Ainda que não tivesse sido esse o objetivo de sua autobiografia, na qual relatou há 19 anos a incrível trajetória que o transformara no todo-poderoso senhor, por mais de uma década, da quarta rede comercial de televisão do mundo, Walter Clark acabou por oferecer no livro – O Campeão de Audiência (veja a capa abaixo), que teve o jornalista Gabriel Priolli como co-autor, Editora Best Seller, 1991 – uma contribuição importante para a compreensão das relações muito especiais entre a TV Globo e o regime militar à sombra do qual floresceu. Além de rejeitar a conhecida imagem da emissora como uma espécie de porta-voz do “Brasil Grande” do ditador Médici, ele garantia nunca ter visto Roberto Marinho (foto no alto, da capa do livro promocional assinado por seu empregado Pedro Bial), “se humilhar diante de quem quer que fosse, milico ou não, presidente da República ou não. Ao contrário, é uma altivez que fica sempre no limite da arrogância.”
Clark referia-se à suposta independência do dono da Globo por “manter em torno de si homens de esquerda em cargos importantes” (citava Franklin de Oliveira, Evandro Carlos de Andrade e Henrique Caban) – inclusive depois que o SNI ampliou a pressão contra os dois últimos, com acusações contidas numa fita de vídeo que o dono da Globo fora convocado a assistir em companhia de Clark e Armando Nogueira. Explicitamente, admitia apenas que o regime “incomodava” a Globo, que enfrentou “o mesmo gosto amargo da censura, das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu: imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura”. Claramente na defensiva, o autor mostrava-se ressentido com os que o culpavam – na própria Globo, e mais até do que Marinho – pela submissão ao regime militar. Mas ao passar das opiniões subjetivas aos fatos concretos, acabava por confirmar o que pretendia desmentir: a docilidade das TVs (em particular a sua), em parte resultante do caráter precário das concessões de canais pelo governo, tinha uma longa história e já o atropelara antes, na TV Rio.
Essa emissora, na qual também foi autoridade máxima (com o título nominal de “diretor comercial”), Clark submeteu-se, sem reação, ao assalto dos lacerdistas – liderados pelo empresário Abrahão Medina, fazendo valer a condição de patrocinador de programas – no episódio da tomada do Forte de Copacabana, em 1964. Posteriormente, conseguiu o prodígio de entregar-se tanto ao governo estadual como ao federal, até mesmo depois do desafio do governador Carlos Lacerda (foto à esquerda) ao presidente Castello Branco. Clark confessou ter retirado do ar programas de Carlos Heitor Cony e Roberto Campos para satisfazer o coronel Gustavo Borges, chefe de Polícia do Rio, que o chantageava com a ameaça de mudar o horário da novela O Direito de Nascer, líder de audiência.
Da promiscuidade à cumplicidade
Não por acaso, a experiência da Globo acabaria por extremar a tendência à acomodação, a ponto de Clark contratar um ex-diretor da Censura (“o Otati”) para “ler tudo que ia para o ar” e, pior ainda, uma “assessoria especial” para cortejar o poder, formada pelo general Paiva Chaves, pelo civil linha dura Edgardo Manoel Erickson (“pelego dos milicos”, conforme disse) e mais “uns cinco ou seis funcionários”. O episódio que aparentemente o convenceu a ir tão longe chegava a ser cômico: um certo coronel Lourenço, do Dentel, tinha tirado a estação do ar em 1969, convocando Clark ao ministério da Guerra, porque Ibrahim Sued, na esperança de agradar ao Planalto, divulgara uma intriga plantada pelo grupo do general Jaime Portela, então na conspiração do “governo paralelo” juntamente com d. Yolanda Costa e Silva. Ibrahim foi preso e Clark (ao lado, numa capa da Veja em 1971) aprendeu a lição depois de levar um pito do coronel Athos, “homem de Sílvio Frota”.
Além da pretensa altivez de Marinho, impressionaram Clark a “integridade”, a “honestidade” e o “patriotismo” do general Garrastazu Médici, que depois de 1974 passara a frequentar seu gabinete na Globo para ver futebol aos domingos. Muita gente apanhava e morria nos cárceres da ditadura, mas para ele isso não podia, de forma alguma, ser coisa do ditador Médici: “Tenho a impressão de que ele não se envolveu com nenhum excesso, nenhuma violência do regime”. De quem era, então, a responsabilidade? “Foi coisa dos caras da Segunda Seção do Exército, do SNI, do Cenimar, do Cisa, a turma da segurança. E era tudo na faixa de major, tenente-coronel”. Pronto a absolver os poderosos, frequentadores de seu gabinete (até mesmo o general Ednardo D’Ávila‚ chamado no livro de “figura agradável”), e a condenar apenas o guarda da esquina, obscuro, Clark comete o disparate de afirmar que “a censura e as pressões não eram feitas pelos generais”, mas por “gente como o Augusto”, beque do Vasco que virou agente do DOPS. Mas se era assim, por que submeter-se a eles?
O autor recorreu ainda a outra desculpa para justificar o adesismo e o ufanismo tão escancarados na ocasião pela rede dos Marinho: “A Globo não fazia diferente dos outros”. E mais: “Se o Estadão não conseguia enfrentar o regime, se a Veja não conseguia, como é que a Globo, sendo uma concessão do Estado, conseguiria resistir à censura, às pressões?” O problema, para os críticos de Clark dentro da própria emissora, é que ela, como ele, parecia preferir aquela filosofia de que se o estupro é inevitável só resta relaxar e aproveitar. Daí os comerciais da AERP (Clark alega que foram feitos para evitar uma “Voz do Brasil” na TV, projeto de um certo coronel Aguiar), as coberturas patrióticas de eventos militares (Olimpíadas do Exército e o resto), as baboseiras ufanistas de Amaral Neto (foto à esquerda). “Era o preço que pagávamos para fazer outras coisas”, alegou. Não se deu ao trabalho de explicar que coisas eram essas. E ele mesmo admitiu na autobiografia que o apregoado Padrão Globo de Qualidade “acabou passando por vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”?
A Globo devia ao regime, como ficou claro no relato de Clark, até mesmo a introdução da TV a cores – imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do “despachante” encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa, equipamentos de TV; para os militares da espionagem oficial, sofisticados aparelhos de escuta ilegal. Graças a isso, Clark podia desfrutar estranhas sessões de lazer como a conversa com um tal general Antônio Marques, pressuroso em exibir foto tirada no escuro de um cinema (com equipamento infravermelho) e identificar o personagem em cena comprometedora como Dom Ivo Lorsheiter, progressista odiado pela linha dura militar.
Para Armando, “uma questão de realismo”
O autor defendeu no livro tudo o que fez para “afagar o regime” (expressão dele) e investiu contra os que o acusavam de “puxar o saco dos militares” (também expressão dele). Para fazer autocensura, revelou, tinha importantes aliados internos, com destaque especial para o papel do diretor de jornalismo, Armando Nogueira. Por “questão de realismo”, por exemplo, Armando e ele tomavam “muito cuidado” para não trombar “com o regime e nem com Roberto Marinho”. Mas o leitor tropeça nas contradições da narrativa, entre elas a ambiguidade em relação ao ex-amigo J. B. (Boni) de Oliveira Sobrinho – acusado de fazer vista grossa quando Dias Gomes e outros enfiavam “coisas nos textos que certamente iam dar problemas”, mas também de cumplicidade com os militares para destruir o próprio Clark (“lá por 1976, Laís, a mulher do Boni, foi me denunciar para o pessoal do SNI, que ela conhecia, dizendo que eu era um toxicômano perigoso”).
