segunda-feira, 16 de maio de 2011

blog do favre - La tristesse - Luis Fernando Verissimo

– O Estado de S.Paulo
Auvers-sur-Oise é uma cidadezinha à beira do rio Oise, alguns quilômetros ao norte de Paris. Não chega a ser a “France profonde”. Com sua proximidade à capital é mais um lugar para casas de campo e escapadas de fim de semana dos parisienses. Mas Auvers é importante. Foi para lá que Vincent Van Gogh se mudou no fim da sua vida. Atormentado por problemas mentais, ele quis estar perto do dr. Gachet, um médico da região que lhe fora recomentado pelo pintor Pissarro. (Um retrato do dr. Gachet está entre as suas últimas obras, que também incluem uma pintura da igreja de Auvers.) Mas, principalmente, Van Gogh foi para Auvers para estar mais perto do seu irmão Theo.

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A relação entre Vincent e Theo Van Gogh é das mais ricas e, finalmente, pungentes da história da arte. Não apenas porque a ajuda financeira de Theo permitiu a Vincent – que em toda a sua vida só vendeu um quadro – dedicar-se à pintura, mas porque tudo que se sabe sobre os pensamentos e os sentimentos de Van Gogh está nas suas cartas para o irmão mais velho, seu confidente e conselheiro. Sem Theo não haveria Vincent. Quando decidiu ir viver em Auvers, Van Gogh talvez estivesse inconscientemente se aproximando do irmão para morrer perto dele. No dia 27 de julho de 1890, Van Gogh se deu um tiro no peito. Morreu dois dias depois nos braços de Theo. Suas últimas palavras foram “La tristesse durera toujours”. A tristeza durará para sempre.

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Há dias fomos ao cemitério de Auvers-sur-Oise onde estão enterrados Vincent e Theo, que morreu alguns meses depois do irmão. O cemitério fica numa colina em meio a um trigal. O trigo estava verde. Van Gogh poderia transformá-lo em amarelo, e acrescentar alguns redemoinhos ao azul daquele céu de primavera, mas o dia era irretocável. Os dois irmãos estão enterrados lado a lado. Sepulturas simples, com um quadrilátero de plantas na frente. As duas lápides são absolutamente iguais. Os nomes, as datas de nascimento e morte, e só. Com um pouco de imaginação você concluiria que, na morte como na vida, Theo estivesse ali para proteger seu desafortunado irmão. Mas nada nas lápides os diferencia. E Van Gogh tinha razão. A tristeza o perdurava. A tristeza durará para sempre.

Brod. Max Brod não era parente de Franz Kafka. Os dois só eram grandes amigos. E Kafka pediu a Max Brod que impedisse a publicação dos seus livros e queimasse todos os seus escritos, quando ele morresse. Não se sabe se Kafka pediu que Brod prometesse, solenemente, fazer o que ele pedia. Se fez o Brod jurar. O fato é que se deve à decisão de Brod de trair a confiança do amigo a existência literária de Kafka, que só foi publicado postumamente. Se a humanidade deve a Theo e sua dedicação ao irmão as grandes pinturas de Van Gogh, deve à infidelidade de Brod a obra impressa do Kafka. Sem Brod não haveria Kafka.

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Sei pouco sobre a posteridade de Brod, que entrou para a história da literatura apenas como responsável pela posteridade de outro. Também não sei como foi sua escolha entre assegurar a posteridade de Kafka e honrar seu pedido. A fogueira já estaria acesa quando ele decidiu preservar os escritos? E o remorso? Alguma vez Brod se arrependeu de ter sido um amigo inconfiável, recusando a Kafka o esquecimento desejado? Seja como foi, obrigado Max. E você também, Theo.

Postado por Luis Favre
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Tags: crónicas, Luis Fernando Verissimo, Vincent Van Gogh
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Facebook Delicious MySpace Yahoo Buzz Linkk Technorati Digg Voltar para o início 15/05/2011 - 12:31h

Lições do churrascão

A polêmica da estação Angélica parece indicar que os paulistanos se cansaram de projetos anunciados e desmentidos ao sabor das pressões de interesses

Raquel Rolnik – O Estado de S.Paulo
Em protesto contra a reação negativa de moradores de Higienópolis, um dos bairros mais nobres de São Paulo, à construção de uma estação de metrô na Avenida Angélica, internautas marcaram através do Facebook um churrascão em frente ao Shopping Higienópolis. A polêmica estourou na web a partir do anúncio, por parte da Companhia do Metrô, de que a nova estação da Linha 6 não seria mais localizada na Angélica. Na sexta-feira pela manhã, quando o proponente decidiu cancelar o churrasco, quase 50 mil pessoas já haviam aderido ao protesto e o assunto ganhara as páginas dos jornais, com discussões técnicas sobre a localização da estação, análises sociológicas sobre o comportamento dos moradores contra e a favor da estação e declarações de representantes do Metrô procurando negar qualquer motivação que não fosse “estritamente técnica” em sua decisão.

