domingo, 19 de dezembro de 2010

Balanço do PIG - fsp : Lula honrou boa parte dos compromissos assumidos numa trajetória épica 2

OPINIÃO

NOVO MUNDO ABRE AS PORTAS PARA O BRASIL CRESCER

A maior parte dos oito anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva combina de modo extraordinário estabilidade política e calmaria social a um nível de crescimento contínuo da renda per capita também raras vezes visto pelo menos na história moderna do país.
Esses anos parecem ainda mais positivamente exóticos se considerado que o país vive em regime democrático, com taxas crescentes de participação política e social (por meio do voto e de associações) e, de quebra, numa rara fase de redução da desigualdade de renda.
Mas, não faz mais que quatro anos, ainda era disseminado o pessimismo sobre as perspectivas de crescimento econômico do país.
Era comum a ideia de que a economia não poderia crescer mais que 3% ano sem que logo ressurgissem sintomas históricos de limitação do crescimento: inflação e/ ou problemas nas contas externas, "deficits externos", derivados da importação de bens e serviços necessários para suprir o consumo excessivo. No entanto, o país cresceu, para surpresa quase geral.
Como foi possível aumentar o consumo das famílias, investir mais, distribuir renda, reduzir as taxas de juros, reduzir a dívida pública e, ainda assim, o país não padecer da histórica "restrição externa" ao crescimento?

O NOVO MUNDO CHINÊS
O governo Lula coincidiu com o momento em que se sentiu de modo mais intenso o efeito de também rara mudança histórica: a ascensão econômica da China e vizinhos. Não se trata de dizer que a China foi o único fator internacional, nem que o progresso brasileiro foi efeito imediato do crescimento chinês. Mas não é possível entender o caráter excepcional dos anos Lula sem entender o novo mundo chinês.
O aumento do consumo e do investimento chineses elevou os preços e as quantidades de bens exportados pelo Brasil. Nos anos de Fernando Henrique Cardoso, as exportações cresciam em torno de 4% ao ano. Nos anos Lula, a mais de 20%. Entre 2003 e 2007, o Brasil teve superavit nas suas transações de bens e serviços com o exterior, quase tantos anos de balança positiva como nos 60 anos anteriores.
A China barateou os preços de produtos manufaturados no mercado mundial. Em suma, ajudou a baixar a inflação mundial e contribuiu para a redução das taxas de juros pelo mundo. A quantidade de dinheiro disponível para investimento aumentou. A política monetária dos países ricos e as inovações financeiras também tiveram papel importante nesse "aumento de liquidez".
A progressiva abertura comercial e financeira, combinada à produtividade chinesa (salários baixos) e do complexo asiático, também incentivou ainda mais a transferência de unidades produtivas ("fábricas") do mundo rico para países "emergentes" com custos menores e mercados crescentes.
O Brasil importou mais a preços menores, recebeu mais investimento na produção e em ações, mais crédito a juro menor. Tornou-se mais capaz de pagar suas contas externas. A "sobra de dólares" permitiu o acúmulo de reservas internacionais em volume que ao fim de 2007 na prática superava o total da dívida externa. A eterna dívida externa acabou.
O novo mundo chinês, porém, não faz milagres sozinho. O governo Lula tomou a decisão de acumular reservas. Manteve a política de reduzir a dívida pública, mesmo que à base de aumento de receita, não de corte de gastos. Manteve o câmbio flutuante. O câmbio fixo e o risco de brutas e bruscas desvalorizações da moeda sempre foram fatores de incerteza: de dificultar planos de negócios, de afastar investidores e de contribuir para a manutenção de juros altos. Lula manteve o controle da inflação. Os juros reais caíram da casa dos 16% para 6%.