Não é preciso inteligência privilegiada para perceber que o jogo de cumplicidade com o regime confundia-se com a luta interna pelo poder dentro da Globo, arbitrada por Marinho e envolvendo não apenas Clark e Boni, mas também o segundo escalão – Joe Wallach (que representou o grupo Time-Life – mais sobre ele AQUI), José Ulisses Alvarez Arce e, em especial, o diretor de jornalismo Armando Nogueira (todos eles estão na sugestiva foto acima). Esse último é pintado no livro como incompetente, preguiçoso e traiçoeiro. Em meio à guerra, as reuniões do conselho de direção nas manhãs de segunda-feira tornaram-se um inferno, em generalizado clima de intriga e discórdia, com todo mundo brigando com todo mundo. O dinheiro farto que todos ganhavam, contou Clark, “era como veneno, especialmente nas mãos das mulheres”. Munidas de talões de cheque, elas estrelavam “um festival de nouveau-richismo, pretensão e falta de educação”. Acusado de consumir drogas, Clark defendeu-se ao encarar a prática como generalizada: “a cocaína era chique nas festas intelecto-sociais, e o seu consumo, bastante disseminado”, mas “resolveram me transformar em drogado”.
Quando Marinho decidiu tomar “o brinquedo de volta” – ou seja, recuperar o controle da Globo, que “tinha emprestado para uns garotos mais moços brincarem” – uma das mãos firmemente agarradas ao tapete de Clark, segundo o livro, foi a do ministro da Justiça, Armando Falcão (na foto abaixo, ao lado do ditador Ernesto Geisel), “tipo deletério, que adorava fazer intrigas, dizer que éramos todos comunistas, drogados, os piores elementos”. No relato aparece um Roberto Marinho bem mais coerente na conspícua (e promíscua) aliança com o regime do que o autor chega a reconhecer explicitamente – tanto que o episódio no qual Clark é afinal defenestrado mistura, de forma reveladora, a disputa pelo poder no regime militar com aquela que se processava na Globo, escancarando as relações perigosas entre o governo e a rede de TV consolidada à sombra do autoritarismo.
O autor nega que o motivo de sua saída tenha sido, como se propalou na época, seu comportamento pessoal pouco ortodoxo (em razão de excessos alcoólicos) numa festinha com poderosos de Brasília. O livro atribuiu a demissão a queda de braço com o regime, que exigia o expurgo na Rede Globo da afiliada paranaense de Paulo Pimentel, político que rompera com o antigo protetor, ministro Ney Braga, e ainda era desafeto do chefe do SNI, general João Baptista Figueiredo, então a caminho da presidência (na foto à esquerda, já ditador, de braço dado com Marinho). Se assim foi, faltou a Clark reconhecer ter sido demitido na primeira vez em que de fato ousava contrariar os donos do poder. “Eu argumentava – escreveu ele – que o governo tinha o poder concedente dos canais de rádio e TV e, se quisesse atingir o Paulo (Pimentel), que cassasse a sua concessão e enfrentasse o desgaste político”. Mas Marinho, pragmático, pensava diferente – talvez sintonizado, naquele sombrio ano de 1977, com o clima incerto gerado por mais uma demonstração de força do regime, o Pacote de Abril.
Até veto de música no festival da canção
Clark nem sequer notou a semelhança desse episódio com tantos outros que marcaram a aliança promíscua da Globo com o poder – e nos quais ela se limitara a acatar a vontade do regime. Alguns de tais episódios, envolvendo a TV e autoridades militares, desfilaram ao longo de Campeão de Audiência: o ataque do general Muricy a um documentário da CBS (para ele, “subversivo”) sobre o Vietnã, comprado ironicamente pelo americano Wallach, do Time-Life (na foto, cochichando no ouvido de Roberto Marinho); o Jornal Nacional, no terceiro dia de sua existência, proibido por um coronel (Manoel Tavares) do gabinete do general Lira Tavares (membro da Junta que tomara o poder) de noticiar o sequestro do embaixador dos EUA e a doença de Costa e Silva, os dois principais assuntos; o aviso do general Sizeno Sarmento de que as músicas “Caminhando” e “América, América” estavam proibidas de ganhar o Festival Internacional da Canção; a ordem do general Orlando Geisel para as patriotadas de Amaral Neto serem incluídas no horário nobre; a prisão do próprio Clark pelo DOPS no dia do Ato 5, por ordem do coronel Luís França (em represália por ter ele discutido com o motorista do militar num incidente de trânsito).
Enfim, a especialidade da Globo era acomodar-se a cada situação. A acomodação prevaleceu ainda no dia da queda de Clark. Ele aceitou sem discutir o prêmio de consolação (US$ 2 milhões) oferecido por Marinho. E limitou-se a encomendar o texto da carta de demissão (“em alto estilo… literário”) ao amigo Otto Lara Resende, suficientemente versátil para também escrever em seguida a resposta na qual o dono da Globo agradeceu os serviços prestados pelo demissionário (quatro anos depois Otto aceitaria também a missão de fazer o prefácio de Campeão de Audiência).
A demissão é uma espécie de anticlímax da autobiografia, na qual o autor assumiu compulsivamente a responsabilidade pelas iniciativas bem sucedidas da Globo, declarou-se adepto de programas de qualidade (mas o salto de audiência veio com os popularescos de baixo nível, de Raul Longras, Chacrinha [foto abaixo], Dercy Gonçalves, etc, bem na linha da atual pornografia BBB) e atribuiu o mal feito a outros – como os que mantiveram elevado o faturamento e a liderança absoluta de audiência nos anos seguintes, enquanto o próprio Clark, que na Globo tinha o maior salário do mundo (compre AQUI, por US$3,95, a notícia no New York Times sobre a demissão do brasileiro com o maior salário do mundo) e frequentava presidentes e ministros, descia ao fundo do poço, de fracasso em fracasso (como diretor de duas TVs, logo demitido, e produtor de dois filmes nos quais sequer se reconheceu sua contribuição, mais um espetáculo teatral altamente deficitário).
“Em 14 anos, depois de minha saída, o que houve de realmente novo?” – perguntou o autor naquele ano de 1991, referindo-se à Globo. Pouca coisa, talvez. Hoje, com a perda crescente de audiência para os concorrentes e sem os privilégios garantidos nos 20 anos de ditadura militar, ela está condenada a conformar-se com as regras da democracia e da competição. E passa a valer para a Globo a amarga reflexão pessoal de Clark no livro: “Não se deve cultivar excessivamente o poder, pendurar-se emocionalmente nele, porque um belo dia o poder acaba, e o dia seguinte é terrível”.
Boni: acordo Globo/Time-Life foi ilegal
Assunto explosivo, ocultado pela mídia, o acordo Globo/Time-Life foi tratado como "totalmente ilegal" por um dos principais executivos da empresa, o Boni. Reproduzo a matéria do Portal Imprensa:
O emblemático acordo Globo Time-Life, que até hoje é discutido como um dos pontos mais sensíveis da televisão brasileira, é avaliado, mais de 40 anos depois, por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni: "O acordo era totalmente ilegal, no meu ponto de vista. O pessoal do Time-Life era muito responsável e eles tinham ordem de não passar perto da redação para não contaminar o conteúdo, mas de acordo com a legislação brasileira, era ilegal. Era um acordo de assistência técnica: eles construíram o prédio da TV Globo que pagava um aluguel exorbitante, mais ou menos o que acontece hoje com a Record e a Igreja [Universal do Reino de Deus]", avalia o ex-diretor da Globo à revista Imprensa em entrevista exclusiva para a edição de setembro (nº 260).
A polêmica é antiga. Logo que Roberto Marinho adquiriu a concessão da TV Globo em, 1962, selou uma parceria com o grupo de mídia americano Time-Life. O acordo garantiu à Globo um capital de milhões de dólares para compra de equipamentos e construção da emissora; à Time-Life, cabia uma participação nos lucros da empresa.
