domingo, 27 de fevereiro de 2011

época - linguística,política e poder - lula - Quem disse que Dilma fala pouco?

Compartilhe37 Em seus primeiros 55 dias de mandato, a presidenta falou 38% a mais que Lula, o governante que foi criticado por discursar demais
Ricardo Mendonça
Foram raras as análises sobre as primeiras semanas do novo governo que deixaram de destacar a “discrição”, o “comedimento” e o “recato” da presidenta Dilma Rousseff em relação ao antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, ambos do PT. Muitos críticos consideraram um alívio o fim do mandato de um presidente que não saía do palanque e parecia estar constantemente em campanha, falando e palpitando publicamente muito mais do que seria desejável e apropriado para um presidente da República. Por sua moderação nas aparições públicas, Dilma passou a ganhar elogios justamente por falar menos que o ex-presidente.

Com quase 80% de popularidade, fortemente engajado na última campanha presidencial e com uma oferta jamais vista antes de câmeras, microfones e gravadores à disposição, Lula provavelmente foi o governante que mais discursou no período final de mandato desde a proclamação da República, em 1889. No segundo semestre de 2010, era comum a ocorrência de dois ou três pronunciamentos por dia. Em 14 de outubro, uma quinta-feira, Lula chegou a fazer seis discursos seguidos para plateias distintas, possivelmente um recorde para o intervalo de 24 horas.

Um levantamento estatístico sobre as falas públicas de Lula e Dilma nos primeiros 55 dias de governo de cada um, porém, mostra um Lula menos palavroso e uma Dilma mais loquaz. Da posse até a semana passada, quem falou mais, na comparação direta, foi Dilma. E sua vantagem não pode ser considerada pequena. Em quantidade de palavras, ela falou exatamente 38% a mais que o Lula do início de 2003. Em números absolutos, bateu o antecessor com uma vantagem de 10.684 vocábulos.

Esse tipo de levantamento só pode ser feito com esse grau de precisão porque a Secretaria de Imprensa da Presidência divulga em seu site as transcrições de todas as intervenções públicas do ocupante do cargo máximo da nação desde o dia 1º de janeiro de 2003, data da posse de Lula. A conta que hoje dá vantagem a Dilma leva em consideração os discursos lidos e improvisados, pronunciamentos em rede de TV, entrevistas concedidas à imprensa e ao programa de rádio Café com o presidente, agora rebatizado como Café com a presidenta.

Entre a posse e o dia 24 de fevereiro de 2003, Lula fez 17 discursos, deu apenas uma entrevista (uma rápida coletiva ao lado do então presidente da França, Jacques Chirac) e não participou de nenhum programa oficial de rádio (o Café com o presidente só foi criado no fim de 2003). No intervalo equivalente, Dilma fez 16 discursos, mas concedeu seis entrevistas e participou de três Cafés com a presidenta. Mesmo sem os programas de rádio, ela continuaria na frente de Lula, com 8.750 palavras de vantagem.

Se Dilma fala mais que Lula, como surgiu a impressão de uma presidenta calada no Planalto? Para o cientista político Rui Tavares Maluf, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a quem foram apresentados os resultados desse levantamento, a explicação pode estar no conteúdo das falas de cada um. “É possível que a retórica do Lula tenha muito mais impacto midiático que a retórica da Dilma”, diz. “É surpreendente notar que ela discursou mais, mas repare que ela não dá declarações polêmicas, não faz provocações.”

Outra hipótese de Maluf diz respeito ao tamanho simbólico de cada personagem. “Goste-se ou não da figura política, todos são obrigados a admitir que Lula tem uma tremenda história. Ele fundou o PT, perdeu três eleições antes de chegar lá, sempre liderou a oposição. Então é possível que as falas de Lula tenham sido muito mais reproduzidas, repercutidas e analisadas que as falas de Dilma, mesmo as não polêmicas. Parece natural que Lula tenha gerado mais expectativa.”

