corregedorias dos Estados funcionam a contento para resolver esses problemas?
Não. Elas nunca funcionaram a contento. O corregedor local, sozinho, não pode fazer muita coisa. Como dizia Aliomar Baleeiro (ex-deputado e ex-ministro do STF): lobo não come lobo. É difícil para um corregedor começar a se rebelar contra seus colegas.
Alguns magistrados, agora no Tocantins, estão dando liminares contra a publicação de matérias contra políticos. O que a senhora acha disso?
Nós sabemos que a transparência é um dos princípios de toda democracia. A notícia naturalmente é benfazeja e está ligada à transparência de toda e qualquer atividade do Estado. A explicação para decisões nesse sentido só pode estar na tentativa de alguém proteger alguém. Eu acredito piamente nisso.
A Lei da Ficha Limpa, que prevê a inelegibilidade de políticos antes da condenação em última instância, é uma reação à morosidade da Justiça?
Sim. E parece que nós colocamos também a Ficha Limpa na morosidade da Justiça. É como se fosse uma teia de aranha. Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário. A prova maior da disfunção do Judiciário está na tramitação desse projeto no Judiciário.
QUEM É
Eliana Calmon Alves nasceu em 5 de novembro de 1944 na capital baiana. Formou-se em direito pela Universidade Federal da Bahia em 1968. Foi juíza federal na seção Judiciária da Bahia no período entre 1979 e 1989 e juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª região entre 1989 e 1999, Assumiu o cargo de ministra do Superior Tribunal de Justiça há 11 anos.
Do Estadão
'Sou juíza que teme precisar da Justiça'
Recém-nomeada, a magistrada diz que o Judiciário está '100 anos atrasado' e que espera combater a morosidade do sistema, da qual ela própria se diz vítima
30 de setembro de 2010 | 0h 00
Felipe Recondo / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça
A nova corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, é uma vítima da morosidade do Judiciário brasileiro. Há quatro anos, após a morte de seu pai, ela espera que a Justiça conclua o inventário. Mas, como ela mesma define, este foi mais um caso que caiu nas "teias do Poder Judiciário". Por isso, diz que prefere resolver seus problemas sem a intervenção da Justiça. "Eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça", afirma.
Eliana é responsável por corrigir eventuais desvios dos magistrados e trabalhar justamente para que problemas como a morosidade se resolvam. Ela substitui o ministro Gilson Dipp e terá dois anos de mandato. Dentre os exemplos de morosidade do Judiciário, a ministra cita o julgamento da Lei da Ficha Limpa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que terminou empatado na semana passada. "Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário."
Que imagem a senhora tinha do Judiciário antes de chegar à corregedoria?
Eu sou uma crítica do Poder Judiciário. E seria uma incoerência não vir para a corregedoria num momento em que a vida me permitiu fazer alguma coisa para combater a burocracia que eu critico. Com dez dias apenas de atividade, estou vendo muito mais do que eu sabia. Eu sabia da disfunção, do atraso do Judiciário. Mas aqui tomei consciência de que não existem culpados específicos. Essa disfunção vem da disfunção estatal.
Por que isso ocorre?
Cada Estado tinha uma Justiça absolutamente independente. Eles se organizavam como queriam. Não havia controle das pessoas que organizavam a Justiça. A partir daí pudemos detectar que tínhamos 27 feudos. Tinham independência como Poder e são geridos por grupos de desembargadores que não se alternam no poder. Essas circunstâncias específicas do Poder Judiciário e que a lei estabeleceu (vitaliciedade e inamovibilidade dos magistrados) para dar maior garantia ao jurisdicionado começou a fazer mal ao próprio Judiciário.
Quem é prejudicado por isso?
Toda essa disfunção deságua nas mãos dos jurisdicionados com o atraso dos processos. Estamos 100 anos atrasados em tudo: nos prédios, nos funcionários, nas práticas de serviço público, na informática - ainda existem magistrados que não usam computador ou usam apenas como máquina de escrever. São essas práticas que levam a essa disfunção. E essa disfunção é de um tamanho inacreditável. Só em São Paulo temos 16 milhões de processos. E isso com um custo Brasil imenso. Quando se entra no Judiciário não se tem expectativa de quando se sai, quanto vai custar o processo.
Se for possível resolver uma pendência sem precisar da Justiça, a senhora prefere?
Com certeza. Hoje, eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça. Eu temo precisar da Justiça.
Isso é insolúvel?
Nada é insolúvel. Eu sou extremamente otimista. Agora, nós não resolveremos o Poder Judiciário com menos de 10 anos. Não resolveremos. Porque todos os controles da sociedade, e que estão nas mãos do Judiciário, estão com problemas.
Por exemplo?
A política carcerária. Nós temos problemas gravíssimos. Isso não é só do Judiciário. É do Executivo também. Pelo fato de o Executivo não realizar a política pública necessária, o juiz vai se desinteressando pelos presos pelos quais é responsável. O juiz virou um assinador de papel. Ele assina a carta de guia, manda o preso para a penitenciária e estamos encerrados. Ele não examina, não conduz, não acompanha.
Mas não é possível resolver isso mais rapidamente?
Eu acho que a Justiça só se resolve a longo prazo. Casos episódicos nós podemos resolver. Eu estou com um pedido para São Paulo de alguém que está há 24 anos na Justiça brigando com o irmão. E depois de ganhar em todas as instâncias, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde houve nada mais nada menos que seis embargos de declaração, recursos para que o processo não saísse de dentro do Supremo. Agora, a parte vencida molhou a mão do juiz para que a execução não se complete. Essa é a realidade.
Qual é o tamanho da corrupção do Judiciário?
Num momento em que se tem um órgão esfacelado do ponto de vista administrativo, de funcionalidade, de eficiência, temos um campo fértil para a corrupção. Começa-se a vender facilidades em razão das dificuldades do sistema. Para julgar um processo, às vezes um funcionário, para ajudar alguém, chega para o juiz e pergunta se ele pode julgar determinado processo. Aí vem um bilhetinho de um colega, eu mesmo faço a toda hora: "Na medida do possível dê um pedido de preferência para um baiano aflito que está querendo ser julgado." Essas coisas começam a acontecer. E quem não tem amigo para fazer um bilhetinho para o juiz?
E como se acaba com a corrupção?
Acaba-se com a corrupção na medida em que se possa chegar às causas dessa corrupção. Parte disso é fruto da intimidade indecente entre o público e o privado, entre a atividade judicante e política e a interferência dos políticos nos tribunais. Só se acaba com a corrupção combatendo as causas, não as consequências. Punir os corruptos é como fazer uma barragem para ele não propagar seu comportamento deletério.
E as corregedorias dos Estados funcionam a contento para resolver esses problemas?
Não. Elas nunca funcionaram a contento. O corregedor local, sozinho, não pode fazer muita coisa. Como dizia Aliomar Baleeiro (ex-deputado e ex-ministro do STF): lobo não come lobo. É difícil para um corregedor começar a se rebelar contra seus colegas.
Alguns magistrados, agora no Tocantins, estão dando liminares contra a publicação de matérias contra políticos. O que a senhora acha disso?
Nós sabemos que a transparência é um dos princípios de toda democracia. A notícia naturalmente é benfazeja e está ligada à transparência de toda e qualquer atividade do Estado. A explicação para decisões nesse sentido só pode estar na tentativa de alguém proteger alguém. Eu acredito piamente nisso.
A Lei da Ficha Limpa, que prevê a inelegibilidade de políticos antes da condenação em última instância, é uma reação à morosidade da Justiça?
Sim. E parece que nós colocamos também a Ficha Limpa na morosidade da Justiça. É como se fosse uma teia de aranha. Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário. A prova maior da disfunção do Judiciário está na tramitação desse projeto no Judiciário.
QUEM É
Eliana Calmon Alves nasceu em 5 de novembro de 1944 na capital baiana. Formou-se em direito pela Universidade Federal da Bahia em 1968. Foi juíza federal na seção Judiciária da Bahia no período entre 1979 e 1989 e juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª região entre 1989 e 1999, Assumiu o cargo de ministra do Superior Tribunal de Justiça há 11 anos.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Magistratura não tem blindagem contra corrupção
ENTREVISTA DA 2ª
GILSON DIPP
fsp
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ÀS VÉSPERAS DE DEIXAR O CARGO DE CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA, MINISTRO DIZ TER FICADO SURPRESO COM AMPLITUDE DE IRREGULARIDADES
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FREDERICO VASCONCELOS
DE SÃO PAULO
A magistratura não tem uma blindagem contra a corrupção, admite o ministro Gilson Dipp, corregedor nacional de Justiça, espécie de fiscal dos juízes. Às vésperas de ser substituído por Eliana Calmon, ele diz que as inspeções do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 17 tribunais mostraram que as "maçãs podres" -os juízes sob suspeição- não eram tão pontuais como ele imaginava. "Isso foi surpreendente, chocante", diz. Nos dois anos em que Dipp foi corregedor, o CNJ puniu 36 magistrados.
Folha - O que mudou no Judiciário com as inspeções do CNJ?
Gilson Dipp - A mudança se deu com a criação do próprio CNJ, hoje uma sigla respeitada. As inspeções e as audiências públicas foram um passo adiante. A inspeção não se restringe ao aspecto disciplinar. É uma radiografia dos tribunais, das varas e dos cartórios.
O que mais o impressionou nessa radiografia?
Me impressionou muito a imensa desigualdade entre os Judiciários federais e os estaduais. A grande maioria dos Judiciários estaduais têm deficit de funcionários, poucos são concursados. Os cargos de comissão geralmente estão concentrados nos tribunais. Muitas vezes o juiz do interior é abandonado, com funcionários cedidos pelo município sem nenhum preparo específico.
Qual foi a irregularidade que mais o surpreendeu?
O que me impressionou foi uma prática recorrente em alguns Estados, não estou generalizando: a liberação de altos valores em cautelares, medidas liminares em detrimento de grandes empresas e grandes bancos, a favor de pseudo credores basicamente insolventes e sem qualquer garantia de caução. É um total desvirtuamento da autonomia do juiz. Um verdadeiro abuso de poder.
Nas inspeções nos Estados, o sr. encontrou mais "maçãs podres" do que imaginava?
Sim. Nós imaginávamos que os casos de "maçãs podres" eram muito pontuais. Na verdade, não foram tão pontuais assim. Isso foi surpreendente, chocante. Mostrou a todos nós que a magistratura não tem uma blindagem contra atos de corrupção e irregularidades.
Em 2007, o sr. disse que caiu o mito do juiz intocável. E os tribunais que não cumprem determinações do CNJ?
Os tribunais sempre foram ilhas desconhecidas e intocáveis. Quando tiveram que prestar contas das atividades administrativas, orçamentárias e disciplinares a um órgão de coordenação nacional, a reação foi grande. Hoje a resistência é pequena. Alguns tribunais eram compostos de barões, duques, fidalgos, e com um rei a cada dois anos. Esse mito está caindo.
Foi difícil afastar o juiz federal Weliton Militão dos Santos [da Operação Pasárgada]?
O CNJ tomou uma decisão unânime, muito consciente e baseada nas provas existentes. Não fez mais do que sua obrigação e nada que fosse difícil. Na verdade, os tribunais ainda têm muitas dificuldades de tocar processos administrativos disciplinares para eventuais punições de seus integrantes. Sobre os mesmos fatos apreciados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região [que apenas censurou o juiz], o CNJ chegou a uma decisão diametralmente oposta. É o papel do CNJ e é a sua obrigação.
Foi difícil aposentar o ministro Paulo Medina, do STJ, juiz prestigiado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais?
É sempre muito penoso ser o relator de um processo que investiga um colega de tribunal. No caso, houve a decisão unânime do colegiado de penalizá-lo com a aposentadoria compulsória. Eu e meus colegas do conselho não fazemos isso sem traumatismos. É um colega que eu conhecia há muitos anos. Mas ou assumo a condição de corregedor ou temos que reconhecer que o CNJ não é capaz de tomar decisões drásticas.
A aposentadoria compulsória é um prêmio ou uma pena sem condenação definitiva?
É a pena mais grave prevista na atual lei da magistratura. Ela não é um prêmio. A pecha que recai sobre o magistrado o atinge como pessoa, com atribuições de honra e de cidadania. Não estou falando do caso específico, mas quando se aposenta o juiz está se retirando o magistrado do local que lhe propiciava as práticas de atos irregulares. Isso não é pouco.
Para alguns juízes, o CNJ extrapola sua competência ao entrar em decisões judiciais.
O CNJ jamais entra na autonomia do juiz. Salvo quando a decisão revela abuso de poder. Há inúmeras apurações a pedido dos próprios tribunais, porque eles não tinham autoridade de fazer um procedimento disciplinar. O CNJ não extrapola. O ideal seria não haver irregularidade por parte de juízes.
O fato de o ministro Celso de Mello, do STF, determinar que voltassem ao cargo dez juízes aposentados pelo CNJ compromete o conselho?
Absolutamente. É um caso pontual em que houve o afastamento de dez magistrados. É uma decisão ainda provisória, proferida isoladamente. Não vejo como essa decisão comprometa a autonomia do CNJ. O processo veio para cá a pedido do próprio corregedor do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Mas isso são percalços que o CNJ está correndo, já correu e vai correr. Há decisões muitas vezes incompreendidas, porque estamos aqui no chão, no front, e não fechados em gabinetes.
O ministro Dias Toffoli afirmou que o CNJ atropelou os princípios da ampla defesa e do contraditório, no caso do "auxílio-voto" para juízes convocados pelo TJ-SP.
Confesso que não vi a decisão. Parece que se discutia a possibilidade de os juízes que receberam o "auxílio-voto" fazerem a devolução desses valores, e que eles não foram intimados. Acho que a decisão não desvirtua e não afronta o CNJ. Às vezes erramos e podemos sofrer o crivo e, ainda bem, apenas do STF.