CONSUMO
A folga nas contas externas permitiu financiar consumo e investimentos crescentes sem inflação demasiada, sem que o país vivesse suas recorrentes crises de pagamentos externos.
O gasto do governo, das famílias e o investimento "na produção" cresceram. De 2004 a 2008, anos menos instáveis, o investimento cresceu o dobro do PIB. A despesa total do governo federal cresceu 3,3 pontos percentuais em relação ao PIB. Metade desse crescimento foi dirigido a benefícios sociais: Previdência (via salário mínimo), Bolsa Família, assistência social. Cerca de 15% ao aumento do investimento do governo federal em "obras".
O governo Lula, pois, tomou a decisão de utilizar a "folga" nas contas do país de modo a financiar a redistribuição de renda. Tal decisão influenciou também a perspectiva de empresários daqui e de fora sobre o potencial do mercado brasileiro, o que atraiu mais investimentos.
Note-se, porém, que a distribuição de renda dos anos Lula deveu-se também a melhorias derivadas da abertura econômica e outras reformas "liberais" dos anos 1990.

CONDIÇÕES
Outro porém muito importante é que a economia não teria respondido tão bem ao "novo mundo chinês" caso outras condições estabelecidas de longa data e melhorias incrementais não viessem ocorrendo.
O Brasil tem "commodities" variadas a oferecer (comida, metais e até petróleo) devido a um programa de pesquisas, investimentos estatais e privados e de subsídios que datam dos anos 1970, pelo menos (Embrapa, pós-graduação universitária, Petrobras).
Suas empresas, industriais ou do agronegócio, tornaram-se mais produtivas devido à abertura comercial dos anos 1990, que permitiu a importação de bens de capital e tecnologias avançadas -a abertura também se tornou um modo de evitar inflação, dada a concorrência de produtos estrangeiros.
O crescimento, inédito há 30 anos, aliado à redistribuição de renda via Estado, pacificou os ânimos sociais, já anestesiados pela participação dos movimentos de esquerda e sindicais no governo (ou mesmo seu controle direto pelo governo). O governo Lula também ofereceu programas ou subsídios para parte relevante (ou majoritária) das grandes empresas, o que minou outra possibilidade de oposição. A calmaria sociopolítica tornou-se uma outra condição de melhoria do ambiente econômico.


DEMANDA DA CHINA EMPURRA EXPANSÃO DO BRASIL

Quando Lula completou cem dias de mandato em março de 2003, era aprovado por 43% dos brasileiros. Naquele momento, a saca da soja valia US$ 12,3 no mercado internacional.
Oito anos depois, Lula deixa o governo chancelado por 83% dos eleitores, e a commodity é negociada a US$ 28,7.
Tanto a popularidade de Lula como o preço da soja dobraram nesse período.
O aumento percentual próximo é coincidência matemática. Mas ainda que não seja passível de mensuração, o impacto do salto no preço da soja e de outras commodities que o país exporta sobre o legado lulista é inquestionável.

A principal fonte dessa maré positiva é a China. Crescendo a uma taxa média anual de 10% pelas últimas três décadas, o país se tornou um sorvedouro de alimentos e matérias-primas brutas.
Como principal exportador de minério de ferro e segundo maior de soja do mundo, o Brasil despontou como parceiro ideal.
O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, do Insper, diz que, além da demanda da China, a conjuntura global também era favorável ao Brasil nos anos iniciais do governo Lula, com expansão robusta nos Estados Unidos.
O resultado foi que as exportações brasileiras tiveram um salto três vezes maior no primeiro mandato de Lula do que em toda a era FHC, atingindo US$ 138 bilhões em 2006. Depois alcançaram US$ 198 bilhões em 2008, ano em que eclodiu a crise financeira internacional.
O Brasil sentiu o baque da turbulência externa, mas se recuperou rapidamente. Em parte porque o governo, a partir de 2006, passou a comprar dólares avidamente.
As reservas internacionais (colchão de proteção do país contra choques externos) saltaram de US$ 40 bilhões no fim de 2002 para US$ 205 bilhões em setembro de 2008, quando estourou a crise. A munição acumulada nos anos de bonança ajudou a evitar a repetição da história de crises anteriores, quando a desconfiança sobre a capacidade de solvência da economia levava investidores a fugirem em massa.
Em 2008, o risco de calote do Brasil nem foi cogitado porque as reservas internacionais, pela primeira vez, eram superiores ao estoque de dívida externa total.
Mesmo com os países ricos se recuperando lentamente, as exportações brasileiras voltaram a crescer em 2010.
Por trás disso está novamente a China que, neste ano, desbancou os EUA como o país que mais importa do Brasil.