Dois meses depois da inauguração da Globo, em 1965, a relação das empresas foi denunciada como ilegal. A participação estrangeira em empresas nacionais não era permitida na época. Além disso, a presença do consultor do Time-Life, Joe Wallach que atuava na Globo, levantou dúvidas sobre a influência do grupo no conteúdo e nas decisões estratégicas da emissora.
"Os funcionários [da Globo] sabiam da presença do Time-Life, que trouxe vários profissionais, como o Joe Wallach, que é muito importante na história da Globo. O Joe estava preocupado com a empresa e deu essa estrutura básica", explica Boni. Em 1970, Joe Wallach optou por sair do Time-Life e ficou exclusivamente na Globo, como diretor-executivo.
Em outubro de 1967, o consultor-geral da República Adroaldo Mesquita da Costa considerou que não havia uma sociedade entre as duas empresas, parecer que deixava a situação da Rede Globo legal no país. Em 1971, o acordo entre as empresas foi desfeito.
superinteressante
Edição 214
junho/2005
A voz do Brasil
por Texto Leandro Narloch
Era o Cid Moreira de sempre. Terno impecável, topete no cabelo grisalho como em todo Jornal Nacional. Ele olhou para a câmera e disse: "Tudo na Globo é tendencioso e manipulado. Não reconheço à Globo autoridade em matéria de liberdade de imprensa, e basta para isso olhar a sua longa e cordial convivência com os regimes autoritários e com a ditadura de 20 anos que dominou o nosso país."
A fala histórica foi ao ar ao vivo, na noite de 15 de março de 1994. Não era um pedido público de demissão. O apresentador transmitia um direito de resposta concedido pela Justiça ao ex-governador Leonel Brizola, que redigiu o texto após ser a acusado, no Jornal Nacional, de “declínio da saúde mental” e “deprimente inaptidão administrativa” por tentar proibir a transmissão do Carnaval. Naquele dia, milhares de brasileiros devem ter se deliciado com o texto de Brizola, lido no programa jornalístico que com média de 68% dos televisores ligados é, proporcionalmente, o mais assistido do mundo. Pessoas que como eu, e talvez você, cresceram fazendo lição-de-casa diante da Sessão da Tarde, jantando com a novela das 7 e indo dormir depois dos dramas de Regina Duarte na novela das 8. Após 40 anos como líder da televisão no Brasil, a Globo se tornou uma paixão nacional – mas uma paixão tão grande quanto a de falar mal dela.
Todos os anos, cada brasileiro passa em média 700 horas assistindo à Globo. Sem William Bonner, Xuxa ou Sinhozinho Malta, nossas roupas, jeito de falar, famílias e a imagem que temos do lugar em que vivemos seriam diferentes. “Tire a televisão de dentro do Brasil e o país desaparece”, diz Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás, co-autor do livro Videologias e ex-diretor de redação da SUPER. Exagero? Nas páginas seguintes, você verá como a Globo inventou o Brasil.
O Brasil sem a Globo
Na década de 1950, quando a televisão começou por aqui, o país escutava Tonico e Tinoco, ria de Mazzaropi e tinha 70% das pessoas morando no campo. Na cidade, ter um televisor era mais chique que home theater nos dias de hoje. As famílias deixavam de ir à ópera para assistir ao “teleteatro” em casa – e depois ligavam para o camarim cumprimentando os atores. E como não existiam satélites, cada cidade tinha sua programação, com celebridades, piadas e notícias locais.
Nos anos 1960, esse Brasil rural passou por um banho de loja cultural. Até o início dos anos 1970, o número de livros impressos passaria de 43 milhões para 191 milhões, a venda de discos cresceria 800% e a televisão viraria profissional, com antenas mais potentes, tecnologia para gravar programas e um aumento de 500 mil casas com televisores por ano. Percebendo a reviravolta, um grupo de comunicação resolveu se modernizar para virar empresa. Em 1963, contratou quase 100 funcionários num só dia – entre eles Chico Anysio e Gianfrancesco Guarnieri – e começou a fazer novelas diárias. Não, essa empresa não era a Globo. Era a TV Excelsior.
A Excelsior tinha tudo para dar certo, menos um item – isenção política. Com o golpe militar de 1964, foi boicotada pelos militares. Seu proprietário, Wallace Simonsen, que usava abertamente a televisão para apoiar o presidente João Goulart, sofreu retaliações financeiras. A emissora fechou em 1969. A outra grande TV da época, a Tupi, do magnata Assis Chateaubriand, dado a negociatas e ameaças políticas, entrou em declínio até falir em 1979. O trono estava vago para uma nova dinastia. “Os militares queriam uma empresa com visão moderna e que fosse parceira da expansão da televisão pelo país”, afirma a psicanalista e estudiosa de televisão Maria Rita Kehl. É aí que entra Roberto Marinho.
Em 26 de abril de 1965, 3 anos após ganhar a concessão do então presidente Goulart, o dono do jornal O Globo levou ao ar o canal 4 do Rio de Janeiro. Em poucos meses deu para ver as novidades. A grade de atrações era conhecida do público e não mudava de repente, como na Tupi, na Excelsior ou na Record. Outra inovação: os anúncios publicitários, que apareciam ao longo do dia todo, mas em breves intervalos. Em resumo, igualzinho ao que assistimos hoje. Foi a Globo que implantou esse formato no Brasil.
Por trás do arrojo da Globo estava quem mais entendia de televisão na época: o grupo Time-Life, dos EUA. Um contrato assinado em 1962 previa que a Globo desse aos americanos 30% de seus lucros em troca de dinheiro para investimentos e experiência. O acordo virou escândalo nacional. A lei proibia que grupos estrangeiros fossem sócios de empresas de comunicação. Uma CPI foi instalada para apurar o caso e o governo podia até ordenar o fechamento da emissora – mas como uma legítima CPI brasileira, tudo terminou em pizza. Em 1969, insatisfeita com a rentabilidade do negócio, a Time-Life desistiu do contrato.
A Globo é o Brasil
Em 1969, uma casualidade mudou os rumos da TV Globo. Um incêndio destruiu a sede da emissora em São Paulo e, com os estúdios destruídos, a cidade teve de assistir à programação que ia ao ar do Rio. Surpreendentemente, a audiência na cidade não caiu. O que começou como estratégia de emergência, virou a maior vantagem da Globo, que se tornou a primeira emissora nacional do país. E uma rede que alcançasse o país inteiro era tudo o que os militares queriam. “Acreditava-se na época que o território nacional só estaria livre da ameaça estrangeira se as fronteiras estivessem em contato com o centro”, diz o jornalista Gabriel Priolli, da PUC-SP e autor do livro A Deusa Ferida. Essa mentalidade fez nascer megaprojetos, como a estrada Transamazônica e a instalação de um sistema nacional de torres de televisão. Em muitos países, esse investimento foi feito pela iniciativa privada. Aqui, o estado bancou tudo. E ainda abriu linhas de crédito para qualquer pessoa comprar um televisor sem juros. O resultado foi um país unificado na tela da televisão.
Você já parou para pensar o que um descendente de alemães do interior gaúcho, um paulistano e um ribeirinho da Amazônia têm em comum? Eles falam português, ainda que um português bem diferente, descansam nos mesmos feriados e têm uma carteira de identidade que diz: brasileiro. Até 1969, era só isso. Mas depois que a Globo se tornou uma rede nacional, todos passaram a ter um enorme universo em comum. O mesmo sonho de conhecer o Rio, os mesmos bordões como “Não, Pedro Bó”, o mesmo desejo de comer pizza com guaraná. “A televisão igualou o imaginário de um país cuja realidade é constituída de enormes contrastes, conflitos e contradições”, afirma Eugênio Bucci.