O ministro Cezar Peluso mantém a disposição do antecessor, Gilmar Mendes, de apoiar as inspeções?
Ele sempre manifestou a intenção de ser bem intransigente com todos os deslizes administrativos e disciplinares. Sempre recebemos todo o apoio dele. As inspeções e audiências tendem a diminuir. Já sabemos os problemas recorrentes da magistratura. As inspeções no futuro, serão pontuais para apurar determinados fatos, mesmo com alguma amplitude. Não serão inspeções que deslocam muitos funcionários.
A atuação do CNJ será mantida pela nova corregedora, ministra Eliana Calmon?
Tenho absoluta confiança que ela vai desenvolver um trabalho eficiente. Não só pela sua postura, como também pelas manifestações que tem feito dar continuidade ao trabalho que foi iniciado. O aprimoramento do Judiciário é um caminho sem volta.
GILSON DIPP
fsp
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ÀS VÉSPERAS DE DEIXAR O CARGO DE CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA, MINISTRO DIZ TER FICADO SURPRESO COM AMPLITUDE DE IRREGULARIDADES
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FREDERICO VASCONCELOS
DE SÃO PAULO
A magistratura não tem uma blindagem contra a corrupção, admite o ministro Gilson Dipp, corregedor nacional de Justiça, espécie de fiscal dos juízes. Às vésperas de ser substituído por Eliana Calmon, ele diz que as inspeções do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 17 tribunais mostraram que as "maçãs podres" -os juízes sob suspeição- não eram tão pontuais como ele imaginava. "Isso foi surpreendente, chocante", diz. Nos dois anos em que Dipp foi corregedor, o CNJ puniu 36 magistrados.
Folha - O que mudou no Judiciário com as inspeções do CNJ?
Gilson Dipp - A mudança se deu com a criação do próprio CNJ, hoje uma sigla respeitada. As inspeções e as audiências públicas foram um passo adiante. A inspeção não se restringe ao aspecto disciplinar. É uma radiografia dos tribunais, das varas e dos cartórios.
O que mais o impressionou nessa radiografia?
Me impressionou muito a imensa desigualdade entre os Judiciários federais e os estaduais. A grande maioria dos Judiciários estaduais têm deficit de funcionários, poucos são concursados. Os cargos de comissão geralmente estão concentrados nos tribunais. Muitas vezes o juiz do interior é abandonado, com funcionários cedidos pelo município sem nenhum preparo específico.
Qual foi a irregularidade que mais o surpreendeu?
O que me impressionou foi uma prática recorrente em alguns Estados, não estou generalizando: a liberação de altos valores em cautelares, medidas liminares em detrimento de grandes empresas e grandes bancos, a favor de pseudo credores basicamente insolventes e sem qualquer garantia de caução. É um total desvirtuamento da autonomia do juiz. Um verdadeiro abuso de poder.
Nas inspeções nos Estados, o sr. encontrou mais "maçãs podres" do que imaginava?
Sim. Nós imaginávamos que os casos de "maçãs podres" eram muito pontuais. Na verdade, não foram tão pontuais assim. Isso foi surpreendente, chocante. Mostrou a todos nós que a magistratura não tem uma blindagem contra atos de corrupção e irregularidades.
Em 2007, o sr. disse que caiu o mito do juiz intocável. E os tribunais que não cumprem determinações do CNJ?
Os tribunais sempre foram ilhas desconhecidas e intocáveis. Quando tiveram que prestar contas das atividades administrativas, orçamentárias e disciplinares a um órgão de coordenação nacional, a reação foi grande. Hoje a resistência é pequena. Alguns tribunais eram compostos de barões, duques, fidalgos, e com um rei a cada dois anos. Esse mito está caindo.
Foi difícil afastar o juiz federal Weliton Militão dos Santos [da Operação Pasárgada]?
O CNJ tomou uma decisão unânime, muito consciente e baseada nas provas existentes. Não fez mais do que sua obrigação e nada que fosse difícil. Na verdade, os tribunais ainda têm muitas dificuldades de tocar processos administrativos disciplinares para eventuais punições de seus integrantes. Sobre os mesmos fatos apreciados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região [que apenas censurou o juiz], o CNJ chegou a uma decisão diametralmente oposta. É o papel do CNJ e é a sua obrigação.
Foi difícil aposentar o ministro Paulo Medina, do STJ, juiz prestigiado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais?
É sempre muito penoso ser o relator de um processo que investiga um colega de tribunal. No caso, houve a decisão unânime do colegiado de penalizá-lo com a aposentadoria compulsória. Eu e meus colegas do conselho não fazemos isso sem traumatismos. É um colega que eu conhecia há muitos anos. Mas ou assumo a condição de corregedor ou temos que reconhecer que o CNJ não é capaz de tomar decisões drásticas.
A aposentadoria compulsória é um prêmio ou uma pena sem condenação definitiva?
É a pena mais grave prevista na atual lei da magistratura. Ela não é um prêmio. A pecha que recai sobre o magistrado o atinge como pessoa, com atribuições de honra e de cidadania. Não estou falando do caso específico, mas quando se aposenta o juiz está se retirando o magistrado do local que lhe propiciava as práticas de atos irregulares. Isso não é pouco.
Para alguns juízes, o CNJ extrapola sua competência ao entrar em decisões judiciais.
O CNJ jamais entra na autonomia do juiz. Salvo quando a decisão revela abuso de poder. Há inúmeras apurações a pedido dos próprios tribunais, porque eles não tinham autoridade de fazer um procedimento disciplinar. O CNJ não extrapola. O ideal seria não haver irregularidade por parte de juízes.
O fato de o ministro Celso de Mello, do STF, determinar que voltassem ao cargo dez juízes aposentados pelo CNJ compromete o conselho?
Absolutamente. É um caso pontual em que houve o afastamento de dez magistrados. É uma decisão ainda provisória, proferida isoladamente. Não vejo como essa decisão comprometa a autonomia do CNJ. O processo veio para cá a pedido do próprio corregedor do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Mas isso são percalços que o CNJ está correndo, já correu e vai correr. Há decisões muitas vezes incompreendidas, porque estamos aqui no chão, no front, e não fechados em gabinetes.
O ministro Dias Toffoli afirmou que o CNJ atropelou os princípios da ampla defesa e do contraditório, no caso do "auxílio-voto" para juízes convocados pelo TJ-SP.
Confesso que não vi a decisão. Parece que se discutia a possibilidade de os juízes que receberam o "auxílio-voto" fazerem a devolução desses valores, e que eles não foram intimados. Acho que a decisão não desvirtua e não afronta o CNJ. Às vezes erramos e podemos sofrer o crivo e, ainda bem, apenas do STF.
O ministro Cezar Peluso mantém a disposição do antecessor, Gilmar Mendes, de apoiar as inspeções?
Ele sempre manifestou a intenção de ser bem intransigente com todos os deslizes administrativos e disciplinares. Sempre recebemos todo o apoio dele. As inspeções e audiências tendem a diminuir. Já sabemos os problemas recorrentes da magistratura. As inspeções no futuro, serão pontuais para apurar determinados fatos, mesmo com alguma amplitude. Não serão inspeções que deslocam muitos funcionários.
A atuação do CNJ será mantida pela nova corregedora, ministra Eliana Calmon?
Tenho absoluta confiança que ela vai desenvolver um trabalho eficiente. Não só pela sua postura, como também pelas manifestações que tem feito dar continuidade ao trabalho que foi iniciado. O aprimoramento do Judiciário é um caminho sem volta.
Fábio Comparato critica a justiça brasileira e os poderosos
A BALANÇA E A ESPADA
Fábio Konder Comparato*
Tradicionalmente, a deusa greco-romana da justiça é representada pela figura de uma mulher, portando em uma mão a balança e na outra a espada. A simbologia é clara: nos processos judiciais, o órgão julgador deve sopesar criteriosamente as razões das partes em litígio antes de proferir a sentença, a qual se impõe a todos, se necessário pelo uso da força.
Entre nós, porém, a realidade judiciária não corresponde a esse modelo consa-grado. Aqui, nas causas que envolvem relações de poder, com raríssimas exceções, os juizes prejulgam os litígios antes de apurar o peso respectivo dos argumentos contradi-toriamente apresentados; e assim procedem, frequentemente, sob a pressão, explícita ou mal disfarçada, dos que detêm o poder político ou econômico. A verdade incômoda é que, entre nós, a balança da Justiça está amiúde a serviço da espada, e esta é empunhada por personagens que não revestem a toga judiciária.
O julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, concluido pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de abril de 2010, constitui um dos me-lhores exemplos dessa triste realidade.
O fundamentos da petição inicial
Na peça inicial da demanda, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao tribunal que interpretasse os dispositivos da Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Arguiu que a expressão “crimes conexos”, acoplada à de “crimes políticos”, não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão de que a conexão criminal pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas, e que ninguém em sã consciência poderia sustentar que os agentes, militares e civis, que defendiam o regime político então em vigor, atuassem em harmonia com os que o combatiam.
Arguiu, demais disso, que ainda que se admitisse ser a conexão criminal cabível entre pessoas que agiram umas contra as outras – o que é simples regra de competência no processo penal, e não uma norma de direito penal substancial (Código de Processo Penal, art. 76, I, in fine) –, essa hipótese seria de todo excluida no caso, pois os autores de crimes políticos, durante o regime militar, agiram contra a ordem política e não pes-soalmente contra os agentes públicos que os torturaram e mataram.
Arguiu, finalmente, a OAB que, mesmo que dita lei fosse interpretada como havendo anistiado os torturadores de presos políticos durante aquele período, ela teria sido revogada, de pleno direito, com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, inciso XLIII, considerou expressamente a tortura um crime inafiançável e insus-cetível de graça e anistia.
As razões do acórdão
A essas razões de pedir, a maioria vencedora no tribunal respondeu de duas ma-neiras.
O relator invocou a noção germânica de “lei-provimento” (Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos imediatos e irreversíveis. Das duas, uma: ou aquele julgador desconhece o sentido do conceito técnico por ele invocado; ou tem perfeita ciência do que significa a expressão, e resolveu utilizá-la unicamente para impressionar a platéia.
Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e provimento ad-ministrativo (em alemão, Verwaltungsmassnahme); a primeira geral e abstrata, o se-gundo concreto e específico. Foi com base nessa distinção tradicional que Ernst Fort-shoff, após a Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo crescimento do poder nor-mativo das autoridades governamentais, máxime na implementação do Plano Marshall de reconstrução da Europa, passou a denominar Massnahmegesetze normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os traba-lhos de modernização de ferrovias.
O deprimente em toda essa estória é que o Ministro relator, ao mesmo tempo em que, na esteira da Procuradoria-Geral da República, considerou enfaticamente que a anistia dos crimes cometidos pelos agentes públicos contra oponentes políticos fora um “acordo histórico”, sustentou que ele nada mais seria, afinal, do que um simples provi-mento administrativo.
De qualquer modo, pretender que a Lei nº 6.683 teve efeitos imediatos e irrever-síveis constitui grosseiro sofisma, por dois singelos motivos. Em primeiro lugar, porque a premissa maior do silogismo já é a sua conclusão (vício lógico denominado petição de princípio); ou seja, a possibilidade de se reconhecer a conexão criminal entre delitos praticados com objetivos ou propósitos contraditórios. Em segundo lugar, porque, ao assim se exprimir, o magistrado demonstrou ignorar o fato óbvio de que os alegados efeitos imediatos de uma lei de anistia não podem estender-se a crimes continuados (como o de ocultação de cadáver), cujos autores permanecem no anonimato.
A segunda via de refutação das razões apresentadas na petição inicial foi também trilhada pelo relator, neste ponto pressurosamente acompanhado pela ministra que o sucedeu na ordem de votação. Entendeu, assim, o relator de desconsiderar o teor literal do pedido formulado na petição inicial, para sustentar que a demanda não objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o que só o Poder Legislativo tem competência para fazer.
É fartamente conhecida a distinção, de que o relator do acórdão usa e abusa, en-tre norma e texto normativo. Como o hábito do cachimbo deixa a boca torta, Sua Exce-lência resolveu aplicar o discrime à própria petição inicial da demanda. A arguente, a-firmou ele, posto haver pedido literalmente ao Tribunal que interpretasse a Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais Constituição Federal de 1988, objetivou, na verdade, alcançar com a demanda uma alteração legislativa substancial. Que se saiba, em nenhum país do mundo incluiu-se na competência jurisdicional a faculdade de psi-canalisar as partes demandantes, a fim de descobrir, por trás de suas declarações em juizo, intenções recalcadas no subconsciente. Teríamos admitido isso entre nós por meio de alguma Massnahmegesetz secreta?
O realmente curioso é que nenhum dos julgadores tenha se lembrado de que, quase um ano antes, dia por dia, ou seja, em 29 de abril de 2009, o mesmo tribunal de-cidira que a Constituição Federal havia revogado de pleno direito a lei de imprensa de 1967, promulgada doze anos antes da lei de anistia. Nesse outro julgado, o Supremo Tribunal Federal declarou interpretar a lei à luz dos preceitos fundamentais da Constitu-ição Federal. Dois pesos e duas medidas para a mesma balança?
Tudo isso, sem falarmos no fato – gravíssimo – de que a decisão proferida pela nossa mais alta Corte de Justiça, ao julgar a ADPF nº 153, violou abertamente preceitos fundamentais do direito internacional.
Ressalte-se, em primeiro lugar, que o assassínio, a tortura e o estupro de presos, quando praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos, são considerados, desde o término da Segunda Guerra Mundial, crimes contra a humani-dade; o que significa que o legislador nacional é incompetente para determinar, em re-lação a eles, quer a anistia, quer a prescrição.
Com efeito, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, definiu como crimes contra a humanidade, em seu art. 6, alínea c, os seguintes atos:
“o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições, constituindo ou não uma violação do direito in-terno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em conse-quência de todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou co-nexo com esse crime.”