Para além do debate sobre a melhor localização da nova estação, e até mesmo da prioridade dessa estação (e dessa linha!) em relação às gigantescas demandas de transporte coletivo de qualidade na região metropolitana de São Paulo, a polêmica dos últimos dias finalmente desnudou dois temas da maior importância para o urbanismo brasileiro, cuja discussão esteve restrita até agora a pequenos círculos acadêmicos e, com esse debate, ganha as ruas da cidade.

O primeiro tem a ver com o modelo de cidade que tem orientado o desenvolvimento de São Paulo (e das cidades brasileiras) pelo menos desde o final do séc 19: um urbanismo segundo o qual “qualidade” é sinônimo de “exclusividade”. Sua produção e hegemonia na política urbana se sustentam por meio de uma coalizão de interesses econômicos com grande capacidade de influenciar as decisões políticas de investimentos e legislação na cidade.

O nascimento do bairro de Higienópolis no final do século 19, na sequência de empreendimentos semelhantes (Campos Elísios, Vila Buarque, Av. Paulista) revela este mecanismo: o abandono dos velhos sobrados de taipa no triângulo central por chateaux, chalets e cottages circundados por jardins nos novos bairros se beneficiou da construção do Viaduto do Chá, em um movimento que aliou uma reterritorialização das elites ao emergente negócio de terras – o loteamento. Foi essa a trajetória de d. Angélica, filha do Barão de Souza Queiroz, que, ao deixar de viver em sua fazenda, em 1874, fixou residência na Chácara das Palmeiras, onde mandou edificar na esquina da Angélica com a Al. Barros uma réplica do castelo de Charlottenburg, conforme planos, materiais e decoração encomendados na Alemanha.

O prestígio dessas nobres residências contribuiu indubitavelmente para o sucesso dos “loteamentos exclusivos”, abertos na cidade na década de 1890. Sua localização – a Chácara do Carvalho e o Palácio de Elias Chaves nos Campos Elísios, o palacete da Vila Maria na Vila Buarque e o palacete de d. Angélica em Higienópolis – coincidia exatamente com a dos primeiros empreendimentos desse tipo. A construção do Viaduto do Chá foi fundamental para essa marcha ao sudoeste que se seguiria. Sua instalação viabilizaria os mais importantes empreendimentos imobiliários do final do século 19: Higienópolis e Paulista. Neles se envolveram proprietários de terras, investidores potenciais, engenheiros e políticos.

Na esteira de investimentos urbanos (esses bairros já eram abertos contando com rede de água, esgoto, gás e bonde, quando seus contemporâneos bairros operários Brás e Mooca, por exemplo, demoraram décadas para receber a mesma infraestrutura), uma legislação urbanística garantia a exclusividade, definindo um padrão de grandes lotes, uso exclusivamente residencial e obrigatoriedade de recuos. A verticalização do bairro de Higienópolis, que se intensificou a partir dos anos 70, mudou esse perfil, mas não desconstruiu, simbolicamente, o projeto.

A resistência que o bairro tem hoje para receber uma estação de metrô está justamente relacionada com a sua possível popularização e, consequentemente, a desvalorização imobiliária – uma postura rejeitada por muitos, inclusive moradores do próprio bairro, como bem demonstram as manifestações dos internautas, que ao rejeitá-la, afirmam o desejo de uma cidade heterogênea, multiclassista, multiétnica e multifuncional.

A direção do Metrô afirmou em nota oficial que a decisão de mudar a localização da estação se deu por razões técnicas (excessiva proximidade entre as estações Angélica e Higienópolis/Mackenzie) e não para atender à solicitação de moradores insatisfeitos. Entretanto, os anúncios (e “desanúncios”) de linhas e estações, metrôs que viram monotrilhos e corredores de ônibus que aparecem e desaparecem dos “planos” do governo evidenciam um segundo ponto essencial que bloqueia o desenvolvimento de um urbanismo de qualidade para todos: o processo decisório dos investimentos da cidade.

Na ausência de um processo de planejamento estável – aliado a uma estratégia urbanística pactuada coletivamente na cidade -, os planos e projetos são anunciados e desmentidos ao sabor das pressões dos interesses que conseguem ter acesso à mesa de decisão. Aqui, mais uma vez, convergem de forma perversa coalizões de interesses econômicos enlaçados – por relações pessoais ou de classe – com interesses políticos.

O recado que a polêmica da estação Angélica parece dar é que os cidadãos paulistanos estão cada vez mais cansados desse modelo.

RAQUEL ROLNIK É URBANISTA, PROFESSORA DA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA USP

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