Um estudo do pesquisador Luiz Augusto Milanesi, da USP, sobre a chegada da televisão a Ibitinga, interior de São Paulo, deixa claro os efeitos desse fenômeno. Assistindo a atores e jornalistas, os moradores descobriram que palavras como “compreto” e “frauta” estavam erradas. Mas, sem certeza do quanto já tinham se enganado, acabaram também trocando as letras em palavras corretas – “freira” virou “fleira”. E se “paia” virou “palha”, “meia” passou a ser “melha”.
A Globo governa
Ok, a política de integração nacional deu ao país uma cara moderna e uma rede de telecomunicações de primeiro mundo. Mas o avanço também serviu como espaço de propaganda política. O programa Amaral Neto, o Repórter, por exemplo, se dedicava a noticiar os feitos milicos. No resto da programação, a censura encrencava com a roupa das chacretes e investigava até se Tom & Jerry tinha mensagens revolucionárias subliminares.
Além disso, a televisão rendeu cartadas no jogo de poder. Um estudo da pesquisadora Susy dos Santos, da Universidade Federal da Bahia, mostrou que pelo menos 40 afiliadas da Globo pertencem a políticos locais, todos ex-aliados dos militares. Os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, os Collor, em Alagoas. O clima de paz e amor com o governo era tanto que, em 1972, o presidente Médici chegou a dizer: “Fico feliz todas as noites quando assisto ao noticiário. Porque, no noticiário da Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”.
Mesmo após 1976, com o fim da censura prévia, o noticiário da Globo continuou sem farpas contra os militares. “Quando o país começou a se democratizar, a resistência da Globo às mudanças ficou clara”, diz Valério Brittos, professor da pós-graduação em ciências da comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Foi assim durante as greves do ABC, entre 1978 e 1980, que mal foram mencionadas pela emissora, e na campanha pelas eleições diretas em 1984 (leia quadro na página 57). Esse comportamento fez surgir nos muros e passeatas o lema “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. “Na prática do jornalismo, como em qualquer outra atividade, erros podem acontecer”, diz Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. “O importante é ter humildade para corrigir rumos e agir com transparência.”
Nos últimos anos da ditadura, o poder de Roberto Marinho era de espantar mesmo. Para tentar diminuir sua força, o governo abriu concorrência para novas concessões de TV, em 1980. O Jornal do Brasil e a Editora Abril, que edita a SUPER, estavam no páreo, mas a disputa acabou ganha por Adolpho Bloch, que fez a Manchete, e Silvio Santos, do SBT. Enquanto esses canais engatinhavam, Roberto Marinho decidia os rumos do país. “Eu brigo com o papa, com a Igreja Católica, com o PMDB. Só não brigo com o doutor Roberto”, disse o presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, a Ulysses Guimarães, que estava indignado com a indicação de Antonio Carlos Magalhães para o Ministério das Comunicações. ACM não foi o único ministro que Roberto Marinho nomeou ou demitiu nessa época (leia quadro ao lado).
Revolução dos costumes
Para muitas pessoas, a história da Globo acaba aqui. A emissora só chegou aonde chegou graças a barganhas políticas e ponto final. É aí que esses críticos quebram a cara. A Globo não se fez apenas apoiando militares e jogos. “Estamos diante de um caso de talento artístico. Nenhuma emissora do mundo domina tão bem a produção técnica em vídeo quanto a Globo. Melhor que ela, só a produção em película de Hollywood”, diz Gabriel Priolli. Hoje, não é só líder no Brasil: é a maior produtora de televisão do mundo. “Em 2004, produzimos 2 546 horas de programação, o que equivale a mais de 1 000 longas-metragens”, afirma Erlanger, da Globo. Neste momento, 62 países estão assistindo a programas que você viu meses atrás.
Foi combinando alcance nacional e capacidade técnica acima da média mundial que a Globo protagonizou a construção da identidade brasileira. E esse talento se concentrou principalmente nas novelas. Para escrevê-las, foram chamados os melhores dramaturgos. Muitos deles vieram de jornais e grupos de teatro de esquerda da década de 1960, como Benedito Ruy Barbosa, Dias Gomes e Aguinaldo Silva. “Os autores disseminaram em cadeia nacional novos estilos de vida”, diz o pesquisador Cláudio Paiva, da Universidade Federal da Paraíba. Em vez das velhas histórias da moça virgem que tinha um pai carrancudo e fora enganada por um homem, trama típica do dramalhão latino-americano, aparecem os adolescentes que transam sem culpa, o homem que chora, a mulher separada, o gay. “O Brasil tem costumes mais modernos que o restante da América Latina também porque nossas novelas são mais realistas que as mexicanas”, diz Priolli.
Em 1994, a pesquisadora Anamaria Fadul, da Universidade Metodista de São Paulo, montou a árvore genealógica de 33 novelas da Globo produzidas entre os anos 1970 e 1990. Apenas duas mostravam famílias com mais de 2 filhos. “Não se pode fazer uma relação de causa e efeito, mas ficou claro que as novelas da Globo anteciparam o modelo da família atual em 2 décadas”, diz Anamaria. “Há quase 30 anos a Rede Globo promove o reexame das relações homem e mulher”, afirma o filósofo Renato Janine Ribeiro, autor do livro O Afeto Autoritário. “Os movimentos feministas iniciaram esse questionamento, mas a rede Globo assumiu a causa e não a abandonou.” 2 produções dessa linha marcaram época:
• Dancin’ Days (1978), que mostrava a vida de Júlia (Sônia Braga), ex-presidiária que luta para retomar a vida ao lado da filha, criada pela irmã milionária.
• Malu Mulher (1979), em que Malu (Regina Duarte) é uma socióloga que decide se separar depois de ser traída pelo marido. A minissérie questionava tabus como aborto e virgindade, narrando os dramas da mulher madura que passa a ter de sustentar a filha. Malu Mulher foi sucesso na Inglaterra e na Holanda – e censurada em países da América Latina.
No caldo sem-gracinha do melodrama, também entraram pitadas de sátira, que parodiavam a política brasileira. “O Jornal Nacional mostrava políticos, em geral nordestinos, que depois de servir a todos os ditadores haviam se reciclado com a volta da democracia. Apareciam como grandes homens da República. Meia hora depois, a principal novela da mesma Globo expunha clones deles como emblemas do que há de pior em nossa sociedade”, diz Renato Janine. Você deve se lembrar de algumas dessas novelas:
• Roque Santeiro (1985), que tinha 36 capítulos gravados quando foi censurada pela ditadura, em 1975. Regravada 10 anos depois, mostrava como protagonista Sinhozinho Malta (Lima Duarte), um típico coronel nordestino.
• Que Rei Sou Eu? (1989), passada no reino de Avilan, país imaginário da Europa do século 18 que vivia crises comuns às do Brasil de 1989: inflação, planos econômicos furados, moedas que mudavam de nome. Sem falar nas falcatruas e negociatas políticas.
• O Bem-Amado (1973), onde a cidade fictícia de Sucupira era palco de diversos tipos brasileiros – não exatamente os melhores. Exemplo de como a novela transformada em minissérie retratou o país é a fala do general Golbery do Couto e Silva, braço-direito do presidente Geisel, que ao deixar o cargo de chefe da Casa Civil disse aos repórteres: “Não me perguntem nada. Acabo de deixar Sucupira”.
A vida começa aos 40
E hoje? E o futuro? É difícil que, daqui pra frente, um canal de TV tenha tanta importância para o imaginário de Sucupira, ops!, do Brasil. “É uma tendência mundial as grandes televisões perderem audiência para outros canais ou tipos de mídia”, diz o professor Valério Brittos. “Mas, dentro dessa segmentação, a Globo vai seguir como uma das principais produtoras do mundo.”