Essa definição foi depois reproduzida no Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio de 1946, que julgou os criminosos de guerra japoneses.
Em 3 de fevereiro e 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pelas Resoluções nº 3 e 95 (I), confirmou “os princípios de direito internacio-nal reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse tribu-nal”.
Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Re-solução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilida-de dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados.
O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humanidade, e acrescentou ao elenco uma modali-dade genérica: “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencional-mente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”. Estabeleceu como condição de punibilidade que tais atos criminosos sejam cometidos “no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer popu-lação civil, havendo conhecimento desse ataque”; o que bem corresponde ao regime político repressivo vigente entre nós entre 1964 e 1985.
Desse conjunto normativo decorre a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano. Nesse sentido, com efeito, indiretamente ofendida pelo crime é toda a humanidade. Eis porque, como dito acima, ao legislador nacional carece toda competência para regular, nessa matéria, a anistia ou a prescrição.
Repita-se que a Assembléia Geral das Nações Unidas, nas duas citadas Resolu-ções de 1946, considerou que a conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de direito internacional.
Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para declarar a inconsti-tucionalidade de leis e outros atos normativos, foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Marbury v. Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição norte-americana?
A razão desse regime jurídico diverso é que a fonte dos princípios, sobretudo em matéria de direitos humanos, não reside na lei positiva ou na convenção internacional, mas na consciência ética da humanidade. É por isso que a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros, decor-rentes do regime e dos princípios por ela adotados” (art. 5º, 2º).
No plano do direito internacional, por fim, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 53, veio dar à noção de princípio geral de direito, sob a denominação de norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), uma noção precisa, que se aplica cabalmente à repressão dos crimes contra a humanidade:
É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma nor-ma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Con-venção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu con-junto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma na-tureza.
Não foi apenas essa, porém, a violação praticada pelo Supremo Tribunal Federal contra os preceitos fundamentais de direitos humanos, reconhecidos internacionalmente.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em reiteradas decisões, já fixou jurisprudência no sentido da nulidade absoluta das leis de auto-anistia. Será preciso lembrar, nesta altura da evolução jurídica, que em um Estado de Direito os governantes não podem isentar-se, a si próprios e a seus colaboradores, de responsabilidade alguma por delitos que tenham praticado?
Pois bem, diante da invocação desse princípio irrefutável, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não se inclui nessa proibição categórica, pois ela teria configurado uma anistia bilateral de governan-tes e governados. Ou seja, segundo essa preciosa interpretação, torturadores e tortura-dos, em uma espécie de contrato de intercâmbio (do ut des), teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…
Na verdade, essas surpreendentes declarações de voto casaram-se com a principal razão apresentada, não só pelo grupo vencedor, mas também pela Procuradoria-Geral da República, para considerar legítima e honesta a anistia de assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos durante o regime militar: ela teria sido fruto de um “histórico” acordo político.
Frise-se, desde logo, a repugnante imoralidade de um pacto dessa natureza: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios inte-ressados. O relator, citando Hartmann (evidentemente em alemão), não encontrou me-lhor argumento para responder a essa objeção do que afirmar que a propositura da de-manda representara a ocorrência de uma “tirania dos valores”! É de se perguntar se Sua Excelência julga a ela preferível o deboche ético e institucional do regime político da época.
Seja como for, o propalado “acordo histórico” de anistia dos crimes atrozes pra-ticados pelos agentes da repressão não passou de uma rasteira conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. Senão, vejamos.
Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem esta-ria do outro lado? Certamente não a oposição parlamentar, pois o projeto de lei de anis-tia foi aprovado na Câmara dos Deputados (onde não havia parlamentares “biônicos”, como no Senado) por apenas 5 (cinco) votos: 206 a 201. Pergunta-se: as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram, porventura, chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo?
O mais escandaloso de toda essa farsa de acordo político é que, após a promul-gação da Lei nº 6.683, em 28 de agosto de 1979, os militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial militar aberto em consequência, vítimas e não autores! E – pasme o leitor – tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fun-damento na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como termo final do lapso tempo-ral da anistia, a data de 15 de agosto de 1979.
Tais fatos estarrecedores assinalam mais uma escandalosa contradição na leitura feita pelo tribunal dessa mesma lei.
É que o § 2º do seu art. 1º excetuou “dos benefícios da anistia os que foram con-denados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Ou seja, na interpretação do Supremo Tribunal Federal, o terrorismo, o sequestro e o aten-tado pessoal são ações criminosas, tão-só quando praticadas por adversários do regime militar, não quando cometidos pelos agentes públicos da repressão. E não se venha jus-tificar essa afirmação escandalosa, com o argumento literal de que nenhum destes últi-mos foi condenado por tais crimes, pois durante todo o regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1964, todos, absolutamente todos os governantes e seus sequazes, tanto civis quanto militares, gozaram da mais completa irresponsabilidade. Eles pairavam acima das leis e das “constituições”, que eles próprios redigiam e promulgavam.
Em suma, como salientou Napoleão – não o grande general francês, mas o dita-dor suino de Animal Farm, de George Orwell –, em nosso querido país “todos são iguais perante a lei; alguns, porém, são mais iguais do que os outros”.
Lições de um triste veredicto
Em matéria de regimes políticos, é preciso separar o substantivo do adjetivo. A oligarquia e a democracia pertencem à primeira categoria, o Estado de Direito à segunda.
Em certa passagem de seu tratado sobre a política (1298 a, 1-4), Aristóteles ob-serva que toda politéia, ou seja, aquilo que poderíamos denominar Constituição subs-tancial, deve regular três questões fundamentais: 1) quem é titular do poder supremo (kýrion), com competência para deliberar sobre o bem comum de todos (peri tôn koinôn): 2) quem pode exercer a função de governante (arkhôn) e qual a sua competência; 3) quem deve assumir o poder de julgar (ti to dikázon).
Dessas três questões fundamentais destacadas pelo filósofo, as duas primeiras pertencem ao plano substantivo, a última ao adjetivo. Com efeito, qualquer que seja o regime político – que se define justamente pela titularidade da soberania e a forma de governo –, pode ou não haver a submissão do soberano e dos governantes à ordem jurídica. Hoje, é comum presumir-se que toda democracia é um Estado de Direito. Esquecemo-nos, ao assim pensar, que a democracia ateniense, não raras vezes, descambou para a “okhlocracia” (de okhlos, ralé, populacho), onde a maioria pobre, logo após a tomada do poder, não hesitava em exilar, confiscar e, no limite, exterminar a minoria rica.
Ora, a função constitucional do Judiciário, desde sempre, consiste em ser ele o garante máximo da submissão de todos os titulares de poder – inclusive o próprio sobe-rano! – ao império do Direito. Por isso mesmo, juizes e tribunais, segundo a boa con-cepção da república romana, não têm propriamente poder (potestas, imperium). Mon-tesquieu, no famoso capítulo 6 do livro XI de O Espírito das Leis, após descrever a ar-quitetura constitucional tripartida da Inglaterra, anotou: “des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”.
Faltou, porém, dizer que se o Judiciário não tem propriamente poder – no sentido de dispor legitimamente de força própria –, ele deve possuir aquela qualidade política eminente, que os romanos denominavam auctoritas; vale dizer, o prestígio moral que dignifica uma pessoa ou uma instituição, suscitando a confiança e o respeito no seio do povo.
Sucede que neste “florão da América” o Judiciário nunca gozou da confiança popular. Em 2007, uma pesquisa de opinião pública realizada por CNT/Sensus sobre o grau de confiança das diferentes instituições, públicas ou privadas, em nosso país, reve-lou que apenas 9,5% dos entrevistados confiavam na Justiça. Juizes e tribunais só esta-vam acima dos governos (5%), da polícia (3,4%) e do Congresso Nacional (1,1%). Na-quele mesmo ano, a Associação de Magistrados Brasileiros divulgou outra pesquisa, realizada segundo critérios diversos pela Opinião Consultoria. De acordo com esse úl-timo levantamento de opinião pública, o Poder Judiciário gozaria da confiança de menos da metade da população brasileira, ou, mais exatamente, 41,8%.
Ora, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o âmbito dos efeitos da lei de anistia de 1979, além de em nada contribuir para minorar essa desconfiança popular nos órgãos da Justiça, representou certamente um golpe profundo no grau de credibilidade do Judiciário brasileiro no plano internacional, em matéria de direitos humanos.
Com efeito, de todos os paises sul-americanos, o Brasil é hoje o único que se recusa a levantar a total impunidade de governantes e seus subordinados, pelos crimes violentos praticados durante o período de regime político autoritário. Em estudo recen-te, Anthony W. Pereira mostrou como essa situação escandalosa, quando comparada com as severas condenações judiciais sofridas na Argentina e no Chile pelos governantes – inclusive ex-chefes de Estado! –, durante o regime de exceção, tem sua causa na infamante colaboração que entre nós se estabeleceu, no mesmo período, entre a magis-tratura e os chefes militares. Naqueles paises, a Justiça foi posta de lado pelos militares em sua ação repressiva. Aqui, a competência da Justiça Militar foi ampliada, para abarcar os crimes contra a ordem pública e a segurança nacional, ainda que cometidos por civis. Suspenderam-se o habeas-corpus e as garantias da magistratura, e três Ministros do Supremo Tribunal Federal foram afastados pelo então chefe de Estado. Mas o Judiciário continuou a funcionar como se nada tivesse acontecido. Estávamos numa “democracia à brasileira”, como disse o general que prendeu o grande advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou dizendo que só conhecia “peru à brasileira”.
Para que possamos, portanto, instaurar neste país um verdadeiro Estado de Direi-to, impõe-se realizar, o quanto antes, uma reforma em profundidade do Poder Judiciário.
Ela deve centrar-se na garantia de completa independência de juizes e tribunais em relação aos demais órgãos do Estado, combinada com a instituição de eficientes con-troles da atuação do Judiciário, em todos os níveis.
O costume institucional brasileiro, oriundo de uma longa tradição portuguesa, mantém a Justiça sob a influência avassaladora dos governantes. Não foi, pois, surpre-endente verificar que, no caso objeto destes comentários, a espada militar interferiu des-pudoradamente no funcionamento da balança judicial.
Importa, pois, antes de tudo, libertar o Judiciário – e da mesma forma o Ministé-rio Público – da velha hegemonia que sobre eles sempre exerceu o mal chamado Poder Executivo.
É indispensável e urgente eliminar o poder atribuido aos chefes de governo de nomear os integrantes da magistratura nos tribunais. O que se tem visto ultimamente, sobretudo no preenchimento de vagas no Supremo Tribunal Federal, é um prélio acirrado entre dezenas de candidatos à nomeação, disputando as boas graças do chefe do Exe-cutivo, sendo certo que a aprovação das indicações presidenciais pelo Senado Federal é mera formalidade. Nessa peleja pessoal, o que menos conta são os princípios éticopolí-ticos. O principal trunfo de cada candidato consiste em “ser amigo do rei”, ou pelo me-nos contar com o apoio direto de um dos próximos de sua majestade. Escusa dizer que os assim nomeados ficam sempre submetidos ao poder dominante daquele, graças ao qual passaram a ocupar o alto posto judiciário.
Ainda no campo da necessária independência do Poder Judiciário, impõe-se a eliminação, o quanto antes, da Justiça Militar, em razão de seu caráter essencialmente corporativo. Aliás, durante todo o longo período autoritário, como frisou o autor acima referido, a Justiça castrense colaborou fielmente com os responsáveis pela política de terrorismo de Estado.
Outra nefasta tradição brasileira é a irresponsabilidade de fato dos magistrados. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, os únicos controles de iure, sobre eles existentes, eram exercidos no campo penal dentro do próprio Poder Ju-diciário, por iniciativa do Ministério Público; e em matéria financeira, pelos Tribunais de Contas. Mas tais controles sempre tiveram uma eficácia muito reduzida.
A referida emenda constitucional, ao criar o Conselho Nacional de Justiça, foi um primeiro passo no sentido de se instaurar um regime de efetiva responsabilização dos magistrados. É preciso agora avançar nesse rumo, por meio de várias providências, a saber: 1) tornar o Conselho um órgão efetivamente externo ao Poder Judiciário; 2) submeter à necessária fiscalização do órgão o próprio Supremo Tribunal Federal, que permanece ainda imune a todo controle; 3) dar ao Conselho poderes de punição severa e exemplar dos magistrados que delinquem (recentemente, como se recorda, um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, julgado responsável pela venda de decisões, foi sim-plesmente aposentado com vencimentos integrais); 4) desdobrar o Conselho em órgãos regionais, de modo a dar-lhe maior capacidade de atuação local.
Tudo isso diz respeito ao controle por assim dizer horizontal. Importa, porém, instituir também uma fiscalização vertical, fazendo com que o próprio povo participe da função de vigilância da atuação do Poder Judiciário. Sem isto, com efeito, a soberania popular tende a ser, nesse particular como em vários outros setores, meramente retórica.
A Constituição do Império de 1824 tinha, a esse respeito, uma disposição avan-çada, não reproduzida por nenhuma das Cartas Políticas subsequentes. Dispunha o seu art. 157 que “por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles (Juizes de Direito) ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixo-so, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida em Lei”. Não se tem notícia do uso efetivo dessa ação popular, mas é inegável que, pelo simples fato de existir, era ela, em si mesma, um instrumento de real pedagogia política. Convém, pois, recriá-la, aperfeiçoando os seus contornos.
Além disso, seria de grande importância instituir ouvidorias populares dos órgãos da Justiça, em todos os níveis, com competência para exigir explicações oficiais sobre a atuação administrativa dos magistrados. O Judiciário tem sido tradicionalmente, aos olhos do povo, o mais hermético de todos os Poderes do Estado. É inútil procurar reduzir a desconfiança dos jurisdicionados em relação aos juizes, se entre uns e outros continuarmos a manter uma linha divisória intransponível.
