segunda-feira, 17 de julho de 2017

pessoanos tempos heteronômicos

 

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.

Não sei que distância
Vai de som a som
Peguando, no tique,
Do taque do tom.

Mas oiço de noite
A sua presença
Sem ter onde acoite
Meu ser sem ser.

Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa

O Som do Relógio de Ferrabrás Pessoa.

O Som do Relógio
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora;
Ecoa o que dentro
Do meu peito mora.

Ah, como este inveja
O taque seguro
Do rival de aço, e
Seu firme futuro!

O toque dest'outro,
Ao mudar da sorte,
Ora falha, ou dispára,
Mais fraco, ou bem forte.

E do atrito dos anos
não há quem lhe repare
os sofridos danos---
Exceto sua morte.

O Som do Relógio de Filiberto Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
Qual passo de atleta
Que as léguas devora.

Martela-lhe o peito
Com pulso constante,
Pendulam-lhe os braços
Em ritmo ofegante.

Se nunca se cansa
Seu corpo de aço
É que toma alento
A cada compasso:

Repousa um momento
Suspenso no vão
Entre o salto no tique
E o toque no chão.

O Som do Relógio de Florêncio Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
E a fala das gentes
Minh'alma devora.

Como luzes que cegam,
Ou livros mendazes,
Palavras sufocam
As mentes capazes.

Agridem-me as vozes,
Embotam-me o ouvido
As frases ferozes
De vácuo sentido.

Nojento debate!
Bem mais me valia
O suave conselho
Da noite vazia

O Som do Relógio de Faramundo Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Tem o tempo que foi-me,
E querem-me agora?

Tropeço na margem
Da noite cortante,
Da névoa sombria,
E querem que eu cante?

As poças refletem
O lume no poste,
O toque do sino,
E querem que eu goste?

A sós me deixaram
Na casa vazia,
Na vida gelada,
E querem que eu ria?


O Som do Relógio de Fortunato Pessoa.
O Som do Relógio
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Chamando ao presente
Memórias de outr'ora:

De tom de tambores,
De tempos ardentes,
Feridas e dores
No corpo e nas mentes;

De vidas e lidas,
De toques, de cores,
Na infância perdida
Da noite os temores;

De ecos distantes,
De um algo a sorrir,
Do nada de antes ---
E do que há de vir.




O Som do Relógio de Fragolino Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
São gotas-instantes
Pingando na hora,

Enchendo-me assim
Da vida esse vão
Do primeiro sim
ao último não.

É um hino vazio,
Poema de nada,
Que oiço passivo
Na noite parada;

É o tempo escorrendo
Em volta do agora,
Enquanto que a vida
Vai indo-me embora.

O Som do Relógio de Francisco Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
E diz que lá dentro
Angústia não mora.

Em seu autoplágio
Constante se esmera:
Só almeja tornar-se
Igual ao que era.

Com tal subterfúgio
De simples natura
Obteve uma vida
Sem mal que perdura:

É seu privilégio
Saber que, no vira,
Cada taque repõe
O que o tique lhe tira.


O Som do Relógio de Françoise Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora
É voz que não mente
De mente que ignora.

Com toque seguro
De ser que se adora,
De quem não se sente
(Ou dor sua não chora),

Com taque tranquilo,
Entr'hora e sai hora,
Carrega o presente.
Pela vida afora.

Beato relógio ---
Seu fado, senhora
Não há quem lamente:
Só lembra do agora.

O Som do Relógio de Fructuoso Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Tem o gosto do espelho
E o rosto da amora.

As asas das nuvens
Nos ares repousam;
Querendo ou podendo
Pousar-se não ousam.

No toque dos ventos,
Na sombra do céu,
Na nau que não parte
Por falta de um véu,

O tempo circula,
Não sabe aonde vai:
Se passa, e perdura
Ou fica, e se esvai.

O Som do Relógio de Frederico Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
Oiço-lhe, e diz-me:
«Eu trago tua hora.»

E a cada batida
Do seu calcanhar
Afirma-me, firme,
«Não hás de escapar.»

Na pausa que o tique
Do taque separa
Meu peito se aperta:
«Não pára, não pára!»

Transfixo, me quedo
No escuro a escutar:
Morrendo de medo
De o tempo acabar

O Som do Relógio de Famigério Pessoa.

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora,
Enterra as ruinas
De reinos de outrora.

O Futuro amedronta
A turba mesquinha,
Os que fazem de conta
Que puta é rainha.

O Presente os espanta:
Seus feitos de ratos
Ninguém mais os canta,
Afundam nos fatos.

O Passado lhes resta:
Viver de memórias,
De lendas de festas
E trapos de glória.


O Som do Relógio de Fulgêncio Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
É seu necrológio,
E mortalha sonora.

Som do carpinteiro
Pregando o caixão,
Da pá do coveiro
Abrindo-lhe o chão.

Som do sino rouco
De vago bezerro,
Cambaleando um pouco,
Seguindo-lhe o enterro.

(Um plano que gora.
Uma insana paixão.
Um ato de louco.
Seu último erro.)


O Som do Relógio de Furfurino Pessoa.
O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora:
A noite é de todos
E a todos devora.

Seu tique resfria
O café pegajoso,
Seu taque consome
Um cigarro sem gozo.

Espelhos e luzes,
Cansados licores,
Escuros recantos
(Lacunas de amores),

Reflexos parados,
Palavras perdidas,
São cinzas e tocos
De sombras de vidas

O Som do Relógio de Feliciano Pessoa

O SOM DO RELÓGIO
F. Pessoa

O som do relógio
Tem a alma por fora;
Mas íntimo enigma
Que a mente devora.

Suas breves palavras
Escuto-lhe atento;
O senso escondido
Decifrar-lhe tento.

Mas inda me fogem
Sintaxe e sentido
Da seca linguagem
De áspero acento.

Soubesse eu apenas
Se finda seu verso
No taque contido
Ou no toque perverso.

O Ele Sem Fundo e os Outros Ele
Poemas Inépitos de F. Pessoa

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