terça-feira, 14 de dezembro de 2010

mídia - JORNALISTAS & TORTURADORES - Os parceiros do terror

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Luiz Egypto

Autópsia do Medo, de Percival de Souza, 650 pp. Editora Globo, 2000. Tel (11) 3767-7000, e-mail

O jornalista Percival de Souza especializou-se em assuntos criminais e de segurança pública e firmou, nos seus 31 anos de profissão, uma reputação de repórter criterioso. Ele faz o tipo do perdigueiro capaz de ir às últimas instâncias, na investigação de uma história. Também por conta desse método de trabalho, ganhou 4 prêmios Esso de Jornalismo e escreveu 11 livros – o último dos quais é Autópsia do Medo – vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, biografia minuciosa de um dos maiores ícones do terror de Estado durante o regime militar (1964-1985).

Percival demorou 10 anos para escrever Autópsia do Medo. A pesquisa exaustiva revelou muito mais do que traços até então obscuros da personalidade e da ação do delegado Fleury. Mostrou, ademais, a relação promíscua de jornalistas com os órgãos de repressão. É o que o autor revela na entrevista a seguir.


Quando nasceu a idéia de Autópsia do Medo e por que escrevê-lo?

Percival de Souza – A idéia nasceu há vários anos, à medida que fui percebendo que havia um vácuo a ser preenchido neste pedaço da nossa história contemporânea. Faltavam informações, Fleury era um grande enigma, a literatura disponível mostrou-se insuficiente e surgiu a expectativa de, para clarear tudo isso, os brasileiros ficariam na dependência de que, algum dia, se abrissem os arquivos da repressão política. A idéia é fruto de um grande desafio: biografar a face mais visível da repressão durante os anos de chumbo e, simultaneamente, inseri-la no contexto político-institucional que marcou o período de uma guerra revolucionária que deixou um saldo de cerca de 500 mortos.

Foram 10 anos de pesquisa para preparar o livro, período em que certamente você terá lido tudo o que a imprensa publicou sobre Sérgio Paranhos Fleury. A despeito da censura da época, como a imprensa tratava o delegado?

P.S. – Fleury era rude com a imprensa, detestava entrevistas e procurava manter distância dos jornalistas. Além da leitura sobre o personagem, conheci-o de perto. A maior parte dos casos de maior repercussão ficavam com ele. Portanto, era obrigatório para os jornalistas contatá-lo. A imprensa contribuiu para a construção do mito, mas com a circunstância atenuante de que Fluery era realmente um perdigueiro, um obstinado caçador de ladrões, a princípio, e contestadores do regime militar, depois. Considere-se que Fleury sempre levou a melhor em todas as suas empreitadas. Seus métodos eram discutíveis, mas ele fazia grande sucesso entre as pessoas (que são muitas) que odeiam as manifestações mais violentas da criminalidade. Fleury era implacável. E levou para a polícia política o estilo que empregava na criminalidade comum.

O que descobriu sobre as relações de jornalistas com os órgãos de segurança do regime militar?

P.S. – A polícia política, por intermédio do DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, montou um esquema através do qual os setoristas eram cuidadosamente selecionados. A tal ponto que os quatro principais deles eram representantes da grande imprensa mas pertenciam aos quadros policiais. Um deles, investigador do próprio DOPS; outro, funcionário do Presídio Tiradentes; um terceiro funcionário do Departamento de Institutos Penais e o quarto, lotado nos quadros da Secretaria de Segurança. Essa simbiose anormal – policial/jornalista – foi útil também para a repressão política na redação dos comunicados oficiais do DOPS e também para o noticiário com declarações dos "arrependidos", prisioneiros ex-militantes de organizações revolucionárias que se declaravam, de repente, a favor do regime militar. A rigor, essas figuras híbridas privilegiavam a atividade policial – e a imprensa, para eles, não passava de uma fórmula a mais para equacionar a lógica da ditadura militar.

Há casos de jornalistas que participaram, ao lado dos algozes, de sessões de tortura?

P.S. – Não. As coisa não chegaram a esse ponto. Entretanto, meu levantamento minucioso permitiu a identificação do policial do DOPS que era formalmente encarregado de desaparecer com os corpos de prisioneiros mortos em decorrência das torturas. Este policial, considerado o mais capacitado de todos no DOPS para a apreciação de questões marxistas-leninistas, teve em mãos, para efeito de inquéritos policiais, os padres dominicanos ligados a Carlos Marighela, o líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Este policial preocupou-se em montar uma peça de polícia judiciária demonstrando incompatibilidades entre cristianismo e marxismo. Para isso, pediu e obteve uma espécie de assessoria teológica, feita por um jornalista, ex-seminarista, homem muito culto, chamado Lenildo Tabosa Pessoa. Esse policial era muito relacionado entre o clero conservador. Visitava padres e era visitado no DOPS. Aliás, era um católico convicto – freqüentava missas assiduamente e foi martirizado pelo conflito inevitável de exercer um papel macabro e ao mesmo tempo professar os ideais cristãos. Convernceram-no de que a defesa do Estado era mais importante.

Como operava o esquema que, de um lado, impunha a censura à imprensa e, de outro, plantava nos jornais notícias de interesse do regime?

P.S. – Era uma estratégia de inteligência, fundamentada principalmente numa doutrina de Segurança Nacional e numa técnica sofisticada de informação e contra-informação, elaborada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Consegui documentos inéditos a respeito e alguns são reproduzidos em meu livro. Nas redações dominadas pelas trevas do AI-5, a mínima informação disponível era disputada – exato momento em que entraram em ação os jornalistas vinculados ao Sistema, na verdade propagadores de uma única perspectiva. Este também era um segredo dos porões. Coube a mim, por circunstâncias, desvendá-lo. Foi doloroso, mas não fica bem para um profissional como eu violar a sua própria consciência, habitando a varanda de Pilatos, a omissão tinta de sangue...

A morte de Fleury foi acidente ou queima de arquivo? O que sugere o seu feeling de repórter?

P.S. – Dedico um capítulo inteiro a isso em meu livro, minuciando o último dia da vida de Fleury – navegando a bordo de um barco que havia acabado de comprar, na Ilhabela, jantando, bebendo demais, tomando um último drique antes de pular para o Adriana I, atracado no Yatch Club, e caindo no mar, morrendo afogado. Para um mito como ele, uma morte decepcionante. Fui a fundo nesse tópico, apurando que o inquérito, cujo conteúdo os brasileiros vão tomar conhecimento pela primeira vez, é lamentavelmente malfeito. Mais ainda: o cadáver não foi submetido a exame necroscópico, por determinação expressa do chefe da Polícia Civil, e a causa mortis acabou ficando indeterminada. Todas essas circunstâncias, somadas e detalhadas, levarão a suspeitas inevitáveis. Não construo uma tese, mas apresento fatos ignorados. O filho de Fleury, um policial, me contou que a pergunta que ele mais ouve, desde aquele 1º de maio de 1979, é esta: "Já descobriam quem matou seu pai?"Ouvi testemunhas ignoradas e que nunca foram consultadas. Na avaliação de tudo isso, acredito que a morte de Fleury é suspeita e a polícia foi escandalosamente omissa na investigação. Aliás, uma contradição fantástica: a polícia tratou seu maior mito como se fosse um cidadão de terceira categoria.

O livro Autópsia do Medo aborda todos esses pontos, e muitos outros mais. Isso demonstra a realidade brasileira exigindo que nossos jornalistas-escritores façam História. Pretendo estar entre eles

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