Toda essa reforma institucional, no entanto, será vã, caso não logremos mudar a mentalidade de nossos magistrados, a qual, sob a aparência de fiel adesão ao princípio republicano e ao ideal democrático, permanece de fato essencialmente oligárquica e subserviente aos “donos do poder”.
Sem dúvida, temos de reconhecer que, ultimamente, algum progresso foi alcan-çado. Basta lembrar a fundação, há alguns anos, da Associação Juizes para a Democra-cia, que por sinal ingressou como amica curiae ao lado da OAB, no processo da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal. Mas não se há de ignorar que a mudança de men-talidades coletivas só se alcança por força de um trabalho sistemático e prolongado de educação: no caso, especificamente, de educação ética e política, centrada nos direitos humanos.
À guisa de conclusão
“Quem é o juiz do Supremo Tribunal Federal?”, perguntou Rui Barbosa . E res-pondeu: “Um só é possível reconhecer: a opinião pública, o sentimento nacional”.
Essa respeitável opinião, certamente válida na época em que foi emitida, já não é hoje admissível.
No início do século passado, a opinião pública era formada em grande parte, entre nós, pelas manifestações publicadas na imprensa, que não se achava, então, sub-metida a poder algum, estatal ou privado. Hoje, porém, o conjunto dos meios de comu-nicação de massa, ou seja, não apenas a imprensa, mas também o rádio e a televisão, estão sujeitos à dominação de um oligopólio empresarial, que representa um dos maiores sustentáculos do regime oligárquico. Não foi por outra razão que o julgamento pro-nunciado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da lei de anistia de 1979, salvo raras e honrosas exceções, não mereceu nenhuma reprovação no conjunto dos meios de co-municação social.
Mas há ainda outra razão para se recusar o alvitre de Rui Barbosa acima lembra-do. A partir da segunda metade do século XX, criou-se um sistema supra-estatal de pro-teção dos direitos humanos, consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido à jurisdição da citada Corte.
Temos, pois, hoje, um juiz internacionalmente reconhecido do nosso tribunal supremo. Doravante, o poder da espada já não é capaz de desequilibrar, impunemente, a balança da Justiça.
Fábio Konder Comparato*
Tradicionalmente, a deusa greco-romana da justiça é representada pela figura de uma mulher, portando em uma mão a balança e na outra a espada. A simbologia é clara: nos processos judiciais, o órgão julgador deve sopesar criteriosamente as razões das partes em litígio antes de proferir a sentença, a qual se impõe a todos, se necessário pelo uso da força.
Entre nós, porém, a realidade judiciária não corresponde a esse modelo consa-grado. Aqui, nas causas que envolvem relações de poder, com raríssimas exceções, os juizes prejulgam os litígios antes de apurar o peso respectivo dos argumentos contradi-toriamente apresentados; e assim procedem, frequentemente, sob a pressão, explícita ou mal disfarçada, dos que detêm o poder político ou econômico. A verdade incômoda é que, entre nós, a balança da Justiça está amiúde a serviço da espada, e esta é empunhada por personagens que não revestem a toga judiciária.
O julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, concluido pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de abril de 2010, constitui um dos me-lhores exemplos dessa triste realidade.
O fundamentos da petição inicial
Na peça inicial da demanda, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao tribunal que interpretasse os dispositivos da Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Arguiu que a expressão “crimes conexos”, acoplada à de “crimes políticos”, não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão de que a conexão criminal pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas, e que ninguém em sã consciência poderia sustentar que os agentes, militares e civis, que defendiam o regime político então em vigor, atuassem em harmonia com os que o combatiam.
Arguiu, demais disso, que ainda que se admitisse ser a conexão criminal cabível entre pessoas que agiram umas contra as outras – o que é simples regra de competência no processo penal, e não uma norma de direito penal substancial (Código de Processo Penal, art. 76, I, in fine) –, essa hipótese seria de todo excluida no caso, pois os autores de crimes políticos, durante o regime militar, agiram contra a ordem política e não pes-soalmente contra os agentes públicos que os torturaram e mataram.
Arguiu, finalmente, a OAB que, mesmo que dita lei fosse interpretada como havendo anistiado os torturadores de presos políticos durante aquele período, ela teria sido revogada, de pleno direito, com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, inciso XLIII, considerou expressamente a tortura um crime inafiançável e insus-cetível de graça e anistia.
As razões do acórdão
A essas razões de pedir, a maioria vencedora no tribunal respondeu de duas ma-neiras.
O relator invocou a noção germânica de “lei-provimento” (Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos imediatos e irreversíveis. Das duas, uma: ou aquele julgador desconhece o sentido do conceito técnico por ele invocado; ou tem perfeita ciência do que significa a expressão, e resolveu utilizá-la unicamente para impressionar a platéia.
Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e provimento ad-ministrativo (em alemão, Verwaltungsmassnahme); a primeira geral e abstrata, o se-gundo concreto e específico. Foi com base nessa distinção tradicional que Ernst Fort-shoff, após a Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo crescimento do poder nor-mativo das autoridades governamentais, máxime na implementação do Plano Marshall de reconstrução da Europa, passou a denominar Massnahmegesetze normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os traba-lhos de modernização de ferrovias.
O deprimente em toda essa estória é que o Ministro relator, ao mesmo tempo em que, na esteira da Procuradoria-Geral da República, considerou enfaticamente que a anistia dos crimes cometidos pelos agentes públicos contra oponentes políticos fora um “acordo histórico”, sustentou que ele nada mais seria, afinal, do que um simples provi-mento administrativo.
De qualquer modo, pretender que a Lei nº 6.683 teve efeitos imediatos e irrever-síveis constitui grosseiro sofisma, por dois singelos motivos. Em primeiro lugar, porque a premissa maior do silogismo já é a sua conclusão (vício lógico denominado petição de princípio); ou seja, a possibilidade de se reconhecer a conexão criminal entre delitos praticados com objetivos ou propósitos contraditórios. Em segundo lugar, porque, ao assim se exprimir, o magistrado demonstrou ignorar o fato óbvio de que os alegados efeitos imediatos de uma lei de anistia não podem estender-se a crimes continuados (como o de ocultação de cadáver), cujos autores permanecem no anonimato.
A segunda via de refutação das razões apresentadas na petição inicial foi também trilhada pelo relator, neste ponto pressurosamente acompanhado pela ministra que o sucedeu na ordem de votação. Entendeu, assim, o relator de desconsiderar o teor literal do pedido formulado na petição inicial, para sustentar que a demanda não objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o que só o Poder Legislativo tem competência para fazer.
É fartamente conhecida a distinção, de que o relator do acórdão usa e abusa, en-tre norma e texto normativo. Como o hábito do cachimbo deixa a boca torta, Sua Exce-lência resolveu aplicar o discrime à própria petição inicial da demanda. A arguente, a-firmou ele, posto haver pedido literalmente ao Tribunal que interpretasse a Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais Constituição Federal de 1988, objetivou, na verdade, alcançar com a demanda uma alteração legislativa substancial. Que se saiba, em nenhum país do mundo incluiu-se na competência jurisdicional a faculdade de psi-canalisar as partes demandantes, a fim de descobrir, por trás de suas declarações em juizo, intenções recalcadas no subconsciente. Teríamos admitido isso entre nós por meio de alguma Massnahmegesetz secreta?
O realmente curioso é que nenhum dos julgadores tenha se lembrado de que, quase um ano antes, dia por dia, ou seja, em 29 de abril de 2009, o mesmo tribunal de-cidira que a Constituição Federal havia revogado de pleno direito a lei de imprensa de 1967, promulgada doze anos antes da lei de anistia. Nesse outro julgado, o Supremo Tribunal Federal declarou interpretar a lei à luz dos preceitos fundamentais da Constitu-ição Federal. Dois pesos e duas medidas para a mesma balança?
Tudo isso, sem falarmos no fato – gravíssimo – de que a decisão proferida pela nossa mais alta Corte de Justiça, ao julgar a ADPF nº 153, violou abertamente preceitos fundamentais do direito internacional.
Ressalte-se, em primeiro lugar, que o assassínio, a tortura e o estupro de presos, quando praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos, são considerados, desde o término da Segunda Guerra Mundial, crimes contra a humani-dade; o que significa que o legislador nacional é incompetente para determinar, em re-lação a eles, quer a anistia, quer a prescrição.
Com efeito, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, definiu como crimes contra a humanidade, em seu art. 6, alínea c, os seguintes atos:
“o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições, constituindo ou não uma violação do direito in-terno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em conse-quência de todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou co-nexo com esse crime.”
Essa definição foi depois reproduzida no Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio de 1946, que julgou os criminosos de guerra japoneses.
Em 3 de fevereiro e 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pelas Resoluções nº 3 e 95 (I), confirmou “os princípios de direito internacio-nal reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse tribu-nal”.
Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Re-solução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilida-de dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados.
O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humanidade, e acrescentou ao elenco uma modali-dade genérica: “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencional-mente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”. Estabeleceu como condição de punibilidade que tais atos criminosos sejam cometidos “no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer popu-lação civil, havendo conhecimento desse ataque”; o que bem corresponde ao regime político repressivo vigente entre nós entre 1964 e 1985.
Desse conjunto normativo decorre a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano. Nesse sentido, com efeito, indiretamente ofendida pelo crime é toda a humanidade. Eis porque, como dito acima, ao legislador nacional carece toda competência para regular, nessa matéria, a anistia ou a prescrição.
Repita-se que a Assembléia Geral das Nações Unidas, nas duas citadas Resolu-ções de 1946, considerou que a conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de direito internacional.
Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para declarar a inconsti-tucionalidade de leis e outros atos normativos, foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Marbury v. Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição norte-americana?
A razão desse regime jurídico diverso é que a fonte dos princípios, sobretudo em matéria de direitos humanos, não reside na lei positiva ou na convenção internacional, mas na consciência ética da humanidade. É por isso que a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros, decor-rentes do regime e dos princípios por ela adotados” (art. 5º, 2º).
No plano do direito internacional, por fim, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 53, veio dar à noção de princípio geral de direito, sob a denominação de norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), uma noção precisa, que se aplica cabalmente à repressão dos crimes contra a humanidade:
É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma nor-ma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Con-venção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu con-junto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma na-tureza.
Não foi apenas essa, porém, a violação praticada pelo Supremo Tribunal Federal contra os preceitos fundamentais de direitos humanos, reconhecidos internacionalmente.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em reiteradas decisões, já fixou jurisprudência no sentido da nulidade absoluta das leis de auto-anistia. Será preciso lembrar, nesta altura da evolução jurídica, que em um Estado de Direito os governantes não podem isentar-se, a si próprios e a seus colaboradores, de responsabilidade alguma por delitos que tenham praticado?
Pois bem, diante da invocação desse princípio irrefutável, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não se inclui nessa proibição categórica, pois ela teria configurado uma anistia bilateral de governan-tes e governados. Ou seja, segundo essa preciosa interpretação, torturadores e tortura-dos, em uma espécie de contrato de intercâmbio (do ut des), teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…
Na verdade, essas surpreendentes declarações de voto casaram-se com a principal razão apresentada, não só pelo grupo vencedor, mas também pela Procuradoria-Geral da República, para considerar legítima e honesta a anistia de assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos durante o regime militar: ela teria sido fruto de um “histórico” acordo político.
Frise-se, desde logo, a repugnante imoralidade de um pacto dessa natureza: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios inte-ressados. O relator, citando Hartmann (evidentemente em alemão), não encontrou me-lhor argumento para responder a essa objeção do que afirmar que a propositura da de-manda representara a ocorrência de uma “tirania dos valores”! É de se perguntar se Sua Excelência julga a ela preferível o deboche ético e institucional do regime político da época.
Seja como for, o propalado “acordo histórico” de anistia dos crimes atrozes pra-ticados pelos agentes da repressão não passou de uma rasteira conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. Senão, vejamos.
Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem esta-ria do outro lado? Certamente não a oposição parlamentar, pois o projeto de lei de anis-tia foi aprovado na Câmara dos Deputados (onde não havia parlamentares “biônicos”, como no Senado) por apenas 5 (cinco) votos: 206 a 201. Pergunta-se: as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram, porventura, chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo?
O mais escandaloso de toda essa farsa de acordo político é que, após a promul-gação da Lei nº 6.683, em 28 de agosto de 1979, os militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial militar aberto em consequência, vítimas e não autores! E – pasme o leitor – tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fun-damento na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como termo final do lapso tempo-ral da anistia, a data de 15 de agosto de 1979.
Tais fatos estarrecedores assinalam mais uma escandalosa contradição na leitura feita pelo tribunal dessa mesma lei.
É que o § 2º do seu art. 1º excetuou “dos benefícios da anistia os que foram con-denados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Ou seja, na interpretação do Supremo Tribunal Federal, o terrorismo, o sequestro e o aten-tado pessoal são ações criminosas, tão-só quando praticadas por adversários do regime militar, não quando cometidos pelos agentes públicos da repressão. E não se venha jus-tificar essa afirmação escandalosa, com o argumento literal de que nenhum destes últi-mos foi condenado por tais crimes, pois durante todo o regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1964, todos, absolutamente todos os governantes e seus sequazes, tanto civis quanto militares, gozaram da mais completa irresponsabilidade. Eles pairavam acima das leis e das “constituições”, que eles próprios redigiam e promulgavam.
Em suma, como salientou Napoleão – não o grande general francês, mas o dita-dor suino de Animal Farm, de George Orwell –, em nosso querido país “todos são iguais perante a lei; alguns, porém, são mais iguais do que os outros”.
Lições de um triste veredicto
Em matéria de regimes políticos, é preciso separar o substantivo do adjetivo. A oligarquia e a democracia pertencem à primeira categoria, o Estado de Direito à segunda.
