sábado, 9 de outubro de 2010
Delírios de Kurosawa
Livro com relatos do set e exposição de pinturas de cena lembram o centenário de nascimento do cineasta japonês
Storyboard do filme ‘Ran’, pintado por Kurosawa; sob a imagem, o diretor descreve: ‘Hidetora perde sua cabeça no campo durante a tempestade’
ANA PAULA SOUSA
DE SÃO PAULO
Foi por medo de perder o cinema que Akira Kurosawa (1910-1998) voltou a pintar.
Artista plástico que, aos 18 anos, fora admitido na prestigiosa Nika Art Exhibition, Kurosawa rejeitou o pincel em nome dos filmes. Quando descobriu que podia pôr em movimento as cenas de sua imaginação, queimou todos os seus quadros.
Meio século se passou até que o artista japonês retomasse os pinceis. Mas se voltou a eles não foi pelas artes plásticas. A partir de "Kagemucha" (1980), com o financiamento para a produção mostrando-se difícil, ele decidiu desenhar seu filme.
"Ele dizia que, se fosse o caso de o filme não vingar, gostaria de, ao menos, deixar os desenhos de forma a perpetuar a imagem das cenas", diz Teruyi Nogami, braço direito do cineasta.
No centenário de nascimento de Kurosawa, os filmes que o cineasta desenhou e as histórias que Nogami vivenciou serão partilhados com os brasileiros.
A exposição "Kurosawa -Criando Imagens para Cinema" reúne 80 "storyboards" concebidos para os filmes "Kagemusha", "Ran" (1985), "Sonhos" (1990), "Rapsódia em Agosto" (1991), "Madadayo" (1993) e "Sob o Olhar do Mar" (2002). O livro "À Espera do Tempo" é o registro afetivo de seu dia a dia no set. Exposição e livro foram organizados em parceria com a Mostra Internacional de Cinema, que exibirá uma cópia restaurada de "Rashomon".
BELEZA E TERROR
Fascinantes e assustadoras, as imagens que estarão reunidas no Instituto Tomie Ohtake revelam as sombras que antecediam as tomadas.
Também nas entrelinhas do relato de Nogami aparece a perturbação do diretor que se desesperava se o sol fugisse antes que a tomada perfeita, com a luz por ele imaginada, tivesse sido feita.
Kurosawa gritava no set. Frequentemente, sentia-se só. Nas filmagens de "Dersu Uzala", na Rússia, embocava sozinho uma garrafa de vodca. Mas essas são apenas breves linhas do livro de Nogami, escrito em tom dedicado.
A Nogami interessa dividir com os leitores a intimidade da arte de Kurosawa. A arte que, como disse Martin Scorsese, ao participar de "Sonhos", "legou-nos um novo modo de olhar". Com palavras soltas, Scorsese apanhou o sentido desses desenhos: "Assombro. Vida e morte. Beleza e terror".
Assistente revela criação de Kurosawa
Teruyo Nogami conta que diretor arremessou prato de mingau contra ela, durante as filmagens de "Dersu Uzala"
"Pensando naquilo [a agressão], percebo que Kurosawa estava à beira do abismo", afirma hoje a produtora, aos 83 anos
DA REPORTAGEM LOCAL
Em sua autobiografia, Akira Kurosawa fez um agradecimento a Teruyo Nogami no prefácio. E também um mea-culpa. "Teruyo Nogami, meu braço direito (...), por seu esforço, do começo ao fim, a pessoa que faço sofrer."
Em "À Espera do Tempo", Nogami relembra a fúria que sentira quando, durante as filmagens de "Dersu Uzala" (1975), na Rússia, Kurosawa arremessou um prato de mingau em sua direção.
Hoje, aos 83 anos, ela revê a própria mágoa. "Pensando naquilo, percebo que Kuroswa estava à beira do abismo, cansado de tanta ansiedade e solidão. Arrependo-me de não ter me colocado em seu lugar."
