quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

POLÍTICA - DITADURA - Maria Inês Nassif: Corte da OEA fez o que o STF deixou de fazer

16/12/2010

Maria Inês Nassif
Valor Econômico

Fatalmente isso iria acontecer: a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 militantes do PCdoB, durante a repressão à Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. A decisão da Corte faz o que o Supremo Tribunal Federal (STF) não fez, em abril, quando teve oportunidade: reconheceu que os crimes dos agentes de Estado não são políticos, mas contra a humanidade.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questionava a anistia a representantes do Estado acusados de torturar e matar opositores políticos durante o regime militar (1964-1985), foi derrubada, no final de abril, por sete votos a dois.

Prevaleceu a opinião do relator da matéria, ministro Eros Grau, de que não cabia ao Judiciário rever um “acordo político” que teria resultado no perdão para “crimes políticos” e “conexos”. Os fatos históricos não convalidam a tese de “acordo político”, e sequer a de “crime político”.

Da mesma forma, é possível contestar os argumentos do presidente do Supremo, Cezar Peluso, que falou em “generosidade”, no “princípio da igualdade” e da “legitimidade” das partes que fizeram o suposto acordo. O princípio da igualdade é altamente duvidoso: a própria OAB apresentou ao STF o caso de 495 integrantes da FAB que não foram beneficiados pela anistia. Da “legitimidade” mais ainda, pois quem impôs a lei foi o último governo militar, que tinha o poder das armas e uma bancada governista manietada. Aliás, aprovou a lei com os votos de uma maioria obtida artificialmente nas urnas, graças a mudanças na legislação eleitoral e partidária impostas seguidamente pelo regime, à medida em que a oposição ameaçava sua hegemonia no Legislativo.

Com sua decisão, o STF legitimou a anistia à tortura, considerada crime hediondo pela Constituição de 1988 – portanto imprescritível e inafiançável – , mesmo sabendo que os familiares dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia demandavam a condenação do país por esses crimes na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Anteriormente, a Corte havia anulado as auto-anistias dos regimes autoritários do Peru, da Argentina e do Chile. Era inevitável que fizesse o mesmo com o Brasil, na primeira ação relativa à ditadura militar no país julgada no âmbito da OEA. O risco de que uma decisão dessas do STF resultasse num constrangimento diplomático era evidente. O Brasil, afinal, é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Judiciário faz parte do Estado que deve cumprir Convenção

O presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, disse ontem que a decisão da Corte não obriga o Supremo a rever o seu julgamento. Se não havia a intenção do Estado de cumprir um acordo internacional — e o Judiciário faz parte do Estado –, não existiriam razões para que assinasse a Convenção. Peluso jogou a responsabilidade para outras instâncias: nada impede ao Executivo indenizar ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, como tem feito; também é possível resgatar o passado. De resto, a decisão da Corte é só “sinalização”. Não interfere na decisão do STF.

O resgate histórico desse período negro, que é a bandeira de instituições comprometidas com os direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos do regime militar, não é uma questão pessoal. Essa reivindicação tem sido tratada como uma vingança dos opositores da ditadura, contrária à “generosidade” expressa por uma lei de anistia ampla. Não foi por falta de generosidade que países vizinhos abandonaram leis que anistiavam agentes de Estado que torturaram e mataram. Foi pela convicção – expressa pela Corte Interamericana — de que a democracia no continente apenas se consolidará se houver um acerto com o passado. É preciso, no mínimo, consolidar a cultura de que o passado não é um exemplo a ser seguido.

O aparelho policial e militar foi altamente prejudicado pela presença de agentes que se acostumaram a viver à sombra e acima da lei. Quando se fala em abuso policial e do poder das milícias nas favelas do Rio, por exemplo, ninguém se lembra que a origem dessa autonomia policial diante das leis e perante o resto da sociedade remonta ao período em que o aparelho de repressão tinha licença para sequestrar, matar e torturar sem se obrigar sequer a um registro policial. E que a manutenção da tortura como instrumento de investigação policial existe, atinge barbaramente os setores mais vulneráveis da população e continua não sendo punido. A anistia a agentes do Estado tem se estendido, sem parcimônia, até os dias de hoje

Anistia não beneficiou torturadores, decide OEA
15/12/2010
por Celso Lungaretti, do Náufrago da Utopia, via Vermelho

Foi exemplar a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (vinculada à OEA), que, 15 anos após a apresentação a denúncia por parte de ONG’s defensoras dos DH, finalmente condenou o Brasil pelo “desaparecimento forçado” de 62 inimigos da ditadura militar, assassinados durante a repressão à guerrilha do Araguaia, na década de 1970.

Sabe-se que muitos foram aprisionados com vida e covardemente executados tendo as forças repressivas dado sumiço nos seus restos mortais.

Além desses 62 guerrilheiros seguramente mortos, a Corte afirmou existirem pelo menos mais oito desaparecidos no confronto.

De acordo com a sentença:

• contrariamente à aberrante decisão do Supremo Tribunal Federal, a anistia de 1979 não desobriga o Estado brasileiro da apuração desses casos, pois suas disposições “carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação”, “nem para a identificação e punição dos responsáveis” pelas mortes;

• a Lei de Anistia também não garante a impunidade dos responsáveis por “outros casos de graves violações de direitos humanos” durante a ditadura de 1964/85;

• o Estado brasileiro é “responsável pelo desaparecimento forçado” dos guerrilheiros mortos;

• deverá, portanto, promover uma investigação sobre os desaparecimentos, “a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja”;

• também lhe cabe desenvolver “todos os esforços” para encontrar ossadas dos combatentes, realizar um “ato público de reconhecimento de suas responsabilidades” e criar “um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos”, dirigido a “todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.

Finalmente, a sentença estimula a implementação da Comissão Nacional da Verdade, proposta do Programa Nacional dos Direitos Humanos que até agora não saiu do papel.

O Itamaraty confirmou que, pelas regras do direito internacional, o Brasil, na condição de signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é obrigado a cumprir a decisão.

Já o ministro da Defesa Nelson Jobim, manifestando-se sempre como representante da caserna e não do governo, levantou a possibilidade de o Brasil invocar a Lei de Anistia para continuar acobertando os culpados.

Ou seja, agora está também na contramão do Direito internacional, comprovando que sua manutenção na Pasta foi a pior de todas as escolhas ministeriais de Dilma Rousseff.

Quanto ao STF, ficou com a imagem em cacos, ao receber um puxão de orelhas explícito de uma corte internacional. Suas presidências reacionárias — a anterior e a atual — o desmoralizam e nos desmoralizam aos olhos do mundo.

Na prática, a morte chega antes

Mesmo que, em termos práticos, a decisão tenha vindo tarde demais para que os homicidas e torturadores venham a ser efetivamente punidos — os remanescentes estão no fim da vida e tendem a beneficiar-se da morosidade e infinitos recursos protelatórios possibilitados pela Justiça brasileira –, pelo menos a página da História será virada como se deve, com os culpados inculpados e as vítimas reconhecidas.

Quem sentir-se futuramente tentado a incorrer nas mesmas práticas hediondas e genocidas, vai estar sabendo que, já existindo um entendimento definitivo e inequívoco da questão, será grande a possibilidade de receber em vida o merecido castigo.

E que teses falaciosas como a da contrarrevolução preventiva e a da anistia recíproca jamais prevalecerão no longo prazo, acabando por ser varridas juntamente com o restante do entulho autoritário.

* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político

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