Em certa passagem de seu tratado sobre a política (1298 a, 1-4), Aristóteles ob-serva que toda politéia, ou seja, aquilo que poderíamos denominar Constituição subs-tancial, deve regular três questões fundamentais: 1) quem é titular do poder supremo (kýrion), com competência para deliberar sobre o bem comum de todos (peri tôn koinôn): 2) quem pode exercer a função de governante (arkhôn) e qual a sua competência; 3) quem deve assumir o poder de julgar (ti to dikázon).
Dessas três questões fundamentais destacadas pelo filósofo, as duas primeiras pertencem ao plano substantivo, a última ao adjetivo. Com efeito, qualquer que seja o regime político – que se define justamente pela titularidade da soberania e a forma de governo –, pode ou não haver a submissão do soberano e dos governantes à ordem jurídica. Hoje, é comum presumir-se que toda democracia é um Estado de Direito. Esquecemo-nos, ao assim pensar, que a democracia ateniense, não raras vezes, descambou para a “okhlocracia” (de okhlos, ralé, populacho), onde a maioria pobre, logo após a tomada do poder, não hesitava em exilar, confiscar e, no limite, exterminar a minoria rica.
Ora, a função constitucional do Judiciário, desde sempre, consiste em ser ele o garante máximo da submissão de todos os titulares de poder – inclusive o próprio sobe-rano! – ao império do Direito. Por isso mesmo, juizes e tribunais, segundo a boa con-cepção da república romana, não têm propriamente poder (potestas, imperium). Mon-tesquieu, no famoso capítulo 6 do livro XI de O Espírito das Leis, após descrever a ar-quitetura constitucional tripartida da Inglaterra, anotou: “des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”.
Faltou, porém, dizer que se o Judiciário não tem propriamente poder – no sentido de dispor legitimamente de força própria –, ele deve possuir aquela qualidade política eminente, que os romanos denominavam auctoritas; vale dizer, o prestígio moral que dignifica uma pessoa ou uma instituição, suscitando a confiança e o respeito no seio do povo.
Sucede que neste “florão da América” o Judiciário nunca gozou da confiança popular. Em 2007, uma pesquisa de opinião pública realizada por CNT/Sensus sobre o grau de confiança das diferentes instituições, públicas ou privadas, em nosso país, reve-lou que apenas 9,5% dos entrevistados confiavam na Justiça. Juizes e tribunais só esta-vam acima dos governos (5%), da polícia (3,4%) e do Congresso Nacional (1,1%). Na-quele mesmo ano, a Associação de Magistrados Brasileiros divulgou outra pesquisa, realizada segundo critérios diversos pela Opinião Consultoria. De acordo com esse úl-timo levantamento de opinião pública, o Poder Judiciário gozaria da confiança de menos da metade da população brasileira, ou, mais exatamente, 41,8%.
Ora, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o âmbito dos efeitos da lei de anistia de 1979, além de em nada contribuir para minorar essa desconfiança popular nos órgãos da Justiça, representou certamente um golpe profundo no grau de credibilidade do Judiciário brasileiro no plano internacional, em matéria de direitos humanos.
Com efeito, de todos os paises sul-americanos, o Brasil é hoje o único que se recusa a levantar a total impunidade de governantes e seus subordinados, pelos crimes violentos praticados durante o período de regime político autoritário. Em estudo recen-te, Anthony W. Pereira mostrou como essa situação escandalosa, quando comparada com as severas condenações judiciais sofridas na Argentina e no Chile pelos governantes – inclusive ex-chefes de Estado! –, durante o regime de exceção, tem sua causa na infamante colaboração que entre nós se estabeleceu, no mesmo período, entre a magis-tratura e os chefes militares. Naqueles paises, a Justiça foi posta de lado pelos militares em sua ação repressiva. Aqui, a competência da Justiça Militar foi ampliada, para abarcar os crimes contra a ordem pública e a segurança nacional, ainda que cometidos por civis. Suspenderam-se o habeas-corpus e as garantias da magistratura, e três Ministros do Supremo Tribunal Federal foram afastados pelo então chefe de Estado. Mas o Judiciário continuou a funcionar como se nada tivesse acontecido. Estávamos numa “democracia à brasileira”, como disse o general que prendeu o grande advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou dizendo que só conhecia “peru à brasileira”.
Para que possamos, portanto, instaurar neste país um verdadeiro Estado de Direi-to, impõe-se realizar, o quanto antes, uma reforma em profundidade do Poder Judiciário.
Ela deve centrar-se na garantia de completa independência de juizes e tribunais em relação aos demais órgãos do Estado, combinada com a instituição de eficientes con-troles da atuação do Judiciário, em todos os níveis.
O costume institucional brasileiro, oriundo de uma longa tradição portuguesa, mantém a Justiça sob a influência avassaladora dos governantes. Não foi, pois, surpre-endente verificar que, no caso objeto destes comentários, a espada militar interferiu des-pudoradamente no funcionamento da balança judicial.
Importa, pois, antes de tudo, libertar o Judiciário – e da mesma forma o Ministé-rio Público – da velha hegemonia que sobre eles sempre exerceu o mal chamado Poder Executivo.
É indispensável e urgente eliminar o poder atribuido aos chefes de governo de nomear os integrantes da magistratura nos tribunais. O que se tem visto ultimamente, sobretudo no preenchimento de vagas no Supremo Tribunal Federal, é um prélio acirrado entre dezenas de candidatos à nomeação, disputando as boas graças do chefe do Exe-cutivo, sendo certo que a aprovação das indicações presidenciais pelo Senado Federal é mera formalidade. Nessa peleja pessoal, o que menos conta são os princípios éticopolí-ticos. O principal trunfo de cada candidato consiste em “ser amigo do rei”, ou pelo me-nos contar com o apoio direto de um dos próximos de sua majestade. Escusa dizer que os assim nomeados ficam sempre submetidos ao poder dominante daquele, graças ao qual passaram a ocupar o alto posto judiciário.
Ainda no campo da necessária independência do Poder Judiciário, impõe-se a eliminação, o quanto antes, da Justiça Militar, em razão de seu caráter essencialmente corporativo. Aliás, durante todo o longo período autoritário, como frisou o autor acima referido, a Justiça castrense colaborou fielmente com os responsáveis pela política de terrorismo de Estado.
Outra nefasta tradição brasileira é a irresponsabilidade de fato dos magistrados. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, os únicos controles de iure, sobre eles existentes, eram exercidos no campo penal dentro do próprio Poder Ju-diciário, por iniciativa do Ministério Público; e em matéria financeira, pelos Tribunais de Contas. Mas tais controles sempre tiveram uma eficácia muito reduzida.
A referida emenda constitucional, ao criar o Conselho Nacional de Justiça, foi um primeiro passo no sentido de se instaurar um regime de efetiva responsabilização dos magistrados. É preciso agora avançar nesse rumo, por meio de várias providências, a saber: 1) tornar o Conselho um órgão efetivamente externo ao Poder Judiciário; 2) submeter à necessária fiscalização do órgão o próprio Supremo Tribunal Federal, que permanece ainda imune a todo controle; 3) dar ao Conselho poderes de punição severa e exemplar dos magistrados que delinquem (recentemente, como se recorda, um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, julgado responsável pela venda de decisões, foi sim-plesmente aposentado com vencimentos integrais); 4) desdobrar o Conselho em órgãos regionais, de modo a dar-lhe maior capacidade de atuação local.
Tudo isso diz respeito ao controle por assim dizer horizontal. Importa, porém, instituir também uma fiscalização vertical, fazendo com que o próprio povo participe da função de vigilância da atuação do Poder Judiciário. Sem isto, com efeito, a soberania popular tende a ser, nesse particular como em vários outros setores, meramente retórica.
A Constituição do Império de 1824 tinha, a esse respeito, uma disposição avan-çada, não reproduzida por nenhuma das Cartas Políticas subsequentes. Dispunha o seu art. 157 que “por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles (Juizes de Direito) ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixo-so, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida em Lei”. Não se tem notícia do uso efetivo dessa ação popular, mas é inegável que, pelo simples fato de existir, era ela, em si mesma, um instrumento de real pedagogia política. Convém, pois, recriá-la, aperfeiçoando os seus contornos.
Além disso, seria de grande importância instituir ouvidorias populares dos órgãos da Justiça, em todos os níveis, com competência para exigir explicações oficiais sobre a atuação administrativa dos magistrados. O Judiciário tem sido tradicionalmente, aos olhos do povo, o mais hermético de todos os Poderes do Estado. É inútil procurar reduzir a desconfiança dos jurisdicionados em relação aos juizes, se entre uns e outros continuarmos a manter uma linha divisória intransponível.
Toda essa reforma institucional, no entanto, será vã, caso não logremos mudar a mentalidade de nossos magistrados, a qual, sob a aparência de fiel adesão ao princípio republicano e ao ideal democrático, permanece de fato essencialmente oligárquica e subserviente aos “donos do poder”.
Sem dúvida, temos de reconhecer que, ultimamente, algum progresso foi alcan-çado. Basta lembrar a fundação, há alguns anos, da Associação Juizes para a Democra-cia, que por sinal ingressou como amica curiae ao lado da OAB, no processo da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal. Mas não se há de ignorar que a mudança de men-talidades coletivas só se alcança por força de um trabalho sistemático e prolongado de educação: no caso, especificamente, de educação ética e política, centrada nos direitos humanos.
À guisa de conclusão
“Quem é o juiz do Supremo Tribunal Federal?”, perguntou Rui Barbosa . E res-pondeu: “Um só é possível reconhecer: a opinião pública, o sentimento nacional”.
Essa respeitável opinião, certamente válida na época em que foi emitida, já não é hoje admissível.
No início do século passado, a opinião pública era formada em grande parte, entre nós, pelas manifestações publicadas na imprensa, que não se achava, então, sub-metida a poder algum, estatal ou privado. Hoje, porém, o conjunto dos meios de comu-nicação de massa, ou seja, não apenas a imprensa, mas também o rádio e a televisão, estão sujeitos à dominação de um oligopólio empresarial, que representa um dos maiores sustentáculos do regime oligárquico. Não foi por outra razão que o julgamento pro-nunciado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da lei de anistia de 1979, salvo raras e honrosas exceções, não mereceu nenhuma reprovação no conjunto dos meios de co-municação social.
Mas há ainda outra razão para se recusar o alvitre de Rui Barbosa acima lembra-do. A partir da segunda metade do século XX, criou-se um sistema supra-estatal de pro-teção dos direitos humanos, consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido à jurisdição da citada Corte.
Temos, pois, hoje, um juiz internacionalmente reconhecido do nosso tribunal supremo. Doravante, o poder da espada já não é capaz de desequilibrar, impunemente, a balança da Justiça.
domingo, 22 de agosto de 2010
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
JUSTIÇA LERDA
Frase
A Justiça brasileira precisa mudar. Se o país quer manter dinheiro de crime congelado nos EUA, terá de produzir decisões finais... Há casos com mais de dez anos em que não há uma decisão final
ADAM KAUFMANN
promotor norte-americano
A Justiça brasileira precisa mudar. Se o país quer manter dinheiro de crime congelado nos EUA, terá de produzir decisões finais... Há casos com mais de dez anos em que não há uma decisão final
ADAM KAUFMANN
promotor norte-americano
quinta-feira, 23 de julho de 2009
LULA: "Dependendo da carga de manchetes da imprensa, a pessoa já está condenada".
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu ontem ao novo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que os procuradores, ao realizarem uma investigação, também pensem "na biografia dos investigados". Em discurso, Lula criticou a imprensa por julgar as pessoas antes do processo finalizado.
"Uma instituição que tem o poder que tem o Ministério Público brasileiro, garantido pela Constituição, tem o direito e a obrigação de agir com a máxima seriedade, não pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação, mas pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado", disse.
Segundo o presidente, "dependendo da carga de manchetes da imprensa, a pessoa já está condenada".
Lula disse que jamais fará pedidos pessoais ou impedirá investigações e que a instituição precisa atuar de forma responsável, sob pena de sofrer "castramento" de sua liberdade por alguém que se sinta atingido.
O presidente afirmou, ainda, que a corrupção tem aparecido mais no seu governo porque passou a ser mais combatida. "Você pode engavetar processo, aceitar pressão do Poder Legislativo, do Poder Executivo, da imprensa que às vezes quer condenar antes do processo ser feito corretamente", afirmou.
COMO DEUS,
O PIG EXISTE!!!
O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, discordou de Lula. Segundo ele, a imprensa nunca atua de forma isolada, mas com respaldo de autoridades.: "É um delegado que precipita uma conclusão, é um promotor, às vezes é um juiz".
(Como fez o judiciário no golpe de Honduras?)
Acho que essa declaração de Gilmar Mendes no meio de uma informação sobre a posse de um procurador revela várias hipóteses que comprova(ra)m a existência do chamado Partido da Imprensa Golpista - o PIG.
Ou: por que o redator colocaria essa opinião ali no meio?
Para livrar-se de possíveis argumentos de que o Pig existe?
Redimir-se do que disseram antes?
Ou continuar as denúncias sob o manto protetor de parte da Justiça?
Por que até agora nada foi explicado sobre a farsa do grampo do Gilmar Mendes e do senador Demóstenes Torres publicada na revista Veja?
Releia a frase de Mendes e compare com o que o judiciário fez em Honduras:
"É um delegado que precipita uma conclusão, é um promotor, às vezes é um juiz".
Até as pedras sabem que existe um esquema de golpismo contra o governo Lula.
Demotucanos e parte da grande mídia autopautam-se.
Um dá ao outro a dica para a próxima jogada.
Fornecem dados e informações - afinal os congressistas têm acesso privilegiado aos dados do governo.
MONTA-SE A FÁBRICA DE DENÚNCIAS E ESCÂNDALOS DE SUPOSTAS CORRUPÇÕES.
CONDENA-SE À PRIORI.
COM O APOIO DE CERTA PARTE DA JUSTIÇA, COMO MENDES.
