sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sebastião Velasco: "Vitória de Dilma é garantia de estabilidade na América do Sul"

"...A comunicação é o alimento que mantém a vida democrática. Por isso a censura é a primeira medida das ditaduras. Agora, a censura não é estabelecida apenas pelos regimes ditatoriais. Se você controla os órgãos de imprensa, controla também as informações que circulam na sociedade"

Especialista em Ciência Política, com ênfase em Economia Política e Relações Internacionais, nesta entrevista, Velasco explica porque “a vitória da presidenta Dilma Rousseff é uma garantia de estabilidade política na América do Sul”. Uma previsão feita com base nos resultados da política internacional praticada nos últimos oito anos pelo governo Lula, do qual, Dilma representa a continuidade.

Em sua análise, o professor da Unicamp -- pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) -- avalia, ainda, as inovações da política externa brasileira, a relação do Brasil com os Estados Unidos, a importância do MERCOSUL; e alerta, sobretudo, para a necessária postura soberana conquistada pelo país frente a um contexto internacional cada vez mais multipolar.

[ Dirceu ] Velasco, qual a inovação da política internacional adotada pelo governo Lula? Em quais aspectos ela se difere, por exemplo, da postura do governo anterior?


[ Velasco ] Até a chegada do governo Lula, em linhas gerais, a política externa do governo FHC era regida pela ideia de que o Brasil, país continental, poderia almejar um papel relevante, porém, modesto no cenário internacional. Isso tinha como implicação um perfil muito baixo no relacionamento com o mundo, em especial com os Estados Unidos. Privilegiava a diplomacia comercial e adotava uma atitude muito cautelosa na defesa dos interesses do país. A crítica que a oposição e o PT faziam à essa política incidia nestes pontos.

A política externa do governo Lula mostrou sua diferença antes mesmo de o governo se constituir, já na resposta dada à crise venezuelana: Marco Aurélio Garcia (assessor especial de relações internacionais da Presidência da República) viajou ao país como emissário pessoal do presidente eleito. Houve, portanto, um apoio para dar conta daquela situação que ameaçava a Venezuela com o espectro da guerra civil. Logo depois, a atitude afirmativa da política externa do governo Lula expressou-se na posição do Brasil durante a crise que culminou na invasão do Iraque.

A novidade não foi tanto a condenação deste ato de violência. Isso o ex-presidente Fernando Collor tinha feito em 1991, quando da Guerra do Golfo. O Brasil não a apoiou, ao contrário da Argentina. O que houve de inovador no governo Lula foi a desenvoltura da diplomacia brasileira e da atuação pessoal do presidente, que participou ativamente da frente internacional de oposição à guerra.

Como bem disse o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Brasil não tem a alternativa de ser um país normal, uma potência média como a Espanha ou a Holanda. Pelo seu tamanho, população, dotação de recursos, ou ele supera suas enormes disparidades sociais – e ao fazê-lo passa a ocupar no mundo um espaço proporcional a seu tamanho -, ou ele não supera esses entraves e se transforma em um país problemático.

[ Dirceu ] Como você avalia a relação EUA e Brasil, em especial, a questão dos tratados de livre comércio?


[ Velasco ] Historicamente, desde o século XIX, o Brasil mantém uma boa relação com os EUA. Em alguns momentos, como nos governos de Getúlio Vargas e do general Ernesto Geisel marcamos nossas diferenças. No caso do Getúlio Vargas, inclusive, como forma de encaminhar uma negociação favorável aos interesses brasileiros. A implantação da indústria brasileira, por exemplo, é resultado disso.

Na América do Sul, os EUA sempre viram o Brasil como um país de grande influência. Na realidade, o problema da relação entre os dois países não é a relação propriamente dita entre eles, mas a relação dos EUA com o mundo. Desde o final do século XIX, os EUA se voltaram para fora com um impulso muito grande, ocupando espaços e caminhando rapidamente para o exercício de uma posição hegemônica, condição que conquistam efetivamente após a II Guerra Mundial. No sistema de alianças que Washington montou nesse período, o Brasil é um país que tem um papel localizado, regional. Isso ficou muito evidente durante o golpe de 64, e no que se passou daí em diante.

