Em "Film Socialisme", o diretor se transforma em adversário do público
ANDRÉ BARCINSKI
CRÍTICO DA FOLHA
Enquanto cineastas buscam expandir seu púbico e atrair cada vez mais gente para salas de cinema, Jean-Luc Godard faz o inverso: impõe tantas barreiras que o público acaba desistindo.
Há pelo menos meio século, ele tenta libertar o cinema de uma certa ditadura do olhar. Desafiando fórmulas e clichês, abriu os horizontes do cinema e criou uma nova forma de apreciá-lo.
Bem diferente do que fez em "Film Socialisme", seu mais recente filme-ensaio, um perverso jogo de adivinhação em que o público tenta descobrir que diabos o mestre quis dizer. A impressão é que Godard passou de cúmplice a adversário de seu público.
Uma coisa é usar o cinema como plataforma de experimentações estilísticas, o que Godard fez como ninguém. Outra é fazer um filme tão criptografado a ponto de alienar até o fã mais obsessivo.
LEGENDAS À DERIVA
Para dificultar de vez qualquer tipo de compreensão, Godard quis impedir que o filme fosse legendado devidamente em português.
Algumas cópias foram distribuídas com legendas que trazem apenas palavras que condensam o significado das frases e deixam à deriva quem não fala francês.
Mas há também versões com as legendas completas em cartaz. Desde que "Film Socialisme" foi exibido em Cannes, críticos vêm dando diferentes interpretações. Entre os temas abordados por Godard estariam o envelhecimento da Europa, a globalização, uma suposta "invenção de Hollywood" pelos judeus, a questão palestina, entre outros.
Mas a verdade é que o filme é uma coleção de imagens tão fragmentada e desconexa que dá margem a infinitas interpretações. Pense num tema, e eventualmente alguma analogia surgirá.
O filme é dividido em três partes. Na primeira, um navio viaja pelo Mediterrâneo. Alguns passageiros discutem filosofia e história, outros dançam numa discoteca. Até a poetisa punk Patti Smith aparece, com um violão.
Na segunda parte, uma equipe de TV filma o cotidiano de uma família interiorana. Num posto de gasolina, uma menina lê Balzac e uma lhama, isso mesmo, uma lhama fica amarrada a uma bomba de petróleo.
Na última parte, usa imagens de arquivo faroestes americanos, filmes de Charles Chaplin e até "O Encouraçado Potemkin" (1925) para ilustrar temas como a globalização, os confrontos entre israelenses e palestinos e a fome. O filme termina com a frase "Sem comentários".
O único convencional em "Film Socialisme" é o preço do ingresso. Aí, nada de experimentação: é pagar os cobres de sempre para ver a mais nova pirraça de Godard
Cinema de diretor tenta dar conta de mundo fragmentado
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DUAS COISAS MUDARAM: O APEGO SEMPRE CRESCENTE À FUNÇÃO DO CINEASTA COMO HISTORIADOR E O ISOLAMENTO PESSOAL
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Divulgação
Cena de ‘Coisas Assim’, primeira parte de ‘Film Socialisme’
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A atriz Anne Wyazemsky narra o que ocorreu durante a produção de "A Chinesa". Era 1967 e Jean-Luc Godard não tinha ainda nem metade dos 80 anos que completa hoje. Anne e ele já moravam juntos. E, no apartamento do casal, se davam as filmagens.
Com isso, acontecia de Anne ter uma briga com Godard à noite e, na manhã seguinte, ter de encenar a mesma briga para a câmera, com um ator no lugar do marido.
O exemplo, radical, ilustra a enorme proximidade que Godard estabeleceu entre seus filmes, sua vida pessoal e o momento histórico.
Foi sempre assim, desde o início, pois, embora "Acossado" (1960), filme de estreia, fosse baseado na história de um fora da lei, as semelhanças com o diretor eram muitas: ele também um amante de carros velozes e um rebelde capaz de roubar o caixa dos "Cahiers du Cinéma", a revista onde escrevia, ou de vender às escondidas um livro precioso do avô.
Nos outros filmes da década de 1960, essa proximidade é patente em diversos momentos: o musical "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), momento feliz da gravidez de Anna Karina, sua mulher.
A perda do filho, antes do nascimento, determinaria não só o afastamento do casal e as várias tentativas de suicídio (de parte a parte), como a mudança de tom que se pode notar em, por exemplo, "Viver a Vida" (1962) ou ainda em "Alphaville" (1965), este talvez uma última tentativa de reconciliação do casal, embalado nos versos de "Capital da Dor", de Paul Éluard.
No começo dos anos 60, a política já está em "O Pequeno Soldado" (1963), que aborda a guerra de independência da Argélia, ou em em "O Demônio das Onze Horas" (1965), sobre o surgimento da sociedade de consumo. Mais tarde, a ascensão dos grupos esquerdistas surgirá em "A Chinesa".
PROJETO
Todo esse tempo, Godard manteve-se fiel a seu projeto de origem: a criação de um cinema que dê conta de um mundo desestabilizado, fragmentado, inapreensível à narrativa linear.
Não escreve roteiros, para melhor absorver o acaso e os movimentos do instante. Em política, adota progressivamente uma atitude hostil ao gaullismo e à Guerra do Vietnã, que desembocará no esquerdismo em 1968 e, em seguida, na renúncia ao "cinema comercial", no momento em que era uma estrela midiática em escala mundial.
Após anos de desaparecimento, Godard voltou às salas nos anos 1980 e entremeou sucessos e fracassos.
Duas coisas, porém, mudaram: o apego sempre crescente à função do cineasta como historiador, por um lado, e o isolamento pessoal, por outro. Montou na Suíça um estúdio com tudo o que é necessário para fazer um filme, desde a filmagem até a montagem e a sonorização.
Godard, aos 80, é um gênio bem sozinho
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