E POR AÍ VÃO, IMUNES E IMPUNES.
"Uma instituição que tem o poder que tem o Ministério Público brasileiro, garantido pela Constituição, tem o direito e a obrigação de agir com a máxima seriedade, não pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação, mas pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado", disse.
Segundo o presidente, "dependendo da carga de manchetes da imprensa, a pessoa já está condenada".
Lula disse que jamais fará pedidos pessoais ou impedirá investigações e que a instituição precisa atuar de forma responsável, sob pena de sofrer "castramento" de sua liberdade por alguém que se sinta atingido.
O presidente afirmou, ainda, que a corrupção tem aparecido mais no seu governo porque passou a ser mais combatida. "Você pode engavetar processo, aceitar pressão do Poder Legislativo, do Poder Executivo, da imprensa que às vezes quer condenar antes do processo ser feito corretamente", afirmou.
COMO DEUS,
O PIG EXISTE!!!
O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, discordou de Lula. Segundo ele, a imprensa nunca atua de forma isolada, mas com respaldo de autoridades.: "É um delegado que precipita uma conclusão, é um promotor, às vezes é um juiz".
(Como fez o judiciário no golpe de Honduras?)
Acho que essa declaração de Gilmar Mendes no meio de uma informação sobre a posse de um procurador revela várias hipóteses que comprova(ra)m a existência do chamado Partido da Imprensa Golpista - o PIG.
Ou: por que o redator colocaria essa opinião ali no meio?
Para livrar-se de possíveis argumentos de que o Pig existe?
Redimir-se do que disseram antes?
Ou continuar as denúncias sob o manto protetor de parte da Justiça?
Por que até agora nada foi explicado sobre a farsa do grampo do Gilmar Mendes e do senador Demóstenes Torres publicada na revista Veja?
Releia a frase de Mendes e compare com o que o judiciário fez em Honduras:
"É um delegado que precipita uma conclusão, é um promotor, às vezes é um juiz".
Até as pedras sabem que existe um esquema de golpismo contra o governo Lula.
Demotucanos e parte da grande mídia autopautam-se.
Um dá ao outro a dica para a próxima jogada.
Fornecem dados e informações - afinal os congressistas têm acesso privilegiado aos dados do governo.
MONTA-SE A FÁBRICA DE DENÚNCIAS E ESCÂNDALOS DE SUPOSTAS CORRUPÇÕES.
CONDENA-SE À PRIORI.
COM O APOIO DE CERTA PARTE DA JUSTIÇA, COMO MENDES.
E POR AÍ VÃO, IMUNES E IMPUNES.
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sexta-feira, 3 de julho de 2009
A LUTA PELA HEGEMONIA DO PODER
"O Senado e a Câmara, num nível menor, revelaram-se para a sociedade como duas instituições perdulárias. O preço é a perda da credibilidade, em seguida, a perda total do respeito. Como é possível aceitar este caminho, fazer da política uma vergonhosa atividade humana?"
Essa frase de Fernando Gabeira revela que ele deixará a função de deputado federal por vergonha?!
É a prova de que até na renúncia dos outros Gabeira e os demotucanos são seletivos?
Essa frase (do artigo de hoje na FSP) revela simplesmente como as palavras retiradas do seu contexto têm uma valoração completamente diferente daquela que o autor quis dar.
De certa forma o jornalismo é feito dessas contradições.
Quem não souber interpretar essa contradição, não entenderá as virtudes e mazelas da grande mídia atualmente.
Nesse caso específico Gabeira queria mesmo era a renúncia do presidente do Senado José Sarney...
Quer dizer: no caso de Sarney, é vergonhoso continuar; no caso de Gabeira, continuar é ter a oportunidade de tratar a coisa pública como coisa privada tanto quanto Sarney, pois Gabeira defende os interesses demotucanos e da Grande Mídia que querem defenestrar Sarney.
Mero jogo político em vésperas de eleição.
As soluções para a velha contradição entre público e privado não são encontradas porque - pelo menos por enquanto - a maioria não quer.
Tudo questão de hegemonia na luta pelo poder.
MEMÓRIA E INIMIGOS SELETIVOS
A grande mídia usa a memória seletiva para chamar a ditadura de ditabranda e também selecionar os inimigos da hora.
No caso do senador Sarney, ficou claro isso.
Objetivo: desbancar Sarney para colocar no lugar dele um do PSDB, Pirillo.
um exemplo:
..."O presidente da Casa também passou por outros constrangimentos ao admitir que recebia auxílio-moradia irregularmente e que emprestou apartamento funcional a um ex-senador e a uma funcionária do gabinete, algo proibido."
Essa é nova.
Algo proibido!!!
Ou é proibido ou não.
É mais ou menos proibido,
conforme os meus interesses
e seletividades do que seja proibido?
É proibido mas é legal?
Qual proibição legal eu escolho para proibir, meter o pau?
Esse é só um exemplo menor. Imagine os maiores e melhores momentos!
CRÍTICAS SELETIVAS CONFORME MEUS INTERESSES
O presidente do STF Gilmar Mendes liberou Daniel Dantas da condenação com dois habeas-corpus em 48 horas, nas férias judiciárias de julho de 2008.
Mas não é só por isso que sua atuação é criticada por advogados e promotores e magistrados. É pela sua atuação ativa, isto é, opina sobre o processo antes de julgá-lo e sobre qualquer assunto que esteja ocorrendo no país, sempre de forma conservadora - ele é considerado um patrimonialista, fazendeiro.
O ministro Joaquim Barboa e ele discutiram no STF, Barbosa falando dos jagunços de Mendes, este desprezando a atuação daquele.
Os três poderes funcionam democraticamente, portanto. Cada um na sua.
Essas discussões fazem parte do jogo democrático.
Mas o presidente da OAB SP Luiz Flávio Borges D´Urso mostrou que age politicamente, interfere nos outros poderes como pretende também Mendes.
VIÉS GOLPISTA
Criticou Barbosa porque, na verdade, este não conversa com advogados que defendem causas diretas no STF, para se preservar, para deixar clara a diferença entre o público e o privado.
Mas D´Urso enveredou pela análise política:
"A liturgia do poder – que adorna os palcos institucionais e exerce o dom de conferir grandeza aos atos e atitudes dos membros da hierarquia – foi estiolada. A quebra do rito formal do Supremo sinaliza para o estado de deterioração que se espraia pelo universo organizacional, atingindo particularmente a esfera dos poderes.
Junta-se o Poder Judiciário ao campo obscuro da imagem onde já está inserido o Poder Legislativo, às voltas com uma intensa bateria de denúncias, que já se desenvolve há mais de dois meses. Sob esta avaliação, acentua-se a força do Poder Executivo, impulsionada pelo prestígio pessoal da figura do presidente Lula. Nesse caso, o sistema de pesos e contrapesos, arquitetado por Montesquieu, em sua visão tripartite dos Poderes, ameaça naufragar, abrindo possibilidades para o agigantamento de um presidencialismo de matiz absolutista, que, como sabemos, praticamente direciona as atividades do Poder Legislativo. Basta registrar o uso desmedido das medidas provisórias, que deixaram de ser excepcionais para se incorporar ao cotidiano da agenda parlamentar, disse ele."
Numa democracia plena, essa conversa cheira a golpe, ainda mais porque são notórias as vinculações dele com os demotucanos e grande mídia que insistem em demonizar o governo federal e os movimentos sociais para a retomada do poder em 2010.
Essa frase de Fernando Gabeira revela que ele deixará a função de deputado federal por vergonha?!
É a prova de que até na renúncia dos outros Gabeira e os demotucanos são seletivos?
Essa frase (do artigo de hoje na FSP) revela simplesmente como as palavras retiradas do seu contexto têm uma valoração completamente diferente daquela que o autor quis dar.
De certa forma o jornalismo é feito dessas contradições.
Quem não souber interpretar essa contradição, não entenderá as virtudes e mazelas da grande mídia atualmente.
Nesse caso específico Gabeira queria mesmo era a renúncia do presidente do Senado José Sarney...
Quer dizer: no caso de Sarney, é vergonhoso continuar; no caso de Gabeira, continuar é ter a oportunidade de tratar a coisa pública como coisa privada tanto quanto Sarney, pois Gabeira defende os interesses demotucanos e da Grande Mídia que querem defenestrar Sarney.
Mero jogo político em vésperas de eleição.
As soluções para a velha contradição entre público e privado não são encontradas porque - pelo menos por enquanto - a maioria não quer.
Tudo questão de hegemonia na luta pelo poder.
MEMÓRIA E INIMIGOS SELETIVOS
A grande mídia usa a memória seletiva para chamar a ditadura de ditabranda e também selecionar os inimigos da hora.
No caso do senador Sarney, ficou claro isso.
Objetivo: desbancar Sarney para colocar no lugar dele um do PSDB, Pirillo.
um exemplo:
..."O presidente da Casa também passou por outros constrangimentos ao admitir que recebia auxílio-moradia irregularmente e que emprestou apartamento funcional a um ex-senador e a uma funcionária do gabinete, algo proibido."
Essa é nova.
Algo proibido!!!
Ou é proibido ou não.
É mais ou menos proibido,
conforme os meus interesses
e seletividades do que seja proibido?
É proibido mas é legal?
Qual proibição legal eu escolho para proibir, meter o pau?
Esse é só um exemplo menor. Imagine os maiores e melhores momentos!
CRÍTICAS SELETIVAS CONFORME MEUS INTERESSES
O presidente do STF Gilmar Mendes liberou Daniel Dantas da condenação com dois habeas-corpus em 48 horas, nas férias judiciárias de julho de 2008.
Mas não é só por isso que sua atuação é criticada por advogados e promotores e magistrados. É pela sua atuação ativa, isto é, opina sobre o processo antes de julgá-lo e sobre qualquer assunto que esteja ocorrendo no país, sempre de forma conservadora - ele é considerado um patrimonialista, fazendeiro.
O ministro Joaquim Barboa e ele discutiram no STF, Barbosa falando dos jagunços de Mendes, este desprezando a atuação daquele.
Os três poderes funcionam democraticamente, portanto. Cada um na sua.
Essas discussões fazem parte do jogo democrático.
Mas o presidente da OAB SP Luiz Flávio Borges D´Urso mostrou que age politicamente, interfere nos outros poderes como pretende também Mendes.
VIÉS GOLPISTA
Criticou Barbosa porque, na verdade, este não conversa com advogados que defendem causas diretas no STF, para se preservar, para deixar clara a diferença entre o público e o privado.
Mas D´Urso enveredou pela análise política:
"A liturgia do poder – que adorna os palcos institucionais e exerce o dom de conferir grandeza aos atos e atitudes dos membros da hierarquia – foi estiolada. A quebra do rito formal do Supremo sinaliza para o estado de deterioração que se espraia pelo universo organizacional, atingindo particularmente a esfera dos poderes.
Junta-se o Poder Judiciário ao campo obscuro da imagem onde já está inserido o Poder Legislativo, às voltas com uma intensa bateria de denúncias, que já se desenvolve há mais de dois meses. Sob esta avaliação, acentua-se a força do Poder Executivo, impulsionada pelo prestígio pessoal da figura do presidente Lula. Nesse caso, o sistema de pesos e contrapesos, arquitetado por Montesquieu, em sua visão tripartite dos Poderes, ameaça naufragar, abrindo possibilidades para o agigantamento de um presidencialismo de matiz absolutista, que, como sabemos, praticamente direciona as atividades do Poder Legislativo. Basta registrar o uso desmedido das medidas provisórias, que deixaram de ser excepcionais para se incorporar ao cotidiano da agenda parlamentar, disse ele."
Numa democracia plena, essa conversa cheira a golpe, ainda mais porque são notórias as vinculações dele com os demotucanos e grande mídia que insistem em demonizar o governo federal e os movimentos sociais para a retomada do poder em 2010.
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quarta-feira, 24 de junho de 2009
OS DONOS DO PODER - DOS MISERÁVEIS E DOS RICOS
"É claro que a perversão política brasileira vai muito além de oligarquias e que no Sul "rico" há bandalha similar (vide a Câmara dos Deputados ou Assembleia e a Câmara de São Paulo). Mas a situação de fato do Senado é de domínio de oligarcas da miséria, muitos deles no PMDB."
O final desse texto maravilhoso
de Vinicius Torres Freire na Folha mostra como é distribuído o poder no Brasil.
Claro, ele esqueceu - porque certamente está sentado numa das cadeiras desse poder dos ricos - de dizer que os donos do poder dos ricos são justamente os proprietários dos meios de comunicação e dos que exploram o Brasil também há quinhentos anos, desde as capitanias hereditárias, das sesmarias.
Tanto é que os donos da grande mídia são donos das chamadas, humoristicamente,
SE(I)SMARIAS!
Indício claro de que os chamados patrimonialistas - tanto os que dominam os pobres quanto os que representam os ricos - sempre se uniram para espoliar a maioria.
Mas pela primeira vez há uma luta política para mudar isso.
Essa luta fica clara nas informações divulgadas pela imnprensa, que agora confronta-se com os patrimonialistas dos outros estados para que eles continuem ligados umbilicalmente aos patrimonialistas do capital do sudeste, principalmente São Paulo e Rio, onde está a força da grande mídia.
O jurista Raymundo Faoro, em seu livro Os Donos do Poder, desmascarou esse patrimonialismo. Imperdível.