O estremecimento que houve nos anos 70, com o Geisel e a política externa do seu governo – o “pragmatismo responsável” conduzido pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira – se deu porque o Brasil começou a se afastar do script e passou a exibir uma pauta de conduta autônoma. O episódio emblemático desta postura foi o reconhecimento da independência das colônias portuguesas na África.

O alcance desses conflitos, porém, era limitado. Apesar de ocasionalmente marcadas por problemas, nossas relações com os EUA nunca chegaram perto de um rompimento, ou de uma situação de hostilidade. Esse é o contexto no qual se dá o episódio do surgimento da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

A questão ALCA

A ALCA surge nos anos 1990, quando o Brasil estava realizando um movimento de enorme importância cujo resultado foi a constituição do MERCOSUL. Com ele, houve uma inflexão no relacionamento sempre delicado com a Argentina e tivemos a transformação de uma relação problema em uma aliança capaz de alavancar os dois países no plano internacional e, ao mesmo tempo, contribuir para a consolidação da transição democrática que estava em curso em ambos. Esse processo, como se sabe, foi muito mais complicado na Argentina do que no Brasil.

Então, quase que simultaneamente o primeiro Bush, presidente George Bush (pai), lançou a iniciativa, a ALCA, para as Américas: a proposta de se criar no hemisfério uma grande área de livre comércio que iria do Alaska à Patagônia. A diplomacia brasileira percebeu claramente essa iniciativa como uma ameaça ao seu modesto – ainda que importante – projeto de integração no Cone Sul.

Em 1994, essa ideia se converteu num acordo formal, assinado por todos os presidentes que participaram da reunião de cúpula em Miami. Desde então, o governo brasileiro passou a negociar a ALCA, ainda que com muitas reservas. Este processo termina em 2005, com a evidência de que ele não era viável e - naquilo que poderia ser - não interessava mais a nenhuma das partes. Então, a ALCA é uma carta que saiu do baralho.

[ Dirceu ] A ALCA começou no governo FHC e terminou no governo Lula. Quais as diferenças quanto a condução da questão nos dois governos?

[ Velasco ] Durante esse longo processo de negociações, há uma nítida diferença de comportamento entre o governo Fernando Henrique Cardoso e o governo Lula. A diplomacia brasileira nunca ficou encantada com a ideia da ALCA, mas nunca imaginou a possibilidade de dizer não à proposta. No governo Lula, a questão da ALCA já se apresentou de uma forma completamente diferente. Ela tinha sido tema da campanha eleitoral e houve mobilizações importantes da sociedade brasileira, com abaixo assinados contra a sua instituição.

Por outro lado, a América Latina havia se transformado enormemente. Já tínhamos Hugo Chávez na Venezuela, a crise argentina, enfim, as condições para a realização do que os EUA intentavam com o projeto da ALCA, em meados da década (2005), já não estavam mais presentes.

Brasil e Argentina: da rivalidade à aliança

[ Dirceu ] Qual a importância do MERCOSUL para o Brasil e para o continente?

[ Velasco ] O MERCOSUL é uma iniciativa de enorme importância, não apenas pelo seu significado econômico, mas pela mudança no relacionamento político entre o Brasil e a Argentina que se cristaliza no bloco. A necessidade imperiosa desta mudança já se fazia sentir ao longo dos anos 70.

Nessa época, o renomado cientista político Hélio Jaguaribe escreveu um trabalho sobre a inserção do Brasil no mundo, em que dizia exatamente que a condição para o nosso país ampliar seu grau de liberdade no relacionamento com os EUA era a transformação da rivalidade histórica com a Argentina em uma aliança sólida.