O maior baque de perda de público aconteceu na década de 1990. A audiência média de 49% dos televisores ligados, em 1979, baixou para 37% em 1997. Record e SBT aproveitaram o barateamento da tecnologia de produção e lançaram programas populares. Também apareceu o controle remoto, arquiinimigo das líderes de audiência. Mas o susto passou rápido: a novela Terra Nostra, de 1999, recuperou antigos índices de audiência e provou que o modelo “sanduíche” de um jornal entre novelas, marca da Globo instituída em 1968, não estava acabado. Até programas típicos de emissoras B no resto do mundo, como o Big Brother, viraram atração global. “A capacidade de inovar e adaptar que a Globo tem é incomum em empresas tradicionais”, diz Valério Brittos.
Essa inovação, porém, foi um tiro pela culatra no que se refere à televisão a cabo. Quando partiu para a transmissão por assinatura, a Globo teve, desta vez, de tirar do próprio bolso os custos de instalação da rede. O grupo que controla a emissora fez uma dívida que, com a crise do real, em 1999, virou uma bolha de 1,3 bilhão de reais. “A empresa pode até sanear essa dívida, mas terá dificuldades se precisar fazer mais investimentos em novas tecnologias”, diz Brittos.
A tecnologia mais nova do pedaço, a TV digital, pode mudar todo o jeito de ver TV hoje. Se a transmissão de dados por computador se popularizar, em poucos anos você poderá escolher entre ler seu e-mail, escutar música ou assistir aos Simpsons enquanto espera o ônibus (pois é, os ônibus devem continuar os mesmos). Especialistas dizem que a tecnologia pode tornar obsoleto o sistema de concessões de canais usado hoje em dia.
Isso significa o fim da Globo? Será que a televisão generalista, que todos vêem ao mesmo tempo, é coisa do passado? A interatividade da internet fez de qualquer pessoa uma potencial emissora de conteúdo – e mudanças como essa, que cindem a idéia de uma sociedade uniforme, tem força para inaugurar uma nova idade histórica. Por isso, é difícil prever o futuro da emissora que deu uma cara ao Brasil – “aguarde e confie”, diria Didi Mocó. Já é possível, no entanto, julgar seu papel nos últimos 40 anos. Sim, em muitos momentos a Globo foi mesmo porta-voz dos militares. Mas também não faltam motivos para tratá-la como agente modernizante e um orgulho do talento nacional. A Rede Globo tem uma grande dívida com o Brasil. Mas o Brasil também deve muito à Rede Globo.
Teorias da conspiração
A GLOBO ATRASOU A ENTRADA DO CONTROLE REMOTO NO BRASIL
FALSO. O velho boato que circula entre faculdades e sites anti-Globo é desacreditado por especialistas. Desde os anos 1960 já havia televisores com controle remoto no Brasil. “O problema é que ele encarecia muito o televisor”, diz o jornalista Gabriel Priolli. Os aparelhos com controle remoto eletrônico só se popularizaram na década de 1990.
ROBERTO MARINHO ESCOLHIA ALGUNS MINISTROS
VERDADEIRO. Antes de assumir o Ministério da Fazenda, em 1988, Maílson da Nóbrega conversou por 2 horas com Roberto Marinho. “Era como se eu estivesse sendo sabatinado”, contou Maílson para a revista Playboy. 10 minutos após a conversa, o Jornal da Globo dava o furo: ele era o novo ministro da Fazenda.
A GLOBO FEZ DO FLAMENGO O TIME MAIS POPULAR DO BRASIL
FALSO. A popularização da TV no Norte e Nordeste aconteceu nos anos 1980, quando o Flamengo foi campeão brasileiro, sul-americano e mundial. Seus jogos eram exibidos sem parcimônia. Hoje, o clube é o que tem mais torcedores no país, mas 80% deles fora do Rio. Efeito Globo? Nem tanto. Mesmo antes da TV o clube já era o grande time da capital federal. “O Flamengo representava o Brasil”, afirma o escritor Ruy Castro, autor de Flamengo – O Vermelho e o Negro.
A Globo democrática
Diretas sim
Na véspera da votação das emenda das Diretas, a Globo burlou a censura e transmitiu ao vivo imagens do comandante militar do Planalto reprimindo uma manifestação. No Jornal da Globo, o comentário de Jô Soares sobre a repressão ao protesto foi ficar 30 segundos em silêncio – alguns repórteres optaram por vestir amarelo, cor ligada ao movimento pelo retorno da democracia.
Adeus, Collor
Com a inflação anual em 1 000% e denúncias de corrupção, a Globo captou o espírito dos caras-pintadas e noticiou intensamente as passeatas contra Collor. Também exibiu a minissérie Anos Rebeldes, sobre jovens que lutaram contra a ditadura, e mostrou ao vivo as 6 horas de votação do impeachment do presidente.
Sem-terra na novela
Em 1996, 2 meses após a morte de 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás (PA), o MST entrou para a trama da novela O Rei do Gado. O movimento era apoiado pelo senador Caxias (Carlos Vereza), morto durante uma invasão. “A novela ajudou a fazer as pessoas nos olharem de maneira diferente. Nos deu status de cidadãos”, disse na época o presidente do MST, João Pedro Stédile.
A Globo manipuladora
Greve, que greve?
Entre 1978 e 1980, as greves do ABC foram quase ignoradas pela Globo, que cobriu o assunto com notas sem entrevistas e som ambiente. Armando Nogueira, então diretor de jornalismo, afirmou que a emissora tinha ordens dos militares de cobrir o evento “de leve”.
Diretas não
Passeatas em Curitiba, Vitória, Salvador e Campinas pelas eleições diretas não mereceram menção nos jornais da Globo. Mas ao contrário do que muita gente acredita, a grande manifestação paulistana de 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, foi, sim, noticiada pela emissora. O conteúdo da reportagem, no entanto, misturava o pedido por Diretas Já e o aniversário da cidade.
Lula também não
Após o debate entre Collor e Lula, na eleição presidencial de 1989, as pesquisas de opinião apontavam vitória de Collor. Mas o Jornal Nacional exagerou na dose. Durante 3min34s, mostrou Collor enfático e seguro. Lula mereceu 2min22s e trechos em que aparecia trocando a palavra “seca” por “cerca”. 2 dias depois, Collor, que começara a semana com 1% de intenção de votos acima de Lula, ganhou a eleição com vantagem de 6%.
As modas que a Globo lançou
Turismo no Nordeste
Em 1994, a novela Tropicaliente, apoiada pelo governo do Ceará, mostrou como é linda a praia de Porto de Dunas, em Fortaleza. Resultado: os hotéis do estado ficaram lotados e o movimento nos principais pontos turísticos do Nordeste aumentou 30%.
Imperialismo brasileiro
A Globo exporta para o mundo seu jeito de falar. Em Portugal, lançou expressões como “bater um papo”, “que droga” e “Oi, tudo bem?”. Em Cuba, restaurantes caseiros são chamados de “paladares”, por causa da Rede Paladar, que Raquel (Regina Duarte) criou em Vale Tudo. Na Rússia, a palavra “fazenda” entrou no vocabulário por causa da novela Terra Nostra.
Trajes globais
A primeira vez que a Globo lançou moda foi na novela Dancin’Days, em 1978, que difundiu discotecas e popularizou as meias “lurex”. “Tomamos um susto com o poder das novelas”, diz Marília Carneiro, figurinista da emissora. Outros sucessos: mais de 200 mil dos anéis-pulseiras usados por Jade (Giovanna Antonelli) em O Clone vendidos. E aumento de 85% na produção de perucas no Brasil por influência de Sinhozinho Malta (Lima Duarte), de Roque Santeiro.