A medição aritmética dos discursos de Lula e Dilma também permite comparar a frequência de uso de determinados termos nos discursos de cada um. Com isso, é possível identificar diferenças de estilo, expressões que marcam o momento histórico e até mudanças de prioridades. Um dos casos mais evidentes ocorre com a palavra “fome”, muito repetida no discurso de Lula. Levando em consideração a expressão “Fome Zero”, programa de segurança alimentar que recebeu enorme ênfase em 2003, Lula citou esse vocábulo 117 vezes em seus primeiros 55 dias de governo, enquanto Dilma, até agora, só usou “fome” em seis ocasiões. A presidenta, em compensação, vence Lula com folga no uso da palavra “miséria”: 27 a 12.

Há casos de palavras usadas com regularidade por Lula que até agora não apareceram na boca de Dilma – pelo menos nos pronunciamentos oficiais. Desde a posse, ela não fez nenhuma referência à “reforma agrária” ou ao “PT”. O discurso de Lula também era recheado de citações a Deus, com expressões como “graças a Deus” ou “se Deus quiser”. Com Dilma, isso diminuiu.

No sentido inverso, a presidenta recorre mais a “educação”, “saúde”, “saneamento” e “direitos humanos”. A palavra “crack”, repetida 12 vezes por ela, não foi citada nenhuma vez por Lula. Como era de esperar, “mulher” e “mulheres” são mais frequentes agora. E ela também vence Lula no uso de expressões que remetem à ideia de avanço econômico, como “crescimento” e “energia”. O PAC, que não existia em 2003, já apareceu 35 vezes.

Para o cientista político Marcus Figueiredo, as substituições de palavras nos discursos oficiais têm forte relação com a conjuntura política vivida por cada um. “O discurso da fome está superado porque o Bolsa Família resolveu bastante esse problema”, diz. “O mesmo ocorre com a reforma agrária, que era um foco bem mais forte de conflitos nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas, de certa forma, foi encaminhada ao longo do governo Lula.”

Em algumas situações, nem a conjuntura ajuda. É o que ocorre com a palavra “meio ambiente”, por exemplo. É difícil imaginar outro tema que tenha conquistado tanto espaço ao longo da última década. Mas nem isso parece ter sido suficiente para que o tema entrasse com força no discurso oficial. Lula falou “meio ambiente” apenas duas vezes no início de seu mandato. Dilma fez três citações. Testes com “Amazônia”, “natureza” ou com a palavra “sustentável” dão resultados parecidos. “Esse é um caso típico de agenda governamental”, diz Figueiredo. “O que aparece no discurso do governante é a agenda do governante, não necessariamente a agenda da sociedade.”

Algumas mudanças são curiosas. Na transição Lula-Dilma, o empresário José Alencar deixou de ser vice-presidente da República, mas agora, vítima do câncer, passou a ser mais lembrado e homenageado nos discursos oficiais. Dilma o citou 16 vezes, seis a mais que Lula. Outra mudança curiosa ocorre com as expressões de tratamento. A palavra “companheiro” e sua variante de gênero, bordão tradicional dos petistas, eram repetidas à exaustão por Lula. Dilma não abandonou o termo, mas tem preferido chamar os outros de “querido” ou “querida”.

Apesar de ter falado mais que Lula no início do mandato, seria exagero dizer que Dilma discursa em demasia. Para o cientista político Fernando Abrucio, colunista de ÉPOCA, a comparação direta só favorece a presidenta hoje porque Lula, no início de 2003, falava muito menos que o necessário. “Ele era criticado por não dar entrevista, lembra? Depois, em 2010, mudou completamente e passou a ser criticado pelo excesso.” Abrucio afirma que em momentos de ajuste fiscal, como o atual, é natural que o governante fale pouco. “Quando Dilma começar a colher resultados de suas políticas, certamente vai falar mais do que fala hoje”, diz. Se a frequência de seus discursos aumentar na mesma proporção do padrão Lula, ela ainda corre o risco de virar a tagarela do Planalto.

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