A importância do MERCOSUL, então, é enorme. A América do Sul hoje é completamente diferente do que era no passado. Os planos, os cenários de guerra com que as Forças Armadas de um lado e do outro trabalhavam não existem mais. No plano comercial e econômico, a Argentina é um dos principais parceiros do nosso país.

O MERCOSUL viveu um problema muito grande, que tem relação direta com as crises financeiras no final da década de 90 - a desvalorização do Real (1998), sobretudo, e mais adiante a crise dramática do peso argentino. Essas crises levaram os governos a tomar uma série de medidas defensivas. Mas o MERCOSUL continuou vivo e é o elemento decisivo, a mola propulsora, a plataforma de lançamento de um projeto maior que é a integração sul-americana.

O contrapeso da China

[ Dirceu ] Em relação a Ásia e a China, como você vê essa região e esse país hoje no mundo e o envolvimento deles com os EUA?


[ Velasco ] A China é a grande novidade da virada do século. É um país que se constrói como um contrapeso à potência ou potências hegemônicas. Terminada a Guerra Fria, os EUA detiveram não só uma posição de supremacia inconteste no sistema financeiro e uma base industrial muito forte, mas também uma predominância militar indiscutível.

Essa situação deu margem a um enorme debate, logo no inicio dos anos 90, após a Guerra do Iraque. Tratava-se de saber se essa situação era circunstancial ou se era uma estrutura permanente, se caminharíamos para um processo de desconcentração do poder mundial. Isso que era objeto de especulação nos anos 90, no final da primeira década do século XXI, parece uma questão superada.

Os EUA continuam sendo o país predominante, mas o sistema caminha para uma configuração multipolar e o pólo que cada vez mais ascende como o contrapeso é a China. De saída, pelo seu dinamismo econômico fora do comum, nunca visto. Nós vivemos algo parecido no Brasil, mas a China é um país muito maior, com uma população de mais de um bilhão de habitantes. Os números absolutos são incomparáveis.

Há alguns anos, li em um estudo do embaixador Amaury Porto de Oliveira, grande conhecedor da China, que o número de trabalhadores sazonais – que saem do campo e circulam pelo país em busca de trabalho – era de cerca de 80 milhões. Uma coisa impressionante. É como se fosse um México todo. Então, os números absolutos são outros.

O Brasil cresceu muito, a taxas comparáveis (à China), em certo período. Mas a China vem mantendo taxas de crescimento “milagrosas” há décadas. Isso envolve transformações estruturais muito grandes. A China integra a economia asiática, é o principal parceiro da Índia, Coréia, mesmo do Japão etc. Mas não é só isso, tem uma face financeira deste crescimento – fundos soberanos, aplicação em papéis americanos, investimentos em ativos reais, etc. Então, entre os dois países, EUA e China, existe uma relação de complementaridade e de tensão neste campo.

Agora, a China tem uma enorme dependência enérgica e investe pesadamente no mundo todo - na África e na América Latina - em busca do que é necessário para a alimentação deste sistema econômico tão dinâmico. O problema do relacionamento da China com os EUA e a Europa é que ela não faz parte do sistema de segurança montado pelos EUA.

O Japão também cresceu de forma extraordinária em passado não muito distante. Só que o Japão não apenas fazia parte do sistema de alianças dos EUA, como mantinha tropas americanas em seu território. Então, o dinamismo econômico do Japão não tinha o mesmo impacto, nem o significado geopolítico da expansão chinesa.

Como a China não está na órbita política dos EUA, o Estado chinês não pode apostar no mercado para regular o abastecimento dos recursos essenciais a seu sistema econômico. Porque os circuitos desse mercado são protegidos pela força militar da potência hegemônica, e nada garante que essa força não venha a se voltar contra a China em dado momento. Então, o tratamento da questão energética pela China não é e não pode ser estritamente econômico. As considerações de segurança se fazem presentes nas relações comerciais e nos investimentos. Os chineses tratam de estabelecer relações políticas com seus parceiros, e, mais recentemente, preparam-se para garantir militarmente as rotas marítimas vitais para a sua economia.

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