Para saber mais
Jornal Nacional – A Notícia faz História - Memória Globo, Jorge Zahar, 2004
Dicionário da TV Globo - Memória Globo, Jorge Zahar, 2003
A Deusa Ferida - Silvia Borelli e Gabriel Priolli (coords.), Summus, 2000
Videologias - Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl, Boitempo Editorial, 2004
O Afeto Autoritário: Televisão, Ética e Democracia - Renato Janine Ribeiro, Ateliê Editorial, 2005
RECORD vs. GLOBO
Uma ameaça ainda longínqua
Por Carla Montuori em 3/4/2007
A revista CartaCapital (28/3/2007) trouxe como matéria de capa a disputa concorrencial entre Record e a Globo, aludindo, finalmente, a um possível fim da hegemonia da Vênus Platinada no país, depois de mais de três décadas de controle e poder no campo da comunicação televisiva.
A disputa no dia-a-dia pelo aumento nos índices de audiência das telenovelas, a contratação de funcionários da emissora concorrente, as cópias fiéis dos programas jornalísticos e outras tantas tentativas da Record para desbancar a concorrência ainda representam frágeis estratégias de mercado para afetar a Globo.
A história da televisão brasileira nos mostra que, por diversas vezes, programas e estratégias específicas de marketing, semelhantes às já anunciadas, e advindas de emissoras concorrentes, visavam da mesma forma a fragilizar o poder da líder. Como exemplo pode-se citar o telejornal Aqui Agora, do SBT, lançado em 1991, que alcançou altos índices de audiência, chegando a ameaçar o Jornal Nacional, telejornal de maior audiência da Globo. Extremamente sensacionalista, o Aqui Agora ficou conhecido pelas reportagens sobre acidentes graves, assassinatos e crimes chocantes. Sua força junto ao telespectador fez com que, pela primeira vez na história do telejornalismo da emissora, a Rede Globo alterasse a estrutura do telejornal mais antigo da sua grade de programação, passando a incluir no noticiário imagens de maior grau apelativo.
Sucesso semelhante, obteve a Rede Manchete, em 1990, com a novela Pantanal. Primeira telenovela não-global apresentada desde a falência da TV Tupi, em 1980, Pantanal ficou conhecida por bater a audiência da TV Globo, alcançando a média diária de 40 pontos. O incômodo foi tão grande que a emissora de Roberto Marinho acabou submetendo sua grade de programação ao horário da concorrente. Assim, a Rede Globo passou a esticar a novela das oito, na época Rainha da Sucata, de Sílvio Abreu, para que os telespectadores não mudassem de canal.
Influência e lobbies
Na mesma linha, outro grande aborrecimento para a líder surgiu em 2001 com o sucesso estrondoso do programa Casa dos Artistas, lançado pelo SBT. A primeira versão do programa, que contou com 12 participantes, foi responsável por desequilibrar a Vênus Platinada em seu horário mais tradicional: em 28 de outubro de 2001, a Casa dos Artistas ultrapassou a audiência do Fantástico, que desde 1973 era imbatível. Em resposta, a Rede Globo acusou o SBT de plagiar a idéia da produtora Endemol, criadora e detentora dos direitos do reality show Big Brother, programa que o SBT acabou recusando comprar, para fazer uma versão sem pagar direitos autorais. Os apelos foram ganhos pelo SBT, pois não ficou provado o plágio. Mas as brigas judiciais e concorrenciais entre o SBT e a Rede Globo não pararam por aí e estenderam-se, sobretudo aos os programas dominicais, que travam uma batalha acirrada e que perdura há alguns anos.
Assim como esses, podemos citar outros programas e estratégias concorrenciais que abalaram a audiência da líder. Penso não ser o caso, já que meu ponto de reflexão é outro e gira em torno das relações de poder instaurada pela emissora no país, desde seu surgimento. Abordando superficialmente os lobbies políticos da Globo, a reportagem da CartaCapital, infelizmente, não aprofunda as suas relações com o campo político, fundamentais, e que ditaram, por diversas vezes, as regras e posições no mercado das comunicações, ou seja, seu market share.
Resta lembra que o surgimento da Rede Globo e a posterior implantação de uma estrutura audiovisual mais moderna e arrojada que as demais concorrentes, teve início em 1965, a partir da união com o grupo norte-americano de multimídia Time-Life, mesmo conhecendo as normas regulativas do setor e sabendo que tal acordo infringiria um artigo da Constituição brasileira imposta pelo regime militar – o qual proibia a participação acionária de empresas estrangeiras na área de comunicação no país. Para averiguar o fato, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito que na época não obteve grandes resultados. Dessa forma, a Rede Globo criou uma estratégia monopolista, com pesados investimentos em recursos tecnológicos modernos e mão-de-obra qualificada, para obter uma programação infinitamente superior às demais.
Daí para frente, pouca coisa mudou para a Globo. Sofreu, é claro, uma sensível queda de audiência em função do ingresso da TV por assinatura no Brasil. Por outro lado, seu poder de se estabelecer na posição de líder, utilizando sua influência e pressionando políticos e setores do governo por meio de lobbies e relações de troca simbólica, parece permanecer arraigado na estrutura das comunicações brasileira.
Diretora vai ao palácio
A própria revista CartaCapital constatou recentemente essa revelação em matéria publicada no dia 18 de agosto de 2004, questionando os problemas para a criação da Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Nessa reportagem, a revista esclareceu que, em 2004, o Ministério da Cultura, sob o comando do ministro Gilberto Gil, reabriu o projeto da Ancinav para que o Estado retomasse as responsabilidades de atuar como regulador do mercado audiovisual. Entretanto, o projeto previa interferência do governo na programação das emissoras, além da cobrança de um novo imposto, denominado Condecine, que atrelava o pagamento de uma taxa de 4% sobre o faturamento publicitário no cinema e na TV. Todas as redes de televisão questionaram a taxa, mas a maior prejudicada seria a Rede Globo. O dispositivo atingia em cheio seus interesses financeiros, já que a emissora possui 51% de audiência e abarca 70% da verba publicitária do setor.
Preocupada com o caráter pouco lucrativo da proposta, antes mesmo de ser divulgada oficialmente pelo governo, a Rede Globo ingressou em uma batalha contra o anteprojeto. No dia 5 de agosto de 2004, o Jornal Nacional dedicou cinco minutos de seu tempo para atacar as propostas do Ministério da Cultura, acentuando que a agência poderia influenciar diretamente no conteúdo editorial das emissoras, desrespeitando a liberdade de expressão.
No dia 6 de agosto de 2004, foi a voz de Arnaldo Jabor que soou de maneira ofensiva contra o projeto. Insinuando uma tendência despótica do Ministério, Jabor disse em sua crônica que o governo federal durante o dia finge ser liberal e, à noite, deixa apontar uma vocação autoritária (CartaCapital, 18/08/2004). As ondas de ataques ao ministro continuaram nos dias seguintes, comandadas pelos telejornais da emissora, formando uma espécie de conspiração contra Gilberto Gil, o que de fato impediu que o projeto fosse apresentado e explicado de forma clara à população.
Assim, não tardou para que o projeto fosse derrubado. Segundo esclarece a revista CartaCapital (13/01/2005), o Palácio do Planalto resolveu banir a parte fundamental do projeto que criava a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Em uma reunião de que participaram nove ministros de Estado, todas as cláusulas relativas à regulamentação do setor, ponto que mais incomodava a Rede Globo, foram retiradas do texto. Por trás da ação, estava a diretora da emissora, Marluce Dias, que se empenhou pessoalmente na tarefa de convencer os integrantes do governo e os representantes do Conselho Superior de Cinema de que o projeto era autoritário e deveria ser barrado, ou pelo menos as cláusulas reguladoras deveriam ser extintas.