Nogami, que virá a São Paulo para a abertura da exposição "Kurosawa - Criando Imagens para Cinema" e para o lançamento do livro, deu entrevista à Folha, com a ajuda de um tradutor. Mandou as respostas escritas à mão, em japonês.
"Não tenho tempo para aprender a mexer com os computadores", justifica ela. "As facilidades que vemos hoje eram inconcebíveis anos atrás. As pessoas vão mudar, e o cinema também."
Sempre alerta
Nagomi aproximou-se do ofício trabalhando com Mansaku Itami (1900-1946). Conheceu Kurosawa em "Rashomon" (1951), trabalhando como continuísta. Era responsável por evitar, por exemplo, que um ator aparecesse com o cabelo penteado de diferentes maneiras numa mesma cena e por anotar começo e fim de cada tomada.
Em "Ikiru" (1952), e pelas três décadas seguintes, tornou-se assistente de produção. A partir, de "Ran" (1985), virou a principal produtora de Kurosawa.
Como escreve o crítico Donald Richie, no prefácio do livro, seu trabalho era, às vezes, invisível, "mas suas sugestões sempre estavam presentes incorporadas".
Richie diz que, "dentro e fora do set, a única pessoa que Kurosawa não criticou e com quem nunca se encolerizou foi Nogami".
Olhar discreto
Nogami, provavelmente, sempre agiu com a mesma discrição e cuidado que utiliza para escrever. Mais do que ninguém, ela parecia compreender o diretor.
A autora conta, por exemplo, que antes do início das filmagens de "Rashomon", três assistentes, confusos diante do roteiro, procuraram o diretor em busca de explicações. Kurosawa limitou-se a dizer quer "o roteiro era ininteligível porque tratava do espírito ininteligível do ser humano".
Nagomi descreve, por exemplo, detalhes dos espelhos utilizados para iluminar as árvores da floresta de "Rashomon". Ela recorda também o vento que soprou na hora certa ou o sol que o diretor estava sempre a buscar, na posição ideal.
O cinema que Nogami viveu não tinha a tecnologia como muleta. Naqueles tempos, um erro na gravação da trilha sonora significa recomeçar o trabalho do zero.
Para Kurosawa, nada disso importava. "Ele consultava os câmeras, espiava pelo visor em todas as cenas, decidia a composição. Até a escolha das lentes ficava por sua conta", revela a auxiliar.
Kurosawa memorizava tudo que filmava. Nesse sentido, não precisava de continuísta. Por outro lado, tinha também a mania de filmar a mesma cena em lugares diferentes. E aí a chance de haver falhas de figurino e posição de câmera eram imensas.
Durante muitos anos, Nogami evitou erros. Hoje, evita que a memória do cinema perca. "Sou uma das testemunhas sobreviventes", diz.
(ANA PAULA SOUSA)
TRECHO
Dentre as responsabilidades [dos assistentes] estão trabalhos acessórios (...). São muitas as histórias, das quais não sabemos se devemos rir ou chorar. Irei me deter em apenas uma: a da colônia de formigas que atuou em "Rapsódia em Agosto".
(...) Kurosawa esboçara o desejo por formigas que parecessem formigas, por isso optou-se pela espécie "Lasius nipponensis", preta e lustrosa. Havia certa semelhança entre o nome comum do inseto, "kurokusa ari", e o nome do diretor (...) Usando-se uma média de 2 mil formigas por tomada, 10 mil delas garantiriam somente cinco tomadas. Não haveria tempo para apanhá-las com pinças. Por isso, foram adquiridos dez aspiradores de pó de tamanho pequeno e, em duas horas, foram capturadas milhares de formigas.
(...) No dia seguinte, a Equipe Formiga permaneceu à parte, enquanto filmávamos outra cena (...) Percebemos que o rosto de Tanaka estava soturno (...) As formigas arquitetaram uma fuga em massa.
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