EFEITOS COLATERAIS
Os benefícios dos ventos chineses favoráveis ao Brasil são consensuais. Mas alguns efeitos colaterais da conjuntura causam preocupação.
Com o impacto da China, os produtos básicos, que eram 24% das exportações em 2002, hoje somam 45% do total. O peso dos manufaturados na pauta exportadora seguiu o rumo inverso.
Na década de 50, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) dizia que os países dependentes da venda de commodities estavam fadados ao fracasso, já que historicamente os preços desses produtos básicos tendiam à queda, e os dos manufaturados, à alta.
Renato Baumann, ex-diretor da Cepal no Brasil, diz que a discussão mudou de tom.
"Não há nada contra a exportação de commodities." Mas ressalta: "Desde que o país continue agregando valor aos produtos".
Caroline Bain, editora sênior de commodities da Economist Intelligence Unit, diz que a vantagem do Brasil é ter uma pauta diversificada de commodities. Ela espera que os preços dos produtos básicos, especialmente alimentos, permaneçam altos.
Mas ela e outros analistas, como Michael Pettis, professor de finanças da Escola Guanghua de Administração, da Universidade de Pequim, afirmam que a concentração da pauta exportadora do Brasil em commodities expõe o país ao risco de variações bruscas nos preços desses produtos que tendem a se mover juntos.
Esse cenário poderia ser deflagrado por uma desaceleração forte da economia chinesa. "O Brasil tem se tornado muito dependente do crescimento da China", resume Pettis

AMBIÇÃO POLÍTICA DEFINIU O TOM DA DIPLOMACIA

Junta desde 2003, a troica formada pelo presidente Lula, pelo chanceler Celso Amorim e por Marco Aurélio Garcia, assessor do Planalto, mudou a ênfase da política externa brasileira.
Ao foco econômico-comercial predominante desde a redemocratização foi agregado um viés político, definido como uma aposta na multipolaridade e no aumento da projeção do Brasil -com o reforço do pleito à cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O caminho para esse objetivo ora seguiu regras estabelecidas -como na decisão de aceitar o comando da missão no Haiti, revendo a posição de não participar de forças de intervenção-, ora passou pelo questionamento do status quo, caso do voto contrário às sanções contra o projeto nuclear do Irã. Como instrumento, houve reforço do Itamaraty, com aumentos de 48% no total de diplomatas (para 1.591), de 127% nos salários e de 39% nas representações no exterior -61 foram abertas, a maioria na África, no Caribe e na Ásia.
Para desagrado de quadros antigos, Amorim alçou uma nova geração ao comando da pasta. Hoje, a maioria dos ocupantes de cargos importantes foi promovida a embaixador por ele, entre os quais seu ex-chefe de gabinete Antonio Patriota, que será seu sucessor no governo de Dilma Rousseff.
Os resultados das mudanças são controvertidos; os críticos falam em dispersão de esforços e em confundir prestígio com resultados. Mas os fatores que a embasaram são claros.
Internamente, eles incluem a chegada ao poder do PT, com histórico de desconfiança em relação aos EUA, e a redução da vulnerabilidade econômica externa, que levava a posições defensivas.
Sandra Rios e Pedro da Motta Veiga, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento, elencam também a afirmação do agronegócio e da mineração como exportadores competitivos e os interesses das multinacionais brasileiras.
No mundo, houve o fim do consenso liberal dos anos 90, a "negligência" dos EUA em relação à América Latina, devido às guerras no Iraque e no Afeganistão, e a consolidação de novos polos econômicos, China à frente.
Combinados, os dois cenários mudaram a geografia comercial brasileira e resultaram numa proliferação de fóruns, com presença ou de iniciativa do Brasil.
G20 financeiro, G20 comercial, Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e Unasul (União Sul-Americana de Nações), por exemplo, não existiam em 2002.
Parte desses grupos -a maioria no eixo Sul-Sul- teve mais efeito no reforço do peso do país do que na promoção de posições comuns, dada a heterogeneidade de seus integrantes.