Leia o texto de Freire:
"Uma história do saque do Senado
--------------------------------------------------------------------------------
Oligarcas da miséria, antigos e arrivistas, chantageiam os governos federais e estão na base da crise parlamentar
--------------------------------------------------------------------------------
É UM CLICHÊ barato dizer que a política brasileira é lambuzada de patrimonialismo (isto é, grosso modo, o costume de tornar indistintos os bens públicos e privados). O termo vinha servindo mais como metáfora do que descrição exata. Mas no Senado (aliás, no Parlamento todo) a definição serve exatamente, como um verbete de dicionário, nos seus casos mais aberrantes e caricatos, como as despesas da casa de senhores senatoriais pagas pelo público. Se fosse apenas este, o problema seria ainda limitado, porém. As "casas" de que se trata aqui são os domínios dos oligarcas dos lugares mais atrasados do país. Trata-se da "Casa de Sarney", da "Casa de Renan" etc. "Casa" no sentido de "domínio", de linhagem, sentido obviamente temperado de sarcasmo.
Por um lado, há os oligarcas mais ou menos tradicionais do Nordeste, que em geral sobraram no PFL-DEM. De outro, há a nova oligarquia que emergiu nos anos 80, com as vitórias do PMDB, as quais levaram ao poder figuras da pequena classe média (e daí para baixo), que acabaram por fazer carreira e fortuna na política: Quércias, Barbalhos, Rorizes, Rezendes, Geddeis, ao que se somaram Renans e similares, eles mesmos senadores ou "donos" de bancadas.
O poder de vários desses "quadros" dominantes foi reforçado com as doações de rádios e TVs, intensificada quando José Sarney presidia a República. Além do mais, a fragmentação partidária reforça o poder do PMDB, esse partido dito sem rosto mas que reúne a parte mais pujante do empreendedorismo político nacional, digamos. Antes do PT, o PMDB foi um grande instrumento político de ascensão social.
As "casas" da oligarquia, nova ou velha, dominam seus Estados distribuindo favores na máquina política local. Transferindo benefícios federais que recebem na troca fisiológica com o governo federal. Dominando meios de comunicação regionais e o dinheiro dos "fundos de desenvolvimento" (e outros), com os quais levantam seus negócios de fato (lembrem-se de Sudam e Sudene), quando não recebem ajudas diretas (caso de usineiros nordestinos). Tratar o Senado como parte de sua "casa" é um meio de sustentar seu poder.
Vindos na maioria dos Estados mais miseráveis (Maranhão de José Sarney, Alagoas de Renan Calheiros, entre outros) ou quase em estado de natureza (os ex-territórios, caso de Romero Jucá), tais senhores detêm alguns oligopólios políticos. Têm razoável controle sobre o eleitorado local, dependente do Estado. A rarefeita esfera pública, a baixa instrução e a escassa diferenciação social e econômica nesses rincões favorece o domínio das "casas", que só recentemente começou a ser contestado, pela ascensão do PT (Piauí, Paraíba e Bahia). As "casas" controlam ainda os votos da maioria no Congresso. Trocam favores com o presidente e com os candidatos a presidente da República do "Sul" rico. Não é por outro motivo que Lula, mas também todos os presidentes pós-ditadura, os tolera ou mesmo os defende.
É claro que a perversão política brasileira vai muito além de oligarquias e que no Sul "rico" há bandalha similar (vide a Câmara dos Deputados ou Assembleia e a Câmara de São Paulo). Mas a situação de fato do Senado é de domínio de oligarcas da miséria, muitos deles no PMDB."
O final desse texto maravilhoso
de Vinicius Torres Freire na Folha mostra como é distribuído o poder no Brasil.
Claro, ele esqueceu - porque certamente está sentado numa das cadeiras desse poder dos ricos - de dizer que os donos do poder dos ricos são justamente os proprietários dos meios de comunicação e dos que exploram o Brasil também há quinhentos anos, desde as capitanias hereditárias, das sesmarias.
Tanto é que os donos da grande mídia são donos das chamadas, humoristicamente,
SE(I)SMARIAS!
Indício claro de que os chamados patrimonialistas - tanto os que dominam os pobres quanto os que representam os ricos - sempre se uniram para espoliar a maioria.
Mas pela primeira vez há uma luta política para mudar isso.
Essa luta fica clara nas informações divulgadas pela imnprensa, que agora confronta-se com os patrimonialistas dos outros estados para que eles continuem ligados umbilicalmente aos patrimonialistas do capital do sudeste, principalmente São Paulo e Rio, onde está a força da grande mídia.
O jurista Raymundo Faoro, em seu livro Os Donos do Poder, desmascarou esse patrimonialismo. Imperdível.
Leia o texto de Freire:
"Uma história do saque do Senado
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Oligarcas da miséria, antigos e arrivistas, chantageiam os governos federais e estão na base da crise parlamentar
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É UM CLICHÊ barato dizer que a política brasileira é lambuzada de patrimonialismo (isto é, grosso modo, o costume de tornar indistintos os bens públicos e privados). O termo vinha servindo mais como metáfora do que descrição exata. Mas no Senado (aliás, no Parlamento todo) a definição serve exatamente, como um verbete de dicionário, nos seus casos mais aberrantes e caricatos, como as despesas da casa de senhores senatoriais pagas pelo público. Se fosse apenas este, o problema seria ainda limitado, porém. As "casas" de que se trata aqui são os domínios dos oligarcas dos lugares mais atrasados do país. Trata-se da "Casa de Sarney", da "Casa de Renan" etc. "Casa" no sentido de "domínio", de linhagem, sentido obviamente temperado de sarcasmo.
Por um lado, há os oligarcas mais ou menos tradicionais do Nordeste, que em geral sobraram no PFL-DEM. De outro, há a nova oligarquia que emergiu nos anos 80, com as vitórias do PMDB, as quais levaram ao poder figuras da pequena classe média (e daí para baixo), que acabaram por fazer carreira e fortuna na política: Quércias, Barbalhos, Rorizes, Rezendes, Geddeis, ao que se somaram Renans e similares, eles mesmos senadores ou "donos" de bancadas.
O poder de vários desses "quadros" dominantes foi reforçado com as doações de rádios e TVs, intensificada quando José Sarney presidia a República. Além do mais, a fragmentação partidária reforça o poder do PMDB, esse partido dito sem rosto mas que reúne a parte mais pujante do empreendedorismo político nacional, digamos. Antes do PT, o PMDB foi um grande instrumento político de ascensão social.
As "casas" da oligarquia, nova ou velha, dominam seus Estados distribuindo favores na máquina política local. Transferindo benefícios federais que recebem na troca fisiológica com o governo federal. Dominando meios de comunicação regionais e o dinheiro dos "fundos de desenvolvimento" (e outros), com os quais levantam seus negócios de fato (lembrem-se de Sudam e Sudene), quando não recebem ajudas diretas (caso de usineiros nordestinos). Tratar o Senado como parte de sua "casa" é um meio de sustentar seu poder.
Vindos na maioria dos Estados mais miseráveis (Maranhão de José Sarney, Alagoas de Renan Calheiros, entre outros) ou quase em estado de natureza (os ex-territórios, caso de Romero Jucá), tais senhores detêm alguns oligopólios políticos. Têm razoável controle sobre o eleitorado local, dependente do Estado. A rarefeita esfera pública, a baixa instrução e a escassa diferenciação social e econômica nesses rincões favorece o domínio das "casas", que só recentemente começou a ser contestado, pela ascensão do PT (Piauí, Paraíba e Bahia). As "casas" controlam ainda os votos da maioria no Congresso. Trocam favores com o presidente e com os candidatos a presidente da República do "Sul" rico. Não é por outro motivo que Lula, mas também todos os presidentes pós-ditadura, os tolera ou mesmo os defende.
É claro que a perversão política brasileira vai muito além de oligarquias e que no Sul "rico" há bandalha similar (vide a Câmara dos Deputados ou Assembleia e a Câmara de São Paulo). Mas a situação de fato do Senado é de domínio de oligarcas da miséria, muitos deles no PMDB."
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segunda-feira, 15 de junho de 2009
Os donos do poder, dos cartórios e do atraso
15/06/2009
O jurista Raymundo Faoro já disse em Os Donos do Poder, que o sistema judiciário e cartorial brasileiro constituiu-se historicamente num exemplo do patrimonialismo que marca até hoje o Brasil.
O procurador da República de Minas Gerais Edmundo Dias Netto Jr. analisa a questão que, acho, é fulcral para resolvermos os problemas brasileiros e para retirar entulhos autoritários e privilégios inconcebíveis de uma casta econômica e política que tem um poder extraordinário na vida da nação.
“O Sistema cartorial brasileiro constitui, hoje, o mais expressivo exemplo do patrimonialismo que marca nosso país. Basta ver que os tabeliães daqui são comumente tratados por “donos” de cartórios, que, no compasso da mesma metáfora, ressoam em suas placas e timbres os nomes pessoais dos seus titulares. Ocorre que a atividade notarial e de registro consiste em um serviço público que o Estado delega à exploração em caráter privado. Para remunerar-se, o particular delegatário recolhe emolumentos -que nada mais são que uma espécie de taxa- dos usuários do serviço. Apenas parte disso é repassada ao Estado, pela função fiscalizatória que desempenha no setor. Em clara inversão de valores, o que cabe ao particular supera, em geral, algumas vezes o que é recolhido aos cofres públicos. Como tal atividade é exercida em caráter privado, não tem incidência o teto remuneratório do serviço público. Também não tem aplicação a súmula vinculante do STF que veda o nepotismo. Assim, o constituinte de 87/88 acabou mantendo uma classe, a dos notários e registradores, com privilégios que nem sequer os agentes políticos tiveram a ousadia de prever expressamente para si mesmos. Indaga-se, porém -sem fazer pouco do papel do tabelião, indispensável a que se confira certeza a determinados registros de interesse público-, qual dessas funções é mais importante (ou seja, pressuposto de existência das demais atribuições do Estado) para o desenvolvimento de um país. Na última semana, o Conselho Nacional de Justiça editou duas resoluções que estabelecem regras para a realização de concursos públicos em cartórios, inclusive para os que, mesmo após a Constituição de 88, foram preenchidos à margem do procedimento impessoal nela determinado. Na contramão disso, dois movimentos se articulam. O primeiro é para que os serviços notariais e de registro deixem de ser fiscalizados pelo Judiciário. O segundo é a tramitação de proposta de emenda constitucional, que em breve deve ser votada na Câmara dos Deputados, com o objetivo de efetivar nas funções os tabeliães que, à margem de concurso público, tenham-nas exercido entre 88 e 94. Bem ao contrário do disposto na resolução 80 do CNJ, a citada PEC põe os notários e registradores no ponto de fuga de uma perspectiva privada que muitos lutam para banir da cena pública nacional. Nessa distorcida maneira de enxergar o mundo, tais cartorários não concursados, não podendo ser considerados donos de suas serventias, passam a assumir o sentido figurado de meros possuidores. Assim, nada mais natural aos nossos patrimonialistas que possam esses tabeliães, pelo exercício de posse longa e pacífica, ter finalmente reconhecido seu domínio sobre as serventias extrajudiciais, mediante a invenção de nova espécie de usucapião que os efetive, enfim, em seus cartórios. De acordo com dados que foram divulgados na página do CNJ na internet, somente em 2006 as serventias extrajudiciais arrecadaram no país mais de R$ 4 bilhões. Em 2005, a arrecadação global dos cartórios ultrapassou R$ 3,5 bilhões. Esses valores compreendem o faturamento das serventias privatizadas e das oficializadas. Sustentamos que todos os cartórios deveriam ser oficiais, vertendo para os cofres públicos os importantes recursos que auferem. A PEC 356/04, apresentada na Câmara, tinha essa finalidade, mas foi devolvida ao autor por não contar com o número mínimo de assinaturas. Bastaria que outra PEC fosse oferecida, acolhendo modelo cujo pressuposto é a existência de quadro de servidores remunerados em patamar condizente com a responsabilidade, mas distante das cifras milionárias de hoje. Recursos não faltariam. Embora não estejam divulgados os dados de 2008, o faturamento dos cartórios do país, em 2006, seria suficiente para bancar toda a despesa prevista no Orçamento de 2009 relativamente à Câmara dos Deputados (R$ 3.532.811.091), ao Senado Federal (R$ 2.742.975.855), ao Ministério do Meio Ambiente (R$ 3.460.640.619) ou ao Ministério das Relações Exteriores (R$1.891.740.902). Trata-se, como se vê, de reinventar nosso sistema cartorial, redesenhando-o com o traço firme das instituições republicanas. A reinvenção do sistema, nos moldes sugeridos, apresenta óbvia dificuldade política. Haverá ainda, todavia, uma maneira simples de corrigir as distorções atuais na remuneração dos notários e registradores. Basta que uma lei preveja o aumento do número de cartórios conforme uma equação que combine quantitativos populacionais e um mínimo de atos remunerados em cada serventia. Assim, mais serventias extrajudiciais permitiriam uma mais equânime divisão do que é recolhido dos particulares, oferecendo-lhes uma melhor prestação do serviço, mais descentralizada e menos congestionada.”
Parabéns à coragem do procurador em abordar esse espinhoso tema.
O jurista Raymundo Faoro já disse em Os Donos do Poder, que o sistema judiciário e cartorial brasileiro constituiu-se historicamente num exemplo do patrimonialismo que marca até hoje o Brasil.
O procurador da República de Minas Gerais Edmundo Dias Netto Jr. analisa a questão que, acho, é fulcral para resolvermos os problemas brasileiros e para retirar entulhos autoritários e privilégios inconcebíveis de uma casta econômica e política que tem um poder extraordinário na vida da nação.
