terça-feira, 14 de dezembro de 2010

política e ditadura - Corte condena Brasil por 62 mortes no Araguaia

Lei da Anistia não pode impedir punição de militares, afirma órgão da OEA

Segundo a sentença, como responsável pelo desaparecimento de guerrilheiros, Estado deve investigar caso

BERNARDO MELLO FRANCO
DE SÃO PAULO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), maior foco da luta armada contra a ditadura militar.
A sentença determina que o Estado identifique e puna os responsáveis pelas mortes e afirma que a Lei de Anistia não pode ser usada para impedir a investigação do caso.
O governo foi notificado ontem da decisão, aprovada por unanimidade no último dia 24. O tribunal é vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos). Em tese, o Brasil é obrigado a acatar suas determinações.
De acordo com a sentença, o Estado brasileiro é "responsável pelo desaparecimento forçado" dos guerrilheiros mortos pelas tropas que sufocaram a guerrilha.
Assim, deve promover uma investigação sobre os desaparecimentos "a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja".
Para a corte, as disposições da Lei da Anistia "carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação", "nem para a identificação e punição dos responsáveis" pelas mortes.

OUTROS CASOS
A decisão afirma ainda que a lei, aprovada em 1979, também não deve valer para "outros casos de graves violações de direitos humanos" durante a ditadura.
Esse trecho pode dar margem a novas condenações do país envolvendo o desaparecimento de opositores políticos do regime militar.
O texto estimula a criação da Comissão da Verdade, uma das propostas mais polêmicas do PNDH-3 (Plano Nacional dos Direitos Humanos), lançado em 2009. Ressalta, no entanto, que a iniciativa não substitui investigações no campo judicial.
O tribunal determinou que o Brasil realize "todos os esforços" para encontrar ossadas dos combatentes e promova um "ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional."
Além disso, ordenou que o governo federal crie "um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos" dirigido a "todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas".
Esse ponto deve provocar desconforto entre os militares, que travam batalha com militantes de direitos humanos contra o reconhecimento de que o Exército executou presos na guerrilha.
O caso do Araguaia se arrastava na Corte Interamericana desde 1995, quando o país foi denunciado por ONGs de direitos humanos. O julgamento só foi iniciado em maio deste ano.
O texto aprovado pelo órgão contabiliza 62 mortos, mas indica a existência de pelo menos mais oito desaparecidos no confronto.
O Itamaraty confirmou ontem que, pelas regras do direito internacional, o país é obrigado a cumprir a decisão, já que é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Apesar do entendimento, o ministro Nelson Jobim (Defesa) sustentou este ano que o país poderia evocar a Lei da Anistia para descumprir eventuais condenações

Juiz internacional vê caminho para novas ações contra Anistia

Para responsável por decisão sobre Araguaia, sentença vale para todos os casos de morte e tortura na ditadura

Para ministros do STF, no entanto, decisão não muda julgamento que recusou ação para punir autoridades por crimes
DE SÃO PAULO
DE BRASÍLIA

A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por 62 desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia, abre caminho para novos processos contra militares acusados de matar e torturar na ditadura.
Segundo o juiz "ad hoc" da corte, Roberto Caldas, a sentença não se aplica apenas à guerrilha. "A decisão se aplica a todos os casos de tortura, desaparecimento forçado e execução sumária ocorridos na ditadura", disse Caldas.
"É uma sentença histórica, que estabelece que nenhum crime contra os direitos humanos pode ficar impune com base na Lei da Anistia."
A corte da OEA (Ordem dos Estados Americanos) decidiu que a Lei da Anistia não pode ser usada para proteger ex-agentes da ditadura.
O entendimento contraria decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que recusou a revisão da lei em abril.
O Ministério Público Federal deve ingressar com novas ações, com base na decisão da corte internacional.
Como signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Brasil tem de acatar decisões da corte.
A sentença também determinou o pagamento de indenizações a 113 parentes de vítimas. Pais e filhos terão direito a US$ 45 mil, e irmãos, a US$ 15 mil. A corte não informou quantas pessoas estão classificadas em cada caso.
O presidente do STF, Cezar Peluso, afirmou que a decisão da corte internacional "não revoga, não anula, não cassa" a do Supremo.
Para Peluso, a determinação para que o Estado identifique e puna os responsáveis pelas mortes vale apenas no "campo da convencionalidade", isto é, das convenções internacionais.
Segundo ele, o Brasil até poderá sofrer sanções internacionais, mas internamente a lei continuará valendo.
Marco Aurélio Mello concorda. "É uma decisão tomada no âmbito internacional e não no interno. O que nós decidimos no STF foi a a partir do direito nacional. Na prática, o efeito será nenhum."
Em nota, o Itamaraty afirmou que o Brasil já adotou muitas das medidas determinadas na sentença da corte.

FAMILIARES
A decisão da corte internacional foi comemorada por familiares de vítimas do Araguaia, que cobraram seu cumprimento integral pelo governo brasileiro.
"Vencemos a arrogância dos militares e do Judiciário", disse Criméia Almeida, mulher de André Grabois, desaparecido na guerrilha.
Eles também cobraram a abertura dos arquivos da ditadura. "Lula elogiou a abertura do WikiLeaks. Por que ele não abre o nosso Wikileaks?", questionou Criméia.
Helenalda Nazareth, irmã de Helenira Nazareth, também desaparecida, afirmou que os familiares querem reparação não apenas por mortes e desaparecimentos, mas também por casos de tortura.
(BERNARDO MELLO FRANCO, FELIPE SELIGMAN E FERNANDO GALLO)

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