Estratégias simples não importunam
Para o leitor mais atento, esse episódio, aparentemente descontextualizado, não traz nada de original, perante tantas interferências da emissora no campo político, a exemplo da eleição para governador do Rio de Janeiro em 1982, a famosa disputa presidencial entre Collor e Lula em 1989 e as mais diversas manipulações da emissora nesse setor.
Por outro lado, esse acontecimento recente serve de reflexão sobre a possível mudança no cenário televisivo atual. Mesmo incomodando a líder, com programas sofisticados e estratégias de marketing agressivas, a Record ainda não é uma provável concorrente da Globo. A força da emissora perpassa o padrão de qualidade e os programas televisivos, e se instaura na própria política do país. É uma retroalimentação que já dura décadas e se solidifica no jogo clientelista com o poder e, principalmente, nos poderosos e tradicionais aliados políticos da emissora, a começar pelo ex-presidente José Sarney e por Antonio Carlos Magalhães.
E como é muito tênue o ponto que separa a mídia global e a política no Brasil, fica uma pergunta: será possível desbancar a Globo por meio de estratégias simples de mercado? Talvez a grande possibilidade para a Record alcançar o posto de líder não se restrinja à construção de uma grade de programação mais atraente, com programas esteticamente semelhantes aos da líder, e sim na busca por um maior espaço político, angariando maior representatividade no setor
Sem regulação, radiodifusão será atropelada pelas teles, diz Franklin Martins
É urgente que o país pactue um novo marco legal para o setor de comunicação, pois, sem regulação, o setor de radiodifusão será atropelado pela 'jamanta' das empresas de telecomunicações. A opinião é do o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Ele participa, neste momento, de debate na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) sobre a criação de um marco legal para as comunicações.
Conforme afirmou, o setor de radiodifusão - emissoras de rádio e TV - fatura R$ 13 bilhões, enquanto o setor de Telecomunicações fatura R$ 180 bilhões. Para o ministro, a regulação do setor é uma necessidade para que haja equilíbrio nas relações.
- Se for deixado ao mercado, prevalecerá a lei do mais forte - frisou.
Para o ministro, as leis em vigor não conseguem dar conta da convergência de mídias e da oferta de novos produtos de comunicação. Ele também ressaltou, ao falar aos senadores que a regulação não representa um atentado à liberdade de imprensa.
- Em todos os países existe a regulação, e nem por isso não há liberdade de imprensa - argumentou.
A audiência acontece por requerimento dos senadores Flexa Ribeiro (PSDB-PA), Roberto Cavalcanti (PRB-PB) e Antonio Carlos Junior (DEM-BA).
O jogo que a Globo não quer perder
Max Dias e Gésio Passos - para o Observatório do Direito à Comunicação
25.02.2011
Dizem que 1968 foi o ano que não terminou. Pode até ser, mas para o torcedor brasileiro apaixonado por futebol, 1987 é o ano que nunca vai terminar. E essa história se repete novamente não apenas como tragédia, mas como farsa. E por trás dessa trama a especialista em novelas segue dissimulando sua estratégia.
Até 1986, os principais clubes pouco lucravam com uma competição longa, desgastante e com péssimos regulamentos. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) se perdia em suas negociatas políticas, prejudicando o espetáculo e a venda do mesmo como produto. Em 1987 a desordem era tanta que o presidente da entidade Octávio Pinto Guimarães decidira não organizar o campeonato nacional de clubes. Em razão disso, e pensando em grandes lucros, 13 dos maiores clubes do país na época (Atlético Mineiro, Bahia, Botafogo, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Fluminense, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco da Gama), donos de 95% da torcida, criam uma instituição própria chamada Clube dos 13. A principal tarefa era organizar o campeonato de 1987 e gerar bons dividendos para os times (além de fazer frente com a CBF). Varig, Coca-Cola, Editora Abril e a Rede Globo foram os principais patrocinadores da Copa União.
Para não perder a briga, a CBF pressionou os clubes e criou dois campeonatos paralelos: o módulo verde, que reuniu o Clube dos 13 e mais Goiás, Coritiba e Santa Cruz e o amarelo, com 16 times escolhidos pela Confederação. Após a disputa de cada torneio separado, haveria uma final entre os campeões e vices de cada módulo. Como o Clube dos 13 não aceitava esta regra, Flamengo e Internacional (campeão e vice do verde) não disputaram as finais com Sport e Guarani e o time de Recife foi considerado campeão nacional depois de vencer o time de Campinas. Assim, a Copa União terminou mal e o resultado foi parar na justiça. No último dia 21 de fevereiro, 24 anos depois, em mais uma jogada duvidosa, a CBF reconheceu o Flamengo como um dos campeões daquele ano, ao lado do Sport.
Apesar de toda confusão, a união dos clubes contra o desmandos da CBF se tornou um excelente exemplo de organização lucrativa do futebol, aliado aos bons resultados de público – que até hoje é a segunda melhor média da história, além de ser o campeonato mais debatido, estudado e comentado.
A TV Globo ficou bastante satisfeita com a audiência e o retorno financeiro foi imediato. Desde então a emissora vem negociando diretamente com o Clube dos 13 a exclusividade nas transmissões. Entretanto, passados mais de 20 anos, o que se viu não foi um avanço em relação à transmissão e o fortalecimento do futebol como esporte e cultura. Pelo contrário: a exclusividade deu a Globo um retorno financeiro sem tamanho, desbancando toda a concorrência em relação à audiência e contratos publicitários, aumentando ainda mais seu poder de barganha na hora de negociar novos contratos. A transmissão dos jogos, que em 1987 era decidida por sorteio 15 minutos antes das partidas, passou a ser concentrada pela Globo nos jogos de Flamengo e Corinthians, enquanto a diversidade do futebol brasileira fica restrita ao sistema de TV paga. Além da criação de horários esdrúxulos para a prática do futebol, como os de 21h50.
Em 2011, 1987 retornou. E não apenas como tragédia. Após o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) decidir agir contra o monopólio das transmissões, obrigando o Clube dos 13 e a Globo a acabarem com a garantia que emissora tinha de sempre vencer as "licitações" pelos jogos, a disputa no futebol nacional passou a se esconder por trás do campeão de 1987. A taça das bolinhas virou motivo de discórdia entre o Clube dos 13 e um álibi para Ricardo Teixeira, atual presidente da CBF, e para a Rede Globo. Em tempos de crescimento vertiginoso da emissora do bispo Macedo, a Rede Record entra na disputa pelos direitos de transmissão como franca favorita e não está só nesta briga. Telefônica, Oi e GVT tem capital de sobra para brigar pelas transmissões de TV por assinatura e internet.
Não sendo mais unanimidade entre os times e a direção do Clube dos 13, a Rede Globo tem alardeado que o campeonato brasileiro não é tão lucrativo como antigamente e não pretende fazer uma proposta maior que a atual – em torno de 850 milhões de reais – para garantir a exclusividade de transmissão em todas as mídias. No entanto, o que se vê nos bastidores é uma atitude bastante diferente. Mesmo que a Lei Pelé (Lei 6915/98) tenha permitido a criação de ligas independentes das federações, a CBF ainda mantém um poder muito grande na organização do futebol brasileiro, tanto que no ano passado Ricardo Teixeira articulou uma chapa pró-CBF para a presidência do Clube dos 13 e impediu qualquer projeto de criação de uma liga independente. E hoje existe ainda uma relação muito estreita entre os interesses da Confederação e da Rede Globo, já que esta mantém contratos de exclusividade nas transmissões das partidas da seleção e das Copas do Mundo.
Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco e Corinthians já decidiram que vão negociar suas cotas de transmissão em separado e ameaçam uma grande ruptura com o Clube dos 13. O que isso significa? Impedir a criação de uma nova liga dos clubes brasileiros? Influir na sucessão de Teixeira na CBF? Significa que a Globo não vai acatar a decisão coletiva do Clube dos 13 e, por meio de uma manobra, vai passar por cima da resolução do CADE. Tudo conforme o padrão Globo de qualidade, contando com o arranjo de Ricardo Teixeira.
Assim, o Clube dos 13 caminha para se dividir em dois. Outros clubes devem se unir aos cariocas e ao Corinthians e os demais manteriam sua antiga organização em torno do Clube dos 13. Nesse jogo, definitivamente, a família Marinho não gosta de perder e utiliza da velha estratégia de guerra: "dividir para conquistar".
Max Dias é jornalista, mestre em história e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Gésio Passos é jornalista, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e também associado ao Intervozes.
A Globo e um golpe no futebol brasileiro
publicada quinta-feira, 03/03/2011 às 16:31 e atualizada quinta-feira, 03/03/2011 às 16:26
por Gésio Passos*, do Intervozes
De braços dados com o poder, na época dos generaisFevereiro de 2011. Este mês será lembrado como marco do retrocesso do futebol brasileiro. Será mais um símbolo da força que a Rede Globo exerce sobre o povo brasileiro. E poderia não ser dessa maneira. Se o futebol brasileiro fosse tocado por pessoas sérias, fevereiro de 2011 poderia simbolizar a guinada ao primeiro mundo do futebol. A capitalização do futebol pelos recursos da disputa pelo direito de transmissão do Campeonato Brasileiro significaria um novo período de bonança para os clubes de futebol: manutenção e retornos dos craques, atração de estrangeiros (principalmente dos craques latinos), a internacionalização do nosso futebol e a concorrência contra os gigantes clubes europeus. Isso tudo viria da organização do futebol brasileiro para seu desenvolvimento.
E é claro que vale ressaltar que isso só poderia ser possível depois que o Estado brasileiro impediu a continuidade do monopólio das transmissões de futebol. No final do ano passado, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica – órgão responsável por coibir abusos de poder econômico) acabou com a exclusividade da Globo sobre o contrato de transmissão dos jogos, obrigando o Clubes do 13 a abrir uma concorrência pública para os direitos de transmissão nas mais diversas mídias. Tudo caminhava de maneira bem transparente, os clubes prepararam um edital, ouviram os interessados e esperavam arrecadar uma soma bilionária para os campeonatos de 2012 à 2014. Mas as coisas não seriam tão simples. A Rede Globo não aceita que seus interesses sejam contrariados, nunca aceitou. E isso não é só no esporte, é na política, na economia, na cultura nacional. Em conluio com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), ela acaba de destruir o Clube dos 13. Agindo nas sombras, sabe-se lá com quais metodos de “convencimento”, a Globo impediu que a “união dos grandes clubes brasileiros” pudesse democraticamente promover a concorrência e a livre negociação do seu maior produto, o Campeonato Brasileiro.
Um pouco de história
A Globo não aceita perder sua influência na vida dos brasileiros. A Rede Globo rejeita a democracia, rejeita a legalidade, rejeita os interesses públicos. E isso não é de hoje. É bom nesse momento recordar a forma com que a Globo construiu seu império midiático. A Globo só chega hoje onde ela chega, com seu “padrão de qualidade”, influenciando a vida de todos os brasileiros, porque ela se aproveitou de todas as benesses de quem teve o poder no Brasil. A Globo só deixou de ser um grupo pequeno carioca (com um jornal e uma rádio) para se agigantar com a ditadura militar. De forma ilegal, ela se aliou ao grupo americano Time Life para a construção da TV Globo em 1962, com um aporte de 6 milhões de dólares (até 2002, era proibida a presença de capital internacional nas empresas de comunicação brasileiras). Depois de descoberta a maracutaia, a Globo desfez o acordo, mas já era tarde para a concorrência. Com o apoio dos militares, a Globo fez parte do projeto de integração nacional pelas telecomunicações, construindo a sua rede nacional de emissoras e chegando a todo país. A Globo foi um dos pilares para os 20 anos de ditadura militar no Brasil.
No processo de redemocratização do país, a Rede Globo só “abraçou” a mobilização popular quando a queda dos militares era iminente. A emissora não cobriu as diversas mobilizações pelas “diretas já”, chegando até o clássico caso do comício que reuniu milhões na Praça da Sé, em São Paulo, e a Globo noticiou que estava acontecendo uma comemoração do aniversário da cidade, enquanto os outros canais entravam com flash ao vivo das manifestações. Este foi um dos motivos da existência da palavra de ordem “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Isso sem contar outros casos como a manipulação do debate entre Lula e Collor em 1989, o apoio às privatizações e ao governo FHC e o ataque sistemático ao governo Lula. Além disso a Globo nega e impede qualquer proposta de regulação pública e debate público sobre as comunicações no país. Ela agiu contra a criação da Ancinav (agência que regularia o audiovisual brasileiro) em 2004, se negou a participar da Conferência Nacional de Comunicação e rejeita qualquer mudança na caduca legislação do setor. E assim a Globo mostra como ainda é uma das instituições mais poderosas do país. Apesar de que ao longo dos anos ela vem perdendo sua audiência e a influência na população brasileira.
A desmoralização das instituições
Hoje a Rede Globo está em confronto aberto com a Rede Record e seu mantenedor, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. A Globo ainda se vê cada vez mais acuada pela convergência das mídias, com as jamantas das empresas de telecomunicações avançando pela TV por assinatura, internet e distribuição de conteúdos. E, nesse cenário, porque ela iria respeitar uma determinação antimonopolista do Cade?
Para a Globo, a lei, a regulação, o interesse público sempre foram detalhes a serem esquecidos. E a atual disputa pelos direitos de transmissão é um caso notório. A Globo e o Clube dos 13 assinaram um Termo de Compromisso de Cessação em outubro de 2010 concordando com o fim da preferência na compra do campeonato e a venda separada por mídias. O Clube dos 13 cumpriu sua obrigação, mas a Globo não. Ela preferiu, à sua maneira corriqueira de agir, com um golpe. E sem nenhum constrangimento. Em nota oficial, a Globo afirma que é contra o edital do Clube dos 13, alegando que a existência da concorrência entre as emissoras e a separação do edital por mídia (TV aberta, TV por assinatura, PPV, internet, celular) inviabilizaria seu modelo de negócio. A Globo ainda publicou anúncios em todo país afirmando que está agindo em respeito ao torcedor. Ela desmoraliza o acordo com o Estado brasileiro e ainda tripudia da população.
Mas a emissora da família Marinho não aceita perder o jogo. Sua jogada é simples, rachar o Clube dos 13 e negociar individualmente com os clubes, em uma clara tentativa de manobra do acordo com o Cade. Corinthians, Flamengo, Botafogo, Fluminense, Vasco, Cruzeiro, Coritiba, Grêmio e Palmeiras e Santos já se submeteram ao poder Global e anunciaram não aceitar as negociação realizada pelo Clube dos 13. Apenas São Paulo, Atlético Mineiro, Internacional resistem até a abertura dos envelopes dos editais, em 11 de março. Em reunião com o presidente do Clube dos 13, nesta última terça-feira, o presidente do Cade, Fernando Furlan, disse que um provavél acordo entre os clubes e a emissora poderá ser alvo de um outro processo no órgão. Enquanto isto, Fábio Koff, presidente do Clube dos 13 ainda insiste em dizer que a entidade ainda tem a prerrogativa de negociar os direitos de transmissão de seus associados. Oficialmente, apenas o Corinthians confirmou sua retirada do C13. A desmoralização do futebol brasileiro segue em ritmo acelerado.
*Gésio Passos é jornalista e militante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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