“O Sistema cartorial brasileiro constitui, hoje, o mais expressivo exemplo do patrimonialismo que marca nosso país. Basta ver que os tabeliães daqui são comumente tratados por “donos” de cartórios, que, no compasso da mesma metáfora, ressoam em suas placas e timbres os nomes pessoais dos seus titulares. Ocorre que a atividade notarial e de registro consiste em um serviço público que o Estado delega à exploração em caráter privado. Para remunerar-se, o particular delegatário recolhe emolumentos -que nada mais são que uma espécie de taxa- dos usuários do serviço. Apenas parte disso é repassada ao Estado, pela função fiscalizatória que desempenha no setor. Em clara inversão de valores, o que cabe ao particular supera, em geral, algumas vezes o que é recolhido aos cofres públicos. Como tal atividade é exercida em caráter privado, não tem incidência o teto remuneratório do serviço público. Também não tem aplicação a súmula vinculante do STF que veda o nepotismo. Assim, o constituinte de 87/88 acabou mantendo uma classe, a dos notários e registradores, com privilégios que nem sequer os agentes políticos tiveram a ousadia de prever expressamente para si mesmos. Indaga-se, porém -sem fazer pouco do papel do tabelião, indispensável a que se confira certeza a determinados registros de interesse público-, qual dessas funções é mais importante (ou seja, pressuposto de existência das demais atribuições do Estado) para o desenvolvimento de um país. Na última semana, o Conselho Nacional de Justiça editou duas resoluções que estabelecem regras para a realização de concursos públicos em cartórios, inclusive para os que, mesmo após a Constituição de 88, foram preenchidos à margem do procedimento impessoal nela determinado. Na contramão disso, dois movimentos se articulam. O primeiro é para que os serviços notariais e de registro deixem de ser fiscalizados pelo Judiciário. O segundo é a tramitação de proposta de emenda constitucional, que em breve deve ser votada na Câmara dos Deputados, com o objetivo de efetivar nas funções os tabeliães que, à margem de concurso público, tenham-nas exercido entre 88 e 94. Bem ao contrário do disposto na resolução 80 do CNJ, a citada PEC põe os notários e registradores no ponto de fuga de uma perspectiva privada que muitos lutam para banir da cena pública nacional. Nessa distorcida maneira de enxergar o mundo, tais cartorários não concursados, não podendo ser considerados donos de suas serventias, passam a assumir o sentido figurado de meros possuidores. Assim, nada mais natural aos nossos patrimonialistas que possam esses tabeliães, pelo exercício de posse longa e pacífica, ter finalmente reconhecido seu domínio sobre as serventias extrajudiciais, mediante a invenção de nova espécie de usucapião que os efetive, enfim, em seus cartórios. De acordo com dados que foram divulgados na página do CNJ na internet, somente em 2006 as serventias extrajudiciais arrecadaram no país mais de R$ 4 bilhões. Em 2005, a arrecadação global dos cartórios ultrapassou R$ 3,5 bilhões. Esses valores compreendem o faturamento das serventias privatizadas e das oficializadas. Sustentamos que todos os cartórios deveriam ser oficiais, vertendo para os cofres públicos os importantes recursos que auferem. A PEC 356/04, apresentada na Câmara, tinha essa finalidade, mas foi devolvida ao autor por não contar com o número mínimo de assinaturas. Bastaria que outra PEC fosse oferecida, acolhendo modelo cujo pressuposto é a existência de quadro de servidores remunerados em patamar condizente com a responsabilidade, mas distante das cifras milionárias de hoje. Recursos não faltariam. Embora não estejam divulgados os dados de 2008, o faturamento dos cartórios do país, em 2006, seria suficiente para bancar toda a despesa prevista no Orçamento de 2009 relativamente à Câmara dos Deputados (R$ 3.532.811.091), ao Senado Federal (R$ 2.742.975.855), ao Ministério do Meio Ambiente (R$ 3.460.640.619) ou ao Ministério das Relações Exteriores (R$1.891.740.902). Trata-se, como se vê, de reinventar nosso sistema cartorial, redesenhando-o com o traço firme das instituições republicanas. A reinvenção do sistema, nos moldes sugeridos, apresenta óbvia dificuldade política. Haverá ainda, todavia, uma maneira simples de corrigir as distorções atuais na remuneração dos notários e registradores. Basta que uma lei preveja o aumento do número de cartórios conforme uma equação que combine quantitativos populacionais e um mínimo de atos remunerados em cada serventia. Assim, mais serventias extrajudiciais permitiriam uma mais equânime divisão do que é recolhido dos particulares, oferecendo-lhes uma melhor prestação do serviço, mais descentralizada e menos congestionada.”
Parabéns à coragem do procurador em abordar esse espinhoso tema.
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quinta-feira, 28 de maio de 2009
As viagens de Gilmar Mendes
VIAGENS, VIAGENS
congressoemfoco.com.br
Na manchete do site Congresso em Foco, célebre pela série recente sobre as viagens pagas dos parlamentares brasileiros, "Gilmar gastou R$ 114 mil em diárias desde 2008". Diz que as "despesas do presidente do Supremo em viagens nos 13 primeiros meses de gestão superam em 3,6 vezes o dinheiro usado durante todo o mandato de 24 meses pela antecessora, Ellen Gracie" (quadro acima). Na média mensal, "o atual recebe aproximadamente R$ 8.700 em diárias, seis vezes o valor registrado a cada mês por Ellen, R$ 1.300".
congressoemfoco.com.br
Na manchete do site Congresso em Foco, célebre pela série recente sobre as viagens pagas dos parlamentares brasileiros, "Gilmar gastou R$ 114 mil em diárias desde 2008". Diz que as "despesas do presidente do Supremo em viagens nos 13 primeiros meses de gestão superam em 3,6 vezes o dinheiro usado durante todo o mandato de 24 meses pela antecessora, Ellen Gracie" (quadro acima). Na média mensal, "o atual recebe aproximadamente R$ 8.700 em diárias, seis vezes o valor registrado a cada mês por Ellen, R$ 1.300".
segunda-feira, 25 de maio de 2009
A liberdade e seus limites dicotômicos
O juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor doutor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP, Guilherme Guimarães Feliciano, dá uma aula sobre as contradições da dita de iniciativa e o direito dos trabalhadores.
Acho que há neste caso a mesma dicotomia que existe em relação a questão da liberdade DE imprensa e da liberdade DA imprensa.
Isto é, há uma diferença de conceito e de atitude e de legitimidade entre a liberdade DE iniciativa e liberdade DA iniciativa de um indivíduo que pretende rejeitar as leis em detrimewnto da maioria da sociedade. Diz o juíz:
"Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado
EM EDITORIAL do dia 5/4, esta Folha teceu considerações no mínimo inquietantes sobre as decisões liminares proferidas pelo presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Embraer) e pelo vice-presidente do TRT da 3ª Região (Usiminas), ambas condicionando a formalização de dispensas massivas e abruptas de trabalhadores à prévia tentativa de negociação e à apresentação de balanços patrimoniais.Outros órgãos de imprensa têm criticado abertamente o que denominam "ativismo judicial". Em resumo, censuram-se tais decisões porque, baseadas isoladamente em princípios constitucionais, disseminariam insegurança jurídica, com intervenções abusivas na liberdade de iniciativa.Na realidade, decisões judiciais que condicionam dispensas coletivas à prévia negociação coletiva e à demonstração contábil das alegadas dificuldades econômico-financeiras não radicam "apenas" nas ideias de dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.O artigo 7º, I, da Constituição dispõe explicitamente ser direito dos trabalhadores urbanos e rurais a "relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos".Mas não é só. A Constituição é bem clara ao dispor que a tal "indenização compensatória" é apenas uma das garantias gerais do empregado contra as dispensas arbitrárias (ainda que não sejam propriamente abusivas); e, tratando-se aqui de direitos sociais fundamentais, vale sempre invocar a norma do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem os outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados".Ora, se a própria Constituição autoriza o reconhecimento de direitos decorrentes dos princípios perfilhados pelo sistema jurídico brasileiro -entre os quais o da dignidade da pessoa humana, o do valor social do trabalho e o da vedação do abuso de direito (veja-se o artigo 187 do Código Civil)-, qual a impropriedade de julgar com base em tais princípios, derivando deles condicionalidades que, se não previstas textualmente na lei ordinária, estão em consonância com o sistema constitucional?Alguém dirá que uma dispensa coletiva promovida só para aumentar ou preservar a margem de lucro da empresa, sem nenhuma transigência com o valor-trabalho e a pretexto de uma crise mundial econômico-financeira -mas com perdas que não se documentam- não exala abusividade? E, se é abusiva, não vai além da mera "dispensa arbitrária" (à qual tem direito o empregador individual), desafiando o controle da Justiça do Trabalho?Aliás, quando se diz que tais decisões promovem "intervenção abusiva" na liberdade de iniciativa e de empreendimento, não se está a esgrimir exatamente um princípio, inserto no artigo 170 da Constituição? Por que, então, o horror aos princípios?Em verdade, o que há naqueles julgados não é viés ideológico ou "ativismo" de qualquer ordem. É, sim, uma inexorável mudança de perspectiva.Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado do texto constitucional. Manda a hermenêutica contemporânea, libertada dos arreios do positivismo jurídico (e diz-se dela, por isso mesmo, ser "pós-positivista"), que se interpretem as leis conforme a Constituição; não o contrário.Eis aqui, altaneiro, o princípio da supremacia da Constituição, festejado aos quatro ventos desde a célebre sentença do juiz Marshall no caso Marbury x Madison. Se a lei é contrária à Constituição, deve ser expungida do sistema; se a lei admite variegadas interpretações, deve-se optar pela interpretação conforme a Constituição; se a lei é lacunosa, deve-se completá-la com os princípios constitucionais.Tudo isso mais os olhos atentos à realidade social e à sua contextualidade, porque o Direito não se exaure nos textos. Tampouco aqui se revelam quaisquer novidades. Cuida-se daquilo que o jurista português Menezes Cordeiro identificou, há mais de uma década, como integração vertical: a montante, o pré-entendimento do magistrado; a jusante, a análise dos fatos sociais ao seu redor. Sem tal norte, a Justiça claudicaAliás, considerando que Marbury x Madison é de 1803, não há, naqueles dois julgados, absolutamente nada de revolucionário, neossocialista ou "ativista". Há, sim, boa técnica. Bom senso. E boa dose de coragem."
Acho que há neste caso a mesma dicotomia que existe em relação a questão da liberdade DE imprensa e da liberdade DA imprensa.
Isto é, há uma diferença de conceito e de atitude e de legitimidade entre a liberdade DE iniciativa e liberdade DA iniciativa de um indivíduo que pretende rejeitar as leis em detrimewnto da maioria da sociedade. Diz o juíz:
"Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado
EM EDITORIAL do dia 5/4, esta Folha teceu considerações no mínimo inquietantes sobre as decisões liminares proferidas pelo presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Embraer) e pelo vice-presidente do TRT da 3ª Região (Usiminas), ambas condicionando a formalização de dispensas massivas e abruptas de trabalhadores à prévia tentativa de negociação e à apresentação de balanços patrimoniais.Outros órgãos de imprensa têm criticado abertamente o que denominam "ativismo judicial". Em resumo, censuram-se tais decisões porque, baseadas isoladamente em princípios constitucionais, disseminariam insegurança jurídica, com intervenções abusivas na liberdade de iniciativa.Na realidade, decisões judiciais que condicionam dispensas coletivas à prévia negociação coletiva e à demonstração contábil das alegadas dificuldades econômico-financeiras não radicam "apenas" nas ideias de dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.O artigo 7º, I, da Constituição dispõe explicitamente ser direito dos trabalhadores urbanos e rurais a "relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos".Mas não é só. A Constituição é bem clara ao dispor que a tal "indenização compensatória" é apenas uma das garantias gerais do empregado contra as dispensas arbitrárias (ainda que não sejam propriamente abusivas); e, tratando-se aqui de direitos sociais fundamentais, vale sempre invocar a norma do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem os outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados".Ora, se a própria Constituição autoriza o reconhecimento de direitos decorrentes dos princípios perfilhados pelo sistema jurídico brasileiro -entre os quais o da dignidade da pessoa humana, o do valor social do trabalho e o da vedação do abuso de direito (veja-se o artigo 187 do Código Civil)-, qual a impropriedade de julgar com base em tais princípios, derivando deles condicionalidades que, se não previstas textualmente na lei ordinária, estão em consonância com o sistema constitucional?Alguém dirá que uma dispensa coletiva promovida só para aumentar ou preservar a margem de lucro da empresa, sem nenhuma transigência com o valor-trabalho e a pretexto de uma crise mundial econômico-financeira -mas com perdas que não se documentam- não exala abusividade? E, se é abusiva, não vai além da mera "dispensa arbitrária" (à qual tem direito o empregador individual), desafiando o controle da Justiça do Trabalho?Aliás, quando se diz que tais decisões promovem "intervenção abusiva" na liberdade de iniciativa e de empreendimento, não se está a esgrimir exatamente um princípio, inserto no artigo 170 da Constituição? Por que, então, o horror aos princípios?Em verdade, o que há naqueles julgados não é viés ideológico ou "ativismo" de qualquer ordem. É, sim, uma inexorável mudança de perspectiva.Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado do texto constitucional. Manda a hermenêutica contemporânea, libertada dos arreios do positivismo jurídico (e diz-se dela, por isso mesmo, ser "pós-positivista"), que se interpretem as leis conforme a Constituição; não o contrário.Eis aqui, altaneiro, o princípio da supremacia da Constituição, festejado aos quatro ventos desde a célebre sentença do juiz Marshall no caso Marbury x Madison. Se a lei é contrária à Constituição, deve ser expungida do sistema; se a lei admite variegadas interpretações, deve-se optar pela interpretação conforme a Constituição; se a lei é lacunosa, deve-se completá-la com os princípios constitucionais.Tudo isso mais os olhos atentos à realidade social e à sua contextualidade, porque o Direito não se exaure nos textos. Tampouco aqui se revelam quaisquer novidades. Cuida-se daquilo que o jurista português Menezes Cordeiro identificou, há mais de uma década, como integração vertical: a montante, o pré-entendimento do magistrado; a jusante, a análise dos fatos sociais ao seu redor. Sem tal norte, a Justiça claudicaAliás, considerando que Marbury x Madison é de 1803, não há, naqueles dois julgados, absolutamente nada de revolucionário, neossocialista ou "ativista". Há, sim, boa técnica. Bom senso. E boa dose de coragem."
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
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