COMÉRCIO
No período, os EUA passaram de segundo destino das exportações nacionais (25,7% do total), logo atrás dos europeus, para o quarto lugar (9,8%) neste ano, em que a Ásia lidera (28,1%), seguida da América Latina.
A relação ambígua com a China -importadora de matérias-primas e competidora das manufaturas nacionais- vem exigindo um planejamento estratégico que deixou de ser feito.
O governo deu prioridade à Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), com o objetivo de abrir os mercados ricos aos produtos agrícolas, mas a crise de 2008 inviabilizou um acordo. Fez, com o Mercosul, poucos tratados comerciais -com Israel, Egito, Índia, andinos e África Austral.
Há quem reclame uma reorientação do comércio para os países desenvolvidos, mas a eficácia disso é posta em dúvida pelas dificuldades enfrentadas pelos países que privilegiaram a parceria com os EUA, como o México.
Na América do Sul, maior mercado da indústria nacional, o problema é inverso. A Unasul, voltada à coordenação política, é vista como uma "fuga para a frente" diante das dificuldades de avançar na integração econômica regional.
O Brasil acumula superavits com os vizinhos. Mais citado como líder regional, segundo a pesquisa Latinobarómetro, é cobrado pela redução dessa assimetria.
Mas falta consenso interno sobre o custo da liderança sul-americana, como se viu na reação negativa à posição branda do governo na nacionalização da refinaria da Petrobras na Bolívia e à renegociação do preço pago ao Paraguai pela energia de Itaipu.

CONTRADIÇÕES
Definido pela revista "Foreign Policy" como "the ultimate soft-power power" (a quintessência da potência de poder brando), o Brasil de Lula e Amorim gosta de enfatizar a paz com os vizinhos, o multilateralismo e a qualidade de mediador neutro, destacada na superativa diplomacia presidencial.
Mas a retórica idealista esbarrou várias vezes na realidade do poder. Foi o que ocorreu no caso do Irã, quando China e Rússia aderiram à posição dos EUA e o americano Barack Obama recuou da carta em que incentivava Brasil e Turquia a negociar.
Foi o que se viu também nas derrotas em disputas por cargos relevantes -as direções da OMC, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e da OMPI (órgão de propriedade intelectual).
O país aderiu a preceitos do "poder duro", como no reforço da dissuasão militar e na defesa do desenvolvimento autônomo da tecnologia nuclear. A política de não condenar países acusados de violar direitos humanos é relacionada à expectativa de apoio em disputas futuras.
Criticada pela contradição com os princípios nacionais, a atuação nessa área causou rivalidade entre o círculo de Dilma Rousseff e o Itamaraty. O primeiro atribui a Amorim leniência com violadores, enquanto diplomatas notam que foi Lula quem demonstrou mais efusividade com dirigentes autoritários



DESEQUILÍBRIO EXTERNO VOLTA A PREOCUPAR

GUSTAVO PATU
DE BRASÍLIA

Mais de dez anos depois, o país volta a enfrentar simultaneamente as três ameaças mais tradicionais à solidez de sua economia -inflação em alta, desequilíbrio crescente nas transações externas e excesso de gastos públicos.
É o que o início do segundo governo FHC tem em comum com o final do segundo governo Lula. Guardadas as proporções: antes, havia o risco imediato de insolvência e recessão; agora, há um muito aguardado ciclo de prosperidade a perder.
A resposta de 1999 foi uma reviravolta nas políticas da Fazenda e do Banco Central, com a adoção do que se convencionou chamar de tripé macroeconômico, composto por superavits primários (despesas com custeio e investimento abaixo da receita), metas de inflação e livre variação do câmbio.
Tornou-se lugar comum associar os sucessos dos anos Lula à permanência desses pilares na gestão petista. O tripé, porém, foi desgastado por uma década de uso e não basta mais como resposta às três ameaças.
Ao passar a poupar parte de suas receitas, o governo deteve a escalada da dívida pública -que, do equivalente a 60% da renda nacional oito anos atrás, caiu para pouco acima de 40%, patamar que mantém tranquilos os credores domésticos e estrangeiros.
Os superavits prometidos não são cumpridos desde o ano passado, e anuncia-se um forte corte de despesas para recuperar a credibilidade perdida. O que importa agora, no entanto, não é apenas produzir números capazes de reduzir a dívida. Pelo consenso entre economistas liberais e desenvolvimentistas, é preciso correr o risco político de conter gastos sociais para elevar investimentos em infraestrutura.
A livre flutuação do dólar também reverteu a perda de reservas em moeda forte e, com a posterior disparada dos preços dos produtos primários de exportação, contribuiu para tornar o governo brasileiro mais credor do que devedor externo. Mas o dólar só tem flutuado livremente para baixo, prejudicando as exportações e a indústria.
Não há mais o cenário internacional favorável que impulsionou a economia brasileira na maior parte dos anos Lula, assentado em deficits comerciais americanos e superavits chineses: os EUA hoje desvalorizam a moeda para recuperar a exportação e a produção, e os demais países se protegem como podem.
Na prática, o câmbio só continua flutuante porque o governo não tem sido capaz de administrar as cotações. Se e quando conseguir, a prejudicada poderá ser a política de controle da inflação.


EMPREGO E RENDA FORMAM HERANÇA VIRTUOSA

FERNANDO CANZIAN
DE SÃO PAULO

Em paralelo à rápida melhora no mercado de trabalho, e principalmente por causa dela, os anos Lula trouxeram uma grande transformação, para melhor, nos padrões de consumo e nos negócios das empresas. Por trás das mudanças, algo que não se via em décadas: uma notável melhora no padrão de distribuição de renda brasileiro.
Esse fato vem firmando um ciclo virtuoso no Brasil. Mais empregos estão gerando mais renda, que se transforma em mais consumo, que estimula investimentos produtivos que, por fim, requerem mais empregos para acontecer -reforçando toda a cadeia.

O estopim do processo, em 2003 e 2004, foram os gastos públicos. Primeiro via Bolsa Família. Depois, por reajustes acima da inflação para o salário mínimo e a explosão do crédito consignado (alta de 32% só em 2010), especialmente para dependentes do INSS. Hoje, é o setor privado que impulsiona o país.
O Brasil deve fechar os anos Lula com cerca de 14 milhões de novos empregos formais. Nas regiões metropolitanas, de cada 10 empregos gerados, 8 são com carteira assinada. Trata-se de uma inversão em relação ao padrão dos anos 90 e da segunda metade dos anos 80.
É esse o fato que explica especialmente a queda de mais de 40% no total de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza desde 2003.
O Brasil tem hoje cerca de 30 milhões de pessoas que ainda sobrevivem com menos de R$ 140 ao mês, o equivalente ao preço de um maço de cigarros por dia. Mas eles seriam mais de 50 milhões se a velocidade da diminuição da pobreza não tivesse se acelerado nos anos recentes.
Na média da década, segundo o Centro de Políticas Sociais da FGV-RJ, a renda do trabalho explicaria 67% da redução da desigualdade; o Bolsa Família, 17%; e os gastos previdenciários, 15,7%.
A grande pergunta a ser respondida com o tempo é se o ritmo de melhora alcançado por Lula vai continuar.
Disso depende o cumprimento da principal promessa de campanha da presidente eleita, Dilma Rousseff: erradicar a pobreza no Brasil.
Pelo critério do Ministério do Desenvolvimento Social, são pobres os 15% de brasileiros que ainda vivem com renda per capita mensal menor do que R$ 140.
Entre eles, 6,5% são considerados miseráveis por viverem ainda pior, com até R$ 70 ao mês (R$ 2,30 ao dia).
Sérgio Mendonça, economista do Dieese, avalia que a fase mais profícua da melhora do mercado de trabalho talvez tenha ficado para trás.
Até 2008, cada ponto de crescimento do PIB significava um aumento equivalente na criação de empregos. Hoje, essa relação é menor, de 1 ponto para 0,5.
"Mesmo assim, se o país puder crescer 5% ao ano, o emprego crescerá mais de 2%, mais até que o aumento do estoque de novos trabalhadores", diz. "Se isso de fato ocorrer, o desemprego poderá desaparecer da agenda de problemas."
Ficaria faltando chegar aos pobres e miseráveis (não alcançados pelo mercado de trabalho) por meio dos programas sociais. Segundo cálculos do economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, isso custaria R$ 21,3 bilhões/ano, além dos R$ 13,4 bilhões já gastos para atender 12,7 milhões de famílias no Bolsa Família.
Esse custo será tanto menor quanto maior for a criação das novas vagas de trabalho, que vem "dando o gás" atual para a economia.
Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, diz que o aumento do emprego faz com que a massa de renda na economia cresça a um ritmo anualizado de 30%. "É isso o que sustenta a migração dos mais pobres para a classe média", diz. A MB Associados estima que até 2016 a classe média (renda familiar mensal de R$ 1.530 a R$ 5.100) seja maioria no país.
Até lá, é de esperar que, embora com menos ímpeto, o ciclo virtuoso descrito acima mantenha o emprego, a renda e o PIB em rota de crescimento -tudo sobre um patamar de consumo maior.
Para Renato Meirelles, da empresa de pesquisas Data Popular, "Lula sai como o grande responsável pela democratização do consumo no Brasil". "O que antes era sonho para muitos, virou meta. Isso muda muita coisa."


FALTA DE PRIORIDADE CONVERTEU A SAÚDE EM ÁREA CRÍTICA

No último ano de FHC, o país vivia sua maior epidemia de dengue: 697.998 casos e 151 mortes. No último ano de Lula, os números são ainda mais impactantes: quase 1 milhão de casos e mais de 300 mortes.
Não foram só os números da dengue, no entanto, que pioraram. Desde 2007, a saúde é o problema que mais incomoda os brasileiros -na última pesquisa Datafolha (veja na página 3), essa é a área de pior desempenho do governo Lula para 23% da população. Em geral, o descontentamento se concentra na dificuldade de acesso e na qualidade da assistência. Faltam vagas nos hospitais, faltam médicos, faltam diagnósticos e terapias rápidas.
Pessoas aguardam cinco anos por cirurgia ortopédica. Na oncologia, a espera por radioterapia chega a seis meses -tempo longo demais quando o inimigo é o câncer.

Para especialistas em saúde pública, os problemas assistenciais se avolumaram em consequência da má gestão dos serviços, do subfinanciamento do setor e da falta de prioridade política.
No recém-lançado livro "Os Anos Lula - Contribuições para um Balanço Crítico 2003-2010" , a médica Ligia Bahia, professora de saúde pública da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), considera que a saúde teve uma "participação coadjuvante" no governo Lula.
"O país manteve-se na contramão das tendências mundiais de priorização das políticas sociais baseadas na oferta de bens e serviços públicos e não logrou responder as necessidades e demandas internas da saúde."
Mas, para Bahia, os problemas não significam uma "piora absoluta": "As pessoas também passaram a exigir mais. As pessoas estão envelhecendo e passam a usar mais o sistema de saúde", disse. Dos 190 milhões de brasileiros, a maioria -160 milhões- depende exclusivamente do SUS.

SUBFINANCIAMENTO
A fatia do gasto público em saúde vem caindo. Um estudo do médico sanitarista Gilson Carvalho, consultor do Conasems (conselho dos secretários municipais de Saúde), retrata que, em 1995, de todo o dinheiro gasto com saúde no Brasil, 62% era público (União, Estados e municípios) e 38% era privado.
Em 2009, a proporção do gasto público havia caído para 47%, e o privado já respondia por 53%. Não significa que os investimentos totais do SUS tenham diminuído.
Segundo o Ministério da Saúde, o orçamento executado foi de R$ 47,1 bilhões em 2002 e R$ 65,6 bilhões em 2009 (valores atualizados pela inflação). Neste ano, o previsto é de R$ 66,7 bilhões.
"Há uma lógica equivocada norteando o SUS, que passa por decisões políticas que priorizam o setor privado (prestadores de serviço), não o público. Houve incremento no orçamento em oito anos, mas continuamos com problemas básicos, como a dengue. Não se investe em prevenção", alerta Francisco Batista Júnior, presidente do Conselho Nacional de Saúde.
É praticamente consenso que o setor precisa de mais recursos e de que isso passa pela regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, que fixa percentuais mínimos de gastos com saúde. Mas como ela não define o que pode ser despesa com saúde, estima-se uma evasão anual de R$ 2 bilhões da área.
"O subfinanciamento é, sim, o principal problema do SUS. Hoje gastamos 3,5% do PIB em saúde. Temos que dobrar esse percentual. O modelo de gestão também precisa mudar, tornar-se menos rígido e passar a ser regido por metas e avaliação de desempenho", diz o ministro José Gomes Temporão (Saúde).
Um das apostas de Temporão para melhorar a gestão e evitar desperdícios foi o projeto que previa transformar hospitais em fundações estatais. Mas a proposta empacou no Congresso, em grande parte por oposição do PT.
Modelo parecido são as OSs (organizações sociais), já adotado em vários Estados brasileiros -SP, por exemplo, tem 25 hospitais geridos dessa forma. Uma vez gestoras dos serviços de saúde, essas entidades privadas podem comprar serviços, equipamentos médicos e remédios sem licitação e contratar funcionários sem concurso.
Os defensores dizem que esse modelo dá aos hospitais e postos de saúde públicos uma agilidade que, por exigências e burocracias legais, o poder público não tem. Já os críticos da terceirização alegam que falta controle sobre o uso do dinheiro público e que os interesses privados prevalecem. Há uma ação direta de inconstitucionalidade no STF contra as OSs.

MÉRITOS
Os especialistas reconhecem que a saúde também teve méritos na gestão de Lula, como a queda na taxa de mortalidade infantil e a criação do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento).
Temporão acrescenta o aumento do número de transplantes, de leitos hospitalares e de oferta de medicamentos. Lembra também que o Brasil interrompeu a transmissão do cólera e da rubéola e eliminou o sarampo.
E a dengue, ministro? "Não é um problema apenas da saúde e não se resolve apenas no âmbito do repasse e da fiscalização de recursos. Enquanto não houver uma vacina que imunize a população, não há outro caminho a não ser um enfrentamento multissetorial e uma maior participação popular. Sem isso, não haverá nada que consiga deter a dengue."

VISÃO OFICIAL
MAIORIA ELOGIA ATENDIMENTO, DIZ TEMPORÃO

O ministro José Gomes Temporão diz que 95% das pessoas são atendidas na primeira tentativa e 86,4% consideram o atendimento "bom", segundo a Pnad.


EDUCAÇÃO AVANÇA, E CARÊNCIAS FICAM MAIS PATENTES

O período Lula ficará marcado, no campo educacional, como aquele em que as deficiências do ensino básico (fundamental e médio) entraram de vez na pauta nacional, e não só de governo.
A prioridade social se evidencia em fatos de alcance simbólico, como a adoção do piso salarial de professores: não chega a dois salários mínimos, porém.
A escolarização do brasileiro aumentou só um ano, de 6,5 anos de estudo, em 2002 (último ano de FHC), para 7,5, em 2009. No mesmo intervalo, o analfabetismo foi de 11,9% para 9,7%.
O ensino superior no país avançou, mas devagar. O ensino técnico, menos ainda. Grosso modo, pode-se dizer que, mesmo nos níveis inferiores, apenas começaram a ser resolvidos os problemas de acesso à educação.

Permanecem sem abordagem comprovadamente eficaz os de fluxo (repetência) e qualidade (conteúdo).
Como resultado, o país está ainda longe de um sistema de ensino capaz de sustentar o surto de inovação necessário para posicionar-se no mercado mundial como algo mais que um grande exportador de commodities.
Com 98% de crianças matriculadas no ensino fundamental 1 e 2, dá-se o serviço por universalizado nesse nível. Ocorre que só 47,6% completam a oitava série até os 15 anos, como deveriam. Mais da metade dos alunos vai se atrasando e acaba por formar-se tarde -ou nunca.
Com isso, o ensino médio já principia desfalcado. Meros 50,9% dos jovens entre 15 e 17 anos, a idade adequada, estão inscritos no nível secundário. Repetências e evasões vão se acumulando. Mesmo acima dos 22 anos, só 35% terminam o secundário.
Não admira que só 14,4% dos jovens de 18 a 24 anos frequentem o nível superior. Um avanço sobre os 8,8% de 2002, mas muito aquém do necessário. No Brasil, 11% da população tem diploma universitário, contra 28% nos países mais desenvolvidos.
Parte das mazelas do ensino brasileiro começa nas creches e pré-escolas. Quanto mais cedo a criança inicia a escolarização, melhor se espera que se torne seu desempenho futuro. Apenas 18,2%, no entanto, chegam a ela antes dos quatro anos.

QUALIDADE
Ao apresentar uma sinopse de balanço do período Lula, o ministro Fernando Haddad destacou números positivos. O orçamento do MEC quase duplicou, alcançando R$ 52 bilhões em 2009. O investimento em educação foi de 4,1% do PIB a 5%.
Sem instrumentos para afetar diretamente o ensino fundamental e o médio, atribuições dos governos municipais e estaduais, o governo federal colheu parcos resultados em escala nacional.
Obteve a aprovação, no Congresso, do Fundeb, que ampliou o alcance do Fundef de FHC ao incluir o ensino médio no fundo que complementa o dispêndio educacional dos outros níveis de governo com verbas federais.
Buscou vincular os repasses à adoção de planos de melhora do ensino, mas os resultados são incipientes e de difícil avaliação. Criou ainda um indicador nacional, o Ideb, para monitorar a qualidade do ensino básico e o cumprimento da meta de chegar à nota 6 (escala de 0 a 10) na próxima década.
O MEC destaca a superação dos objetivos para 2009. A meta para os anos iniciais do ensino fundamental era 4,2, mas ficou em 4,6; nos anos finais, o alvo era 3,7 e se chegou a 4. No ensino médio, respectivamente 3,6 e 3,5.
No principal teste internacional, o Pisa, que avaliou a educação em 65 países em 2009, os estudantes brasileiros melhoraram, mas ainda estão na 53ª posição em leitura e na 57ª em matemática.
Resumo da avaliação: a educação básica brasileira está no vermelho -e melhora menos conforme se ascende nos níveis de ensino

PROUNI IMPULSIONA A EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR

O Brasil contava no final de 2009 com 6 milhões de estudantes universitários. Um aumento de 50% sobre os 4 milhões de 2003, quando teve início o primeiro mandato do presidente Lula.
Essa expansão pouco tem a ver com a política de criar novas universidades federais, contudo. O número de vagas oferecidos por elas aumentou em ritmo mais acelerado (71%), é fato, mas passou de 109 mil para 187 mil, meros 3,1% do total.
O crescimento se deu mesmo nos estabelecimentos de ensino superior privados. Eles respondem hoje por 74,5% das vagas oferecidas.
O quarto restante (24,5%) fica com todas as instituições do setor público juntas (municipais, estaduais e federais). Em 2003, essa participação era de 30%.
O governo Lula, em que pese toda a retórica de ampliação do setor público, reconheceu na prática que o potencial maior de crescimento estava nas universidades particulares. Por meio do ProUni (Programa Universidade para Todos), passou a "comprar" vagas suas, oferecendo bolsas de estudo para alunos de baixa renda em troca de isenções tributárias para escolas que aderissem ao programa.
Entre 2005 e 2010, quase 749 mil alunos foram beneficiados. Hoje são 453 mil bolsistas, quase 2,5 vezes o total de vagas oferecidas nas universidades federais. (ML)

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