segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Para Singer, almas capitalista e radical do PT seguirão convivendo

Para Singer, almas capitalista e radical do PT seguirão convivendo

João Peres
Rede Brasil Atual

Publicado em 29/11/2010, 11:34

Última atualização às 11:34


O cientista político André Singer. (Foto: José Cruz/ABr)
São Paulo – André Singer, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, entende que o PT é, hoje, um partido mais popular do que foi ao longo de sua história, ao mesmo tempo em que sofreu uma separação da classe média que não se resolverá facilmente.

Singer considera que a mudança teve origem em 2002, quando o partido aceitou incorporar os pontos previstos na Carta ao Povo Brasileiro, compromisso firmado durante o processo eleitoral como aceno ao capital, ação complementada pela inclusão do empresário José Alencar na condição de vice na chapa de Lula. “Se formos traduzir, o partido dizia: 'vamos conter o gasto público até o patamar em que o capital considere que está bem'”, avalia o pesquisador, que na última semana participou de um seminário organizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Na ocasião, ele expôs os argumentos contidos no artigo “A segunda alma do Partido dos Trabalhadores”. Na visão de Singer, 2002 foi o ano que trouxe para o seio da sigla, de maneira repentina, essa segunda alma, conectada ao capital. A primeira alma corresponde à origem do partido, nascido da cultura das décadas de 1970 e 1980, efervescentes em lutas de massa dos movimentos sociais e ideias radicais no âmbito acadêmico.

De sua fundação, em 1980, até 2002, o PT trazia dentro de si apenas esta primeira alma, representante do radicalismo por meio de ideias socialistas, que se refletia em diversas atitudes do partido: a decisão de não apoiar a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República, a rejeição ao apoio do PMDB no segundo turno das eleições presidenciais de 1989 e a recusa a firmar a Constituição nascida em 1988.

“A cara dessa síntese, curiosamente, é um projeto nacional desenvolvimentista com um viés pluriclassista”, avalia o professor, que entende que o governo de Lula foi exitoso em reverter a herança de gestões que tentavam promover um processo de “restauração”, ou seja, de assegurar o não cumprimento de alguns dos pontos previstos na Constituição antes rejeitada pelo PT. Ele discorda da avaliação de que, atualmente, a segunda alma prevaleça sobre a primeira, que teria ficado presente apenas no discurso. “Há um limite para a elasticidade das palavras”, define. “Quando se comparece a uma reunião do PT, o que se vê é a primeira alma bastante presente. Fala-se em uma proposta socialista, na necessidade de baixar os juros, em reforma agrária”.

Ou seja, ao mesmo tempo em que a atual gestão presidencial assegurou o cumprimento dos anseios dos setores que representam o capital, houve espaço para cumprir parte da agenda dos antigos segmentos, que esperam uma mudança radical na agenda social brasileira – uma conciliação que tem como figura fundamental Lula, líder político ímpar na habilidade em fazer lados diferentes conviverem.

Por isso, ele avalia que não há possibilidade de uma separação neste momento. Por conta dos acontecimentos históricos, tampouco acredita que a segunda alma do PT possa se juntar às alas ditas progressistas do PSDB, já que os dois partidos devem seguir como os únicos que têm condições de polarizar as disputas eleitorais de nível federal. Singer considera que não é verdadeira a avaliação de que os dois partidos se parecem em relação a programas, ponderando que as diferentes visões sobre papel do Estado são o eixo das diferenças. “O PSDB é um partido em que a ala progressista não domina. O que domina é uma concepção mercadista. Já o PT tem uma adesão à ideia de ordem, o que é bastante diferente de imaginar que o mercado possa resolver, sozinho, os problemas sociais.”

Mais popular, menos classe média
A situação se refletiu numa mudança da configuração da sigla. Se, durante as décadas de 1980 e 1990, o PT se caracterizava por um amplo apoio das classes média e alta urbanas, a partir de 2002 passa a conquistar o apoio dos estratos mais pobres da população. Para Singer, o ponto de mudança é 2005, quando, atingido pelas denúncias do chamado “mensalão”, o partido perde boa parte do apoio das classes médias – na visão do professor, um divórcio que pode ser irreparável. “Como o PSDB está muito identificado com a classe média, é uma tendência que, à medida em que cresça esse setor, como vem ocorrendo, isso gere uma preferência por esse partido. Mas essa mudança não é automática e devemos ponderar que o quadro não é estático, que os demais partidos também vão buscar mudanças”, pontua Singer.

Entre as classes baixas, no entanto, e em especial nas capitais periféricas, a legenda assiste a um forte crescimento, que resulta no fortalecimento de um processo já em curso, o da consolidação como única sigla de massas do Brasil. Em seguida à redemocratização, cabia ao PMDB esse papel, mas o PT se expandiu fortemente e, atualmente, tem a preferência de mais de 24% dos brasileiros, muito à frente das demais siglas, que figuram com no máximo 6%. O professor entende que 2002 foi, novamente, fundamental para a atração dos segmentos de menor renda. “O fator principal para que o subproletariado se torne a base do PT é a ideia de ordem, a noção de que não haverá uma quebra desta ordem.”

A divisão por faixas de rendimentos deixa mais clara a tendência. De acordo com as pesquisas Datafolha republicadas no artigo de Singer, o PT é a sigla de preferência de 22% dos que recebem até dois salários mínimos, contra 15% imediatamente antes da chegada ao poder e 8% em 1998, uma situação muito parecida à que se nota na faixa entre dois e cinco salários mínimos. Nos dois segmentos de renda mais alta, no entanto, o que se assiste é a um rápido declínio logo após o episódio do mensalão. Em 1992, as duas faixas de rendimentos mais baixos representavam, somadas, 40% do total do eleitorado que apontava o PT como sigla de preferência. Após a adesão à “ordem”, para usar os termos de Singer, o que ocorre é uma inversão destas proporções, que atingem 67% em 2002 e 85% neste ano.

Saber o futuro desta convivência entre duas almas é o desafio daqui por diante. Em seu artigo, ele expõe que a síntese do quadro atual é a retomada do projeto sustentado sobre uma aliança de classe, possibilidade que parecia revogada desde o golpe de 1964. “A convivência das duas almas do PT leva a paradoxos. (...) As diferentes descrições da mudança do PT, que apontam ora no sentido da opção maximizadora, ora da manutenção do sentido ideológico original, perdem de vista que o característico da fase que se abre em 2002 é a coexistência de dois vetores opostos em um mesmo